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Depois de tudo - Cassiano Ricardo


Mas tudo passou tão depressa
Não consigo dormir agora.

Nunca o silêncio gritou tanto
Nas ruas da minha memória.

Como agarrar líquido o tempo
Que pelos vãos dos dedos flui?

Meu coração é hoje um pássaro
Pousado na árvore que eu fui.


O Sangue das Horas - Cassiano Ricardo

Queixei-me de não ter pão
e a noite me disse não.
Mostrei-lhe a varanda nua
e a Noite me trouxe a lua... 
Você tem sede, não é?
E a Noite me deu café.

São verdes como a esperança
as horas em que sou triste:
bem que existe não se alcança,
só cansa;
procuro o que não existe.

Se a dúvida me procura,
pondo a cerração do tédio
em minha existência obscura,
bebo a esperança, remédio
para as feridas sem cura...

Que dúbio alvor de camélia
anda lá fora a flutuar?
É a Noite que, de tão velha,
tão velha,
criou cabelos de luar...

A insônia do meu relógio
durante a noite passada
crivou-me o corpo, já enfermo,
de punhaladas sonoras...
Meus olhos são duas feridas
por onde
escorre o sangue das horas.

Entre o passado e o porvir
aqueles peixes de prata
não me deixaram dormir.
Tomei café sem parar.
Bebi treva em goles mudos...
Criei cabelos de luar.


Desejo - Cassiano Ricardo


As coisas que não conseguem morrer
Só por isso são chamadas eternas.
As estrelas, dolorosas lanternas
Que não sabem o que é deixar de ser.

Ó força incognoscível que governas
O meu querer, como o meu não-querer.
Quisera estar entre as simples luzernas
Que morrem no primeiro entardecer.

Ser deus — e não as coisas mais ditosas
Quanto mais breves, como são as rosas
É não sonhar, é nada mais obter.

Ó alegria dourada de o não ser
Entre as coisas que são, e as nebulosas,
Que não conseguiu dormir nem morrer.


O canto da juriti - Cassiano Ricardo


Eu ia andando pelo caminho
em pleno sertão, o cafezal tinha ficado lá longe . . .
Foi quando escutei o seu canto
que me pareceu o soluço sem fim da distância . . .


A ânsia de tudo o que é longo como as palmeiras.
A saudade de tudo o que é comprido como os rios . .
O lamento de tudo o que é roxo como a tarde ...
O choro de tudo o que fica chorando por estar longe ...
bem longe.


A física do susto - Cassiano Ricardo


O espelho caiu a parede.
Caiu com ele o meu rosto.
Com o meu rosto a minha sede.
Com a minha sede eu desgosto.
O meu desgosto de olhar,
no espelho caído, o meu rosto.

A orquídea - Cassiano Ricardo



A orquídea parece
uma flor viva, uma
boca, e nos assusta.
Flor aracnídea.

Vagamente humana,
boca, embora feita
de inocentes pétalas,
já supõe perfídia.

Já supõe palavra
embora muda
Já supõe insídia.

Que estará dizendo
o lábio quase humano
da orquídea?


O escafandro - Cassiano Ricardo


I
No fundo do oceano
estava a lágrima
que devia ser
chorada por mim. À espera
de quem viesse usá-la,
um dia, ou dos olhos
(que, hoje, são os meus)

que a chorassem, devida-
mente. Como se chora,
uma só vez, na vida.

A lágrima ali ficou,
intacta, no salso
labirinto, onde ninguém
chora, porque ali o pranto
é falso. Onde os polvos,
os tristes cefalópodes,
não choram. Onde
as sereias, nascidas
pra não chorar, não choram.

Onde os próprios marujos
não choram. Onde os peixes
não choram, e ninguém
iria, então, chorá-la,
tão supérflua é uma gota
de mágoa ao fundo d´água.

E a lágrima passou
entre alvos caramujos,
entre navios mortos,
entre detritos sujos,
entre esponjas por cujos
orifícios entrou
e saiu, muitas vezes,
quieta, obscura, sozinha.
para, afinal, ser minha.

II

Lá fora,
a multidão, a onda
cega, o cavalo líquido
e Glauco
em que, sem nenhum
esforço, Deus navega,
originalmente.
Ali dentro, a lágrima.
Quieta, obscura, sozinha
na unanimidade
espessa da água azul - marinha.



Meus oito anos - Cassiano Ricardo

No tempo de pequenino
eu tinha medo da cuca
velhinha de óculos pretos
que morava atrás da porta. . .
Um gato a dizer corrumiau
de noite na casa escura. . .
De manhã, por travessura,
pica-pau, pau-pau.

Quando eu era pequenino
fazia bolotas de barro,
que punha ao sol pra secar.
Cada bolota daquela,
dura, redonda, amarela,
jogada com o meu certeiro
bodoque de guatambu
matava canário, rolinha,
matava inambu.

Quando eu era pequenino
vivia armando arapuca
pra caçar "vira" e urutau.
Mas de noite vinha a cuca
com o seu gato corrumiau. . .
Como este menino é mau!

Rolinha caiu no laço. . .
Ia contar, não conto não.
Como batia o coração
daquele verde sanhaço
na palma da minha mão!

Ah! se eu pudesse, algum dia,
caçar a vida num poema,
em seu minuto de dor
ou de alegria suprema,
que bom que pra mim seria
ter a vida em minha mão
pererecando de susto
como um sanhaço qualquer
na grade de um alçapão!

Mas. . . de noite vinha a cuca
(e por sinal que a noite parecia uma arapuca
com grandes pássaros de estrelas)
vinha com o gato corrumiau:
menino mau, menino mau,
meninomaumeninomau.




Na minha imaginação
ficou pra sempre o pica-pau.

Pica-pau batendo o bico
numa casca de pau.
Pica-pau, pau-pau.

Corrumiau miando de noite. . .
Corrumiau, miau-miau.

A dor da terra - Cassiano Ricardo

Esta montanha sofre um íntimo tormento.
Arremessada para o azul do firmamento,
parece que o seu mal é o viver, invocando,
no seu pétreo mutismo, o ouro vivo dos astros,
sobre a desolação deste mundo execrando,
como o perdão da altura aos que vivem de rastros. . .

Toda a tinta da aurora escorre-lhe no dorso,
sobre a hedionda nudez do seu vulto retorço.
Dá-me a vaga impressão de que a montanha verte
luz e sangue, no seu torpor de cataclismo,
monstro azul que dormiu, acorrentado e inerte,
grito que emudeceu na garganta do abismo!

Onda que foi rolar, criniverde e bravia,
e parou! vagalhão absorto, penedia
descondensada, dor da Terra, hirta montanha!
O homem pensa, e pergunta ao sofrimento absurdo,
como, sendo o teu mal de grandeza tamanha,
pode um deus existir tão bárbaro e tão surdo!

Esse filões de luar, que te rolam dos flancos,
são, no horror da velhice, os teus cabelos brancos;
pois, desde o alvorecer deste mundo maldito,
nessa imobilidade em que o teu sonho medra,
nessa imortalidade obscura, sem um grito,
vives acorrentada ao teu ideal de pedra.

Do teu negro silêncio, a água viva que nasce,
(fria transudação pelas rugas da face)
que nas pedras ressuma e escorre a umedecê-las,
é o teu suor de montanha! ajoelhada no fundo
da Terra, agrilhoada ao cárcere do mundo,
como um gesto de dor ao clarão das estrelas!

Elegia rústica - Cassiano Ricardo

Nasci para viver no mato: o chão da selva
todo se enrelva de um tapete luxuriante!
A folhagem, que baila em cima, a cada instante,
é uma pelúcia toda verde que descobre
os ombros senhoriais da floresta arrogante.

Acordo. Pelos vãos da choça, a alva derrama
como em fitas de cor, seus cabelos de chama.
Rodopiando no vento o arvoredo frufrulha
vendo-se, pelos vãos, a montanha cerúlea
onde o sol escorreu, em laivos de ouro e cobre.

