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Príncipe - Ana Hatherly

Príncipe:
 Era de noite quando eu bati à tua porta
 e na escuridão da tua casa tu vieste abrir
 e não me conheceste.
 Era de noite
 são mil e umas
 as noites em que bato à tua porta
 e tu vens abrir
 e não me reconheces
 porque eu jamais bato à tua porta.
 Contudo
 quando eu batia à tua porta
 e tu vieste abrir
 os teus olhos de repente
 viram-me
 pela primeira vez
 como sempre de cada vez é a primeira
 a derradeira
 instância do momento de eu surgir
 e tu veres-me.
 Era de noite quando eu bati à tua porta
 e tu vieste abrir
 e viste-me
 como um náufrago sussurrando qualquer coisa
 que ninguém compreendeu.
 Mas era de noite
 e por isso
 tu soubeste que era eu
 e vieste abrir-te
 na escuridão da tua casa.
 Ah era de noite
 e de súbito tudo era apenas
 lábios pálpebras intumescências
 cobrindo o corpo de flutuantes volteios
 de palpitações trémulas adejando pelo rosto.
 Beijava os teus olhos por dentro
 beijava os teus olhos pensados
 beijava-te pensando
 e estendia a mão sobre o meu pensamento
 corria para ti
 minha praia jamais alcançada
 impossibilidade desejada
 de apenas poder pensar-te.

 São mil e umas
 as noites em que não bato à tua porta
 e vens abrir-me. 



Que é voar? Ana Hatherly

Que é voar?
 É só subir no ar,
 levantar da terra
 o corpo, os pés?
 Isso é que é voar?
 Não.

 Voar é libertar-me,
 é parar no espaço inconsistente
 é ser livre,
 leve, independente
 é ter a alma separada
 de toda a existência
 é não viver senão
 em não-vivência.
 E isso é voar?
 Não.

 Voar é humano
 é transitório, momentâneo...
 Aquele que voa
 tem de pousar em algum lugar:
 isso é partir
 e não voltar.


Os jardins imaginários - Ana Hatherly


Os jardins imaginários
que de longe vislumbramos
pertencem
aos distraídos insensíveis entes
com que os povoamos

Sempre ficamos
do lado de cá de suas grades
desejosos-receosos de as passarmos

Sentimos o perfume
das rosas que inventamos
vemos o esplendor
dos frutos que sonhamos

Contemplamos
na inventada montra dos prazeres
as sublimes doçuras que sonhamos
sentindo sempre
que não
que não somos dignos
de fruir tais gozos

Nos proibidos jardins
que inventamos
nós
sombras-fantasmas
dum desejo que nos impele em vão
nós
jamais perturbamos
a serenidade
de seu eterno impassível Verão


As lições - Ana Hatherly


 
Ensinaram-me a falar
aprendi a escrever.
Ensinaram-me a escrever
aprendi a falar.
Ensinaram-me a ler
aprendi a ver.
Ensinaram-me a ouvir
aprendi a calar.
Ensinaram-me a pedir
aprendi a dar.
Ensinaram-me a comprar
aprendi a ter.
Ensinaram-me a beber
aprendi a rir.
Ensinaram-me a fugir
aprendi a ficar.
Ensinaram-me a aprender
aprendi a ignorar.
Ensinaram-me a amar
aprendi a criar.
Ensinaram-me a viver
aprendi a morrer.
Ensinaram-me a estar só
aprendi a estar.
Ensinaram-me a ser livre
aprendi a ser.


A matéria das palavras - Ana Hatherly



Estamos aqui. Interrogamos símbolos persistentes.
É a hora do infinito desacerto-acerto.

O vulto da nossa singularidade viaja por palavras
matéria insensível de um poder esquivo.

Confissões discordantes pavimentam a nossa hesitação.
Há uma embriaguez de luto em nossos actos-chaves.

Aspiramos à alta liberdade
um bem sempre suspenso que nos crucifica.

Cheios de ávidas esperanças sobrevoamos
e depois mergulhamos nessa outra esfera imaginária.

Com arriscada atenção aspiramos à ditosa notícia
de uma perfeição especialista em fracassos.

Estrangeiros sempre
agudamente colhemos os frutos discordantes.

Um poema de amor para domingo - Ana Hatherly


Se eu pudesse dar-te aquilo que não tenho
e que fora de mim jamais se encontra
Se eu pudesse dar-te aquilo com que sonhas
e o que só por mim poderá ter sonhado.

Se eu pudesse dar-te o sopro que me foge
e que fora de mim jamais se encontra
Se eu pudesse dar-te aquilo que descubro
e descobrir-te o que de mim se esconde.

Então serias aquele que existe
e o que só por mim poderá ter sonhado.

O eco de mil sinos de prata - Ana Hatherly

O eco de mil sinos de prata
emudece
ante o labor da aranha

O tempo emudece
na cegueira do ar
na sua geografia nula

Que queres de mim
matéria insensível?

Nas coisas conhecidas
o verbo ser
emudece