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Soneto da enseada - Lêdo Ivo


Sou sempre o que está além de mim
como a ponte de Brooklyn ao pôr-do-sol.
Sou o peixe buscado pelo anzol
e o caracol imóvel no jardim.

De mim mesmo me parto, qual navio,
e sou tudo o que vive além de mim:
o barulho da noite e o cheiro de jasmim
que corre entre as estrelas como um rio.

Quem atravessa a ponte logo aprende
que a vida é simplesmente a travessia
entre um aquém e um além que são dois nadas.

Na madrugada escura a luz se acende.
Que luz? De que vigília ou de que dia?
De que barco ancorado na enseada?


Certa Manhã - Lêdo Ivo

A vaca muge
no estábulo.

O coelho salta
na fábula.

O céu encurva:
parábola.

E os pára-sóis
amarelos

enchem a manhã
de girassóis.




Compasso de calmaria - Lêdo Ivo

Já não falo de amor aos céus de pedra
nem firo as águas com os remos sujos.
Aprendi a viver.

O pulso de meus dias canta em mim
e a poesia é o espelho do espírito.
Contemplei-me, afinal.

Das altas persianas vejo o sol
ao compasso dos bosques inativos.
Paisagens são relâmpagos.

Agora, até os anjos compreendem
minha necessidade de estar só.
Sou incomunicável.

Porém esta conquista não é dádiva.
Lutei, buscando a ilha onde pudesse
enterrar meu tesouro.

Assim estou, mais pobre do que nunca.
Tudo o que fulgurava está oculto
e jamais volverá.

Vertigem de não ser meu próprio hóspede
nem ter memória em seu firmamento,
aqui estou, sozinho.

Nem pecados, nem gestos, nem trombetas
exploram minha lenda. Estou à espera
deste reino que é a morte.





O voo dos pássaros - Lêdo Ivo


Os áridos pássaros que mudam as estações
não vieram nunca, