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Despedida - Hilda Hilst

Isso de mim que anseia despedida
(Para perpetuar o que está sendo)
Não tem nome de amor. Nem é celeste
Ou terreno. Isso de mim é marulhoso 
E tenro. Dançarino também. Isso de mim
É novo: Como quem come o que nada contém.
A impossível oquidão de um ovo.
Como se um tigre
Reversivo,
Veemente de seu avesso
Cantasse mansamente.

Não tem nome de amor. Nem se parece a mim.
Como pode ser isto? Ser tenro, marulhoso
Dançarino e novo, ter nome de ninguém
E preferir ausência e desconforto
Para guardar no eterno o coração do outro.


Da Noite - Hilda Hilst


II
Que canto há de cantar o que perdura?
A sombra, o sonho, o labirinto, o caos
A vertigem de ser, a asa, o grito.
Que mitos, meu amor, entre os lençóis:
O que tu pensas gozo é tão finito
E o que pensas amor é muito mais.
Como cobrir-te de pássaros e plumas
E ao mesmo tempo te dizer adeus
Porque imperfeito és carne e perecível

E o que eu desejo é luz e imaterial.

Que canto há de cantar o indefinível?
O toque sem tocar, o olhar sem ver
A alma, amor, entrelaçada dos indescritíveis.
Como te amar, sem nunca merecer?


Roteiro do silêncio - Hilda Hilst


Não há silêncio bastante
Para o meu silêncio.
Nas prisões e nos conventos
Nas igrejas e na noite
Não há silêncio bastante
Para o meu silêncio

Os amantes no quarto.
Os ratos no muro.
A menina
Nos longos corredores do colégio.
Todos os cães perdidos
Pelos quais tenho sofrido:
O meu silêncio é maior
Que toda solidão
E que todo silêncio.



Hilda Hilst


"De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco."
Carlos Drummond de Andrade

O que ficou de mim
além de eu mesma
não o sei.
Nem o digas às crianças
porque no que ficou
a palavra de amor
está partida

imperceptível sombra
de flor no ramo frágil.
Nem o diga aos homens
Era o rio
e antes do rio havia areia.
Era praia
e depois da praia havia o mar.
Era amigo
ah! e se tivesse existido
quem sabe ficava eterno.

Nada ficou de mim
além de eu mesma.
Tênue vontade de poesia
e mesmo isso
imperceptível sombra
de flor no ramo frágil.


Cantares do sem nome e de partidas - Hilda Hilst


Que este amor não me cegue nem me siga.

E de mim mesma nunca se aperceba.
Que me exclua do estar sendo perseguida
E do tormento
De só por ele me saber estar sendo.
Que o olhar não se perca nas tulipas
Pois formas tão perfeitas de beleza
Vêm do fulgor das trevas.
E o meu Senhor habita o rutilante escuro
De um suposto de heras em alto muro.

Que este amor só me faça descontente
E farta de fadigas. E de fragilidades tantas
Eu me faça pequena. E diminuta e tenra
Como só soem ser aranhas e formigas.

Que este amor só me veja de partida.


LXIII - Hilda Hilst


 Tens a medida do imenso?
Contas o infinito?
E quantas gotas de sangue
Pretendes
Desta amorosa ferida
De tão dilatada fome.

Tens a medida do sonho?
Tens o número do Tempo?
Como hei de saber do extenso
De um ódio-amor que percorre
Furioso
Passadas dentro do vento?

Sabes ainda meu nome?
Fome. De mim na tua vida.


LXII - Hilda Hilst

Garças e fardos
O voo e o pesado
No meu coração.

E lebres álbidas
E cães.
Correirice e caça
No meu coração.

Torres, escadas e águas
Nem barcos, nem cordas
No meu coração.

E lutos e garras
Tua cara
No meu coração.



Canto XVII - Hilda Hilst

O poeta se fez
Água de fonte
Infância
Circunsoante
Madeira leve
Límpida caravela

E Túlio não quis.

O poeta se fez
Aroma
Voz inflamante
Vestido
Metalescente
Insânia

E Túlio não quis.

O poeta se cobre
De visgo, de vergonha
Enterra seu bandolim
Artimanha do sonho
Tem o corpo de luto
E o rosto de giz

Porque Túlio não ama.


Homenagem a Alexei Sakarov - Hilda Hilst

de cima do palanque

 de cima da alta poltrona estofada
 de cima da rampa
 olhar de cima

 LÍDERES, o povo
 Não é paisagem
 Nem mansa geografia
 Para a voragem
 Do vosso olho.
 POVO, POLVO
 UM DIA.

 O povo não é o rio
 De mínimas águas
 Sempre iguais.
 Mais fundo, mais além
 E por onde navegais
 Uma nova canção
 De um novo mundo.

 E sem sorrir
 Vos digo:
 O povo não é
 Esse pretenso ovo
 Que fingis alisar,
 Essa superfície
 Que jamais castiga
 Vossos dedos furtivos.
 POVO. POLVO.
 LÚCIDA VIGÍLIA.
 UM DIA.


LIII - Hilda Hilst

Cadenciadas
Vão morrendo as palavras
Na minha boca.
Um sudário de asas
Há de ser agasalhado
E pátria para o corpo.
Anônimo, calado
O poeta contempla
Espelho e mágoa

Fragmentos de um veio
Berçário de palavras.

Umas lendas volteiam
O poeta vazio de seus meios:
Escombro, escadas
Amou de amor escuro
E fugiu de si mesmo
De sua própria cilada.

O poeta. Mudo.
Aceitável agora para o mundo
No seu sudário de asas.



Cantares de perda e predileção - Hilda Hilst



I
Vida da minha alma:
Recaminhei casas e paisagens
Buscando-me a mim, minha tua cara.
Recaminhei os escombros da tarde
Folhas enegrecidas, gomos, cascas
Papéis de terra e tinta sob as árvores
Nichos onde nos confessamos, praças

Revi os cães. Não os mesmos. Outros
De igual destino, loucos, tristes,
Nós dois, meu ódio-amor, atravessando
Cinzas e paredões, o percurso da vida.

Busquei a luz e o amor. Humana, atenta
Como quem busca a boca nos confins da sede.
Recaminhei as nossas construções, tijolos
Pás, a areia dos dias

E tudo que encontrei te digo agora:
Um outro alguém sem cara. Tosco. Cego.
O arquiteto dessas armadilhas.



Ser - Hilda Hilst



Ser terra
E cantar livremente
O que é finitude
E o que perdura.

Unir numa só fonte
O que soube ser vale
Sendo altura.


Cinco Elegias: É tempo de parar as confidências - Hilda Hilst



O vocábulo se desprende
Em longas espirais de aço.
Ajustemos a mordaça
Porque no tempo presente
Além da carícia, é a farsa
Aquela que se insinua.
Faço parte da paisagem.
E há muito para se ver
Aquém e além da colina.
Há pouco para dizer,
Quando a alma que é menina
Vê de um lado o que imagina,
Do outro o que todos veem:
O sol, a verdura fina
Algumas reses paradas
No molhado da campina.
Ventura a minha, a de ser
Poeta e podendo dizer
Calar o que mais me afeta.
Ventura ter o meu mundo

E resguardá-lo das cinzas
Das invasões e dos desgostos.
Ah, poderiam ter sido
Encantados e secretos

Aqueles brandos colóquios
Que outrora se pareciam
Às doces falas do afeto.


Canto I - Hilda Hilst

Corroendo
As grandes escadas
Da minha alma.
Água. Como te chamas?
Tempo.

Vivida antes
Revestida de laca
Minha alma tosca
Se desfazendo.
Como te chamas?
Tempo.

Águas corroendo
Caras, coração
Todas as cordas do sentimento.
Como te chamas?
Tempo.

Irreconhecível
Me procuro lenta
Nos teus escuros.
Como te chamas, breu?
Tempo.


Dez chamamentos ao amigo ( I ) - Hilda Hilst



I
Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse

Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.

Te olhei. E há tanto tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta

Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.

TEMPO-MORTE - Hilda Hilst



I

Corroendo
As grandes escadas
Da minha alma.
Água. Como te chamas?
Tempo.

Vívida antes
Revestida de laca
Minha alma tosca
Se desfazendo.
Como te chamas?
Tempo.

Águas corroendo
Caras, coração
Todas as cordas do sentimento
Como te chamas?
Tempo.

Irreconhecível
Me procuro lenta
Nos teus escuros.
Como te chamas, breu?
Tempo.

Irreconhecível
Me procuro lenta
Nos teus escuros.
Como te chamas, breu?
Tempo.

Poesia XXII - Hilda Hilst

Não me procures ali
Onde os vivos visitam
Os chamados mortos.
Procura-me
Dentro das grandes águas
Nas praças
Num fogo coração
Entre cavalos, cães,
Nos arrozais, no arroio
Ou junto aos pássaros
Ou espelhada
Num outro alguém,
Subindo um duro caminho
Pedra, semente, sal
Passos da vida. Procura-me ali.
Viva.

Hilda Hilst



Costuro o infinito sobre o peito.
E no entanto sou água fugidia e amarga.
e sou crível e antiga como aquilo que vês
Pedras, frontões no Todo inamovível.
Terrena, me adivinho montanha algumas vezes.
Recente, inumana, inexprimível
Costuro o infinito sobre o peito
Como aqueles que amam.

Carrega-me contigo, Pássaro-Poesia - Hilda Hilst



I

Carrega-me contigo, Pássaro-Poesia
Quando cruzares o Amanhã, a luz, o impossível
Porque de barro e palha tem sido esta viagem
Que faço a sós comigo. Isenta de traçado
Ou de complicada geografia, sem nenhuma bagagem
Hei de levar apenas a vertigem e a fé:
Para teu corpo de luz, dois fardos breves.
Deixarei palavras e cantigas. E movediças
Embaçadas vias de Ilusão.
Não cantei cotidianos. Só cantei a ti
Pássaro-Poesia
E a paisagem-limite: o fosso, o extremo
A convulsão do Homem.
Carrega-me contigo.
No Amanhã.

Hilda Hilst

Passará
Tem passado
Passa com a sua fina faca.

Tem nome de ninguém.
Não faz ruído. Não fala.
Mas passa com a sua fina faca.

Fecha feridas, é ungüento.
Mas pode abrir a tua mágoa
Com a sua fina faca.

Estanca ventura e voz
Silêncio e desventura.
Imóvel
Garrote
Algoz
No corpo da tua água passará
Tem passado
Passa com a sua fina faca.