Na manhã tropical, borrifada de orvalho
e manchada de terra, ou nestes coloridos
caminhos que percorro a pé, sem agasalho,
parece que inauguro os meus cinco sentidos!
Há uma flor que me diz bom-dia em cada galho.

Ah! devo descender de algum Anacreonte
anônimo, de pés no chão, sapatos rotos,
que se nutriu de mel lírico e gafanhotos,
frutos tintos de sol, água pura de fonte,
satisfeito com o seu pequenino horizonte.
Não sei o que mais ame: água, frutos ou pássaros.

E então digo, ao meu eco: Ó Deus, ó estrela, ó vento,
eu vim buscar, aqui, um pouco de silêncio
para ver se ainda curo as feridas enormes
que a angústia de pensar me abriu no pensamento.

Não sei o que mais ame: água, frutos ou pássaros.
Só sei que sinto em mim o agreste encanto
de aqui viver, bebendo orvalho e ouvindo as coisas
as lindas coisas que me diz a alma confusa
toda enredada de cipós, do próprio mato:
o choro tagarela de um regato,
uma cigarra que cem vezes recomeça
sua clara canção intermitente
até ficar chorando escandalosamente. . .

E quando a noite vem, numerosa, selvagem,
a minha alma descansa em seus beijos eólios;
e pelos vãos da choça, através da folhagem,
são as estrelas a inocência dos meus olhos.

Ficaram-me as penas - Cassiano Ricardo



O pássaro fugiu, ficaram-me as penas
da sua asa, nas mãos encantadas.
Mas, que é a vida, afinal? Um voo, apenas.
Uma lembrança e outros pequenos nadas.

Passou o vento mau, entre açucenas,
deixou-me só corolas arrancadas...
Despedem-se de mim glórias terrenas.
Fica-me aos pés a poeira das estradas.

A água correu veloz, fica-me a espuma.
Só o tempo não me deixa coisa alguma
até que da própria alma me despoje!

Desfolhados os últimos segredos,
quero agarrar a vida, que me foge,
vão-se-me as horas pelos vãos dos dedos.


Dedicatória - Cassiano Ricardo

Ao claro tempo, ao tempo
das metamorfoses,
não havia horizonte
na alegria do ser
e do acontecer.

Havia a graça aérea
com que as coisas brincavam
de ser e de não ser,
no jardim da matéria.

Hoje uma coisa passa
a ser outra coisa;
nascem anjos sem asa
dentro do dicionário;
um monstro, um dragão
em lugar de um canário.
Não pela alegria
da metamorfose.
Mas por deformação
de cada deformação
de cada ser, ou flor,
em sua geometria.

O lavrador - Cassiano Ricardo

A tua mão é dura como casca de árvore.
Ríspida e grossa como um cacto.

Teu aperto de mão machuca a mão celeste,
de tão agreste — e naturalmente por falta de tacto.
A tua mão sabe o segredo
da lua e da floresta em seu explícito contacto
com as leis ocultas da germinação.

Mão monstruosa, de tão áspera,
incapaz de qualquer carícia, órfã de sutileza,
indiferente ao cetim e ao veludo.

Mão colorida,
em que moram os meses
com veias que mais parecem cipós encordoados;
com o dorso coberto de musgo
e em cuja palma, e em forma de M (que não quer dizer
morte)
se encontram, ainda, os sinais fundos
dos quatro rios que existiram no paraíso terreal.

Mão aumentada pela santidade do trabalho.
Suja de terra e enorme, mas principalmente enorme
como a estar sempre num primeiro plano
na sucessão das coisas — frutos, árvores, lavouras —
que saem dela ao fim de cada ano.

Se Cristo regressar, ó lavrador, não é preciso que lhe
mostres,
como eu, as feridas do corpo e do pensamento.
Nem as condecorações faiscantes que os outros ostentam
no peito.
Mostra-lhe a mão calejada.

Mostra-lhe a mão calejada,
enorme, a escorrer seiva, sol e orvalho.
E os anjos virão vê-la e por vê-la tão grossa e tão dura
farão com que na palma de tua mão nasçam lírios.
E a exibirão no céu, como um objeto desconhecido,
rústico e maltratado.

E Deus colocará uma foice de prata
em tua mão grossa, ríspida, acostumada ao trato da
terra terrível
e te dirá:
Trabalharás agora no meu campo
orvalhado de estrelas.
E dormirás sob a árvore da noite.

O Tocador de Clarineta - Cassiano Ricardo

Quando ouvires o pássaro
Cantar em frente do teu quarto,
Naturalmente em vão,
não penses
que sou eu que aí vim tocar,
não.

Quando o vento disser,
ao teu ouvido de mulher
uma palavra
branca e fria como a cerração,
não penses que o vento fui eu,
não.

Quando receberes
uma carta anônima, trazida
por secreta mão
- quem será que assim me acusa? -
eu é que não serei,
não.

Quando ouvires, porém, no escuro,
a goteira caindo
sobre o triste chão, aí, então,
serei eu que estou batendo
na pedra
do teu coração.

Espaço lírico - Cassiano Ricardo

Não amo o espaço que o meu corpo ocupa
Num jardim público, num estribo de bonde.
Mas o espaço que mora em mim, luz interior.
Um espaço que é meu como uma flor.

Que me nasceu por dentro, entre paredes.
Nutrido à custa de secretas sedes.
Que é a forma? Não o simples adorno.
Não o corpo habitando o espaço, mas o espaço.

Dentro do meu perfil, do meu contorno.
Que haja em mim um chão vivo em cada passo
(mesmo nas horas mais obscuras) para

Que eu possa amar a todas as criaturas.
Morte: retorno ao incriado. Espaço:
Virgindade do tempo em campo verde.

Inscrição - Cassiano Ricardo

A vida me foi sempre
dúplice, angulosa.

É cordial quando nega
e escassa quando dá.

Pois escreveu meu nome
sobre uma onda cega.

E quando tenho fome
me oferece uma rosa...

Palavras. São as penas
do meu pássaro lírico.

Moinho - Cassiano Ricardo

A esperança mói
A esperança dói.
A esperança mói,
a esperança
dói porque mói;
A esperança mói;
a esperança
dói porque dói.
A esperança mói
mói mói
dói.

Fuga em azul menor - Cassiano Ricardo


O meu rosto de terra
ficará aqui mesmo
no mar ou no horizonte.
Ficará defronte
à casa onde morei.
Mas o meu rosto azul,
O meu rosto de viagem,
esse, irá pra onde irei.

Todo o mundo físico
que gorjeia lá fora
não me procure agora.
Embarquei numa nuvem
por um vão de janela
dos meus cinco sentidos.

E que adianta a alegria
dizer que estou presente
com o meu rosto de terra
se não estou em casa?

Inútil insistência.
Cortei em mim a cauda
das formas e das cores.
(A abstração é uma forma
de se inventar a ausência)
e estou longe de mim
nesta viagem abstrata
sem horizonte e fim.

Um dia voltarei
qual pássaro marítimo,
numa tarde bem mansa
à hora do sol posto.
Então, loura criança,
Ouvirás o meu ritmo
e me perguntarás:
quem és tu, pobre ser?
Mas, eu vim de tão longe
e tão azul de rosto
que não me podes ver.

A graça de quem mora
no país da ausência
certo consiste nisto:
ficar azul de rosto
pra não poder ser visto.

A canção mais recente - Cassiano Ricardo

O poeta
com sua lanterna
mágica está sempre
no começo das coisas.
É como a água eterna-
mente matutina.

Pouco importa a noite
lhe ponha a pena
do silêncio na asa.
Ele tem a manhã
em tudo quanto faça.
Nunca deixará de ter pássa-
ros.

Mostrador - Cassiano Ricardo

O ponteiro grande
dá volta ao mundo
de hora em hora;
já o pequeno, não.
Parece-nos parado.
Parado entre o futuro
e o tempo ido.
Irmãos do desencontro:
Um, o ponteiro
da esperança, o outro
o do olvido.

O ponteiro grande
gorjeia de hora em hora.
O pequeno é silente:
Todas as coisas
que caminham pra não
voltar, caminham
assim: Imóvelmente.

Horizonte. Atributo
do último minuto.