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Sussurro - Flora Figueiredo

Aquiete-se para ouvir o silêncio;
a clorofila escorre pela haste,
a sombra e o sol ecoam um contraste
de quentes e frios na linha divisória.

Tente escutar a história da brisa
quando passa empurrando
a bruma, que, tola,embaça a púrpura da rosa.
Esta conta prosa de sacerdotisa.

Faça atenção ao momento de explosão
da metamorfose
que irrompe em grande dose
de véus e açúcares.

Sinta o cochilo dos nenúfares.
Se conseguir atingir
o ponto mais profundo da quietude,
vai poder ouvir o coração do colibrí.

Ele bate minúsculo num peito passarinho.
A Terra se mobiliza para entoar
uma sonata azul em homenagem
a esse músculo coberto de plumagem,
que tão pequenininho é tão capaz de amar.


Lição de casa - Flora Figueiredo

Você tampa a panela,
 dobra o avental,
 deixa a lágrima secar no arame do varal.
 Fecha a agenda,
 adia o problema,
 atrasa a encomenda,
 guarda insucessos no fundo da gaveta.
 A ideia é tirar a tarja preta
 e pôr o dedo onde se tem medo.
 Você vai perceber
 que a gente é que faz o monstro crescer.
 Em seguida superar o obstáculo,
 pois pode-se estar perdendo
 um espetáculo acontecendo do outro lado.
 Atravessar o escuro
 até conseguir tatear o muro,
 que é o limite da claridade.
 Se tiver capacidade para conquistá-la,
 tente retê-la o mais que puder.
 Há que ter habilidade, sem esquecer
 que a luz é mulher.
 Do inferno assim desmascarado,
 é hora de voltar.
 Não importa se é caminho complicado,
 se a curva é reta,
 ou se a reta entorta.
 Você buscou seu brilho, voltou completa;
 jogou a tranca fora, abriu a porta. 



Expectativas - Flora Figueiredo

O vento anda ficando mentiroso.
Prometeu trazer você, não trouxe.
Ficou de dizer o porquê, não disse.
Esperou que eu me distraísse,
passou depressa, rumo ao horizonte.

Já não tem importância
que cometa outra vez,
um ato de inconstância.

Aprendi a esperar...
Se ventos são capazes de levar embora,
a qualquer hora, também,
são capazes de fazer voltar.




Como nascem as manhãs - Flora Figueiredo



O fundo dos olhos da noite
guarda silêncios.
Esconde na retina
a menina que corre descalça em campo aberto.
Pálpebras cerradas, a noite emudece.
A menina com medo
faz um furo no escuro com a ponta do dedo.
Cai um pingo de luz.
Amanhece.


Perseverança - Flora Figueiredo



Sofro pela espera longa e infundada,
pela flecha que saiu sem dar em nada,
pelo remo que quebrou sem navegar,
pela rocha que tombou, partiu-se ao meio
e brotou pedras onde eu quis colher centeio,
pela manhã que amanheceu sem se deitar.

Escuto a cotovia que insinua
que o cravo morreu, mas a terra continua.

Bendigo o chão por cada grão e me comovo.
Parto de novo.

Versos na tarde - Flora Figueiredo



A lembrança é um barbante.
Uma ponta amarrada no começo da história,
outra, em nosso tornozelo.

Se o fio estica muito, mal dá para continuar.
É a linha da Memória que vai ficando puída,
a da lembrança, não.

Feita de fibra grossa,
não afrouxa até que um anjo venha desatá-la
e a transforme numa corredeira de estrelas.
E quanto mais a corredeira for cumprida,
tanto mais rica há de ter sido a vida.

Vivência - Flora Figueiredo

Se sua rua porventura aparecer
coberta de pétalas caídas
pela inclemência
de um vento qualquer,
não faça nada.
Deixe-a assim desordenada
e descabida.
São reticências que sobraram da estação passada.
Acabarão varridas pela própria vida.

Última página - Flora Figueiredo

Mais uma vez o tempo me assusta.
Passa afobado pelo meu dia,
atropela minha hora,
despreza minha agenda.
Corre prepotente
a disputar lugar com a ventania.
O tempo envelhece e não se emenda.

Deveria haver algum decreto
que obrigasse o tempo a desacelerar
e a respeitar meu projeto.
Só assim, eu daria conta
dos livros que vão se empilhando,
das melodias que estão me aguardando,
das saudades que venho sentindo,
das verdades que eu ando mentindo,
das promessas que venho esquecendo,
dos impulsos que sigo contendo,
dos prazeres que chegam partindo,
dos receios que partem, voltando.

Agora, que redijo a página final,
percebo o tanto de caminho percorrido
ao impulso da hora que vai me acelerando.
Apesar do tempo e sua pressa desleal,
agradeço a Deus por ter vivido,
amanhecer e continuar teimando.

Navegador - Flora Figueiredo



Desenhei um oceano
para ser calmo, claro e plano.
Ele começou a se insubordinar:
inventou um movimento
só pra molhar meu bom comportamento.
Tive que me acostumar às ondulações .
Outra de suas diversões
foi me fazer mergulhar
sempre mais fundo,
na intenção de me ver esfolar
no lodo que atapeta o chão do mundo.
Com o tempo,
perdeu o senso de todo,
escalpelou , cresceu,
engoliu o castelo de areia que era meu.
Como rebelião,
reforço o nó de marinheiro
e conduzo meu veleiro
ávido, contra a correnteza.
O oceano vai com certeza se irritar
e querer derrubar a embarcação.
Em vão, pois dessa vez ele perde.
Aprendi a nadar o suficiente
para emergir no exato lugar
onde a terra se faz quente,
onde o mar é verde.

O Plantador de Girassóis - Flora Figueiredo

Lá vai ele semeando azuis.
Passa por terras ácidas,
por marés graves,
que converte em focos de luz.
Deve ter uma orquestra no bolso
e sementes de sol no coração.
A fila cresce:
o que admira,
a que suspira,
a que padece.
O semeador avança,
a orquestra toca,
o mundo, sem querer, entra na dança.
A festa aumenta.
Se a noite ciumenta se apresenta
e em protesto espalha seu negrume,
o semeador derrete a escuridão:
seduz a estrela e acende um vagalume.