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Tarde oculta no tempo - Jorge de Lima


O andarilho sem destino reparou então
que seus sapatos tinham a poeira indiferente
de todas as pátrias pitorescas;
e que seus olhos conservavam as noites e os dias
dos climas mais vários do universo;
e que suas mãos se agitaram em adeuses
a milhares de cais sem saudades e amigos;
e que todo o seu corpo tinha conhecido
as mil mulheres que Salomão deixou.
E o andarilho sem destino viu
que não conhecia a Tarde que está oculta no tempo
sem paisagens terrenas, sem turismos, sem povos,
mas com a vastidão infinita onde os horizontes
são as nuvens que fogem.



Poema de Natal - Jorge de Lima

Era um poema frequente
repetido
com o menino nos braços
de uma virgem
Desse poema presente
e sempre ouvido,
os tempos e os espaços
tinham origem
pois à origem do poema
sempre havia
essa virgem e o infante
e a poesia.
E era o início e era a extrema
da criação,
era o eterno e era o instante
da canção.


Pelo voo de Deus quero me guiar - Jorge de Lima

Não quero aparelhos
para navegar.
Ando naufragado,
ando sem destino.
Pelo voo dos pássaros
quero me guiar.
Quero Tua Mão
para me apoiar,
pela Tua Mão
quero me guiar.
Quero o voo dos pássaros
para navegar.
Ando naufragado,
quero Teus Cabelos
para me enxugar!
Não quero ponteiro
para me guiar.
Quero Teus Dois Braços
para me abraçar.
Ando naufragado,
quero Teus Cabelos
para me enxugar.
Não quero bússolas
para navegar,
quero outro caminho
para caminhar.
Ando naufragado,
ando sem destino,
quero Tua Mão
para me salvar.

O acendedor de lampiões - Jorge de Lima

Lá vem o acendedor de lampiões da rua!
Este mesmo que vem infatigavelmente,
Parodiar o sol e associar-se à lua
Quando a sombra da noite enegrece o poente!

Um, dois, três lampiões, acende e continua
Outros mais a acender imperturbavelmente,
À medida que a noite aos poucos se acentua
E a palidez da lua apenas se pressente.

Triste ironia atroz que o senso humano irrita: —
Ele que doira a noite e ilumina a cidade,
Talvez não tenha luz na choupana em que habita.

Tanta gente também nos outros insinua
Crenças, religiões, amor, felicidade,
Como este acendedor de lampiões da rua.

Lágrima - Jorge de Lima

Ó lágrima bendita e santa e universal,
Eu te quero cantar, e este meu canto inspire-o
A feição que eu te dei, de intérprete geral
Da dor – de todo ser infalível martírio…

Que processo te faz no minério em cristal,
E na gota que luz no cálice do lírio?
Talvez tenham os dois, uma tortura igual
À tortura que funde em lágrimas o círio.

Seja embora ilusão, hei de sempre mantê-la:
- No côncavo do céu, há lágrimas astrais
E o bólide celeste é a lágrima da estrela!

Malfadadas irmãs! – são lágrimas iguais:
A resina que cobre as árvores fendidas
E a lágrima de dor das íntimas feridas!

Boneca de pano - Jorge de Lima

Boneca de pano dos olhos de conta,
Vestido de chita,
Cabelo de fita,
Cheinha de lã

De dia, de noite, os olhos abertos
Olhando os bonecos que sabem falar,
Soldados de chumbo que sabem marchar,
Calungas de mala que sabem pular.
Boneca de pano que cai, não se quebra,
Que custa um tostão.

Boneca de pano das meninas infelizes,
Que são guias de aleijados, que apanham
Pontas de cigarros, que mendigam nas esquinas,
Coitadas!

Boneca de pano de rosto parado
Como essas meninas.
Boneca sujinha, cheinha de lã.
Os olhos de conta caíram.
Ceguinha rolou na sarjeta.
O homem do lixo a levou, coberta de lama,
Nuinha assim como quis Nosso Senhor.

A mão enorme - Jorge de Lima

Dentro da noite, da tempestade,
a nau misteriosa lá vai.
O tempo passa, a maré cresce,
O vento uiva.
A nau misteriosa lá vai.
Acima dela
que mão é essa maior que o mar?
Mão de piloto?
Mão de quem é?
A nau mergulha,
o mar é escuro,
o tempo passa.
Acima da nau
a mão enorme
sangrando está.
A nau lá vai.
O mar transborda,
as terras somem,
caem estrelas.
A nau lá vai.
Acima dela
a mão eterna
lá está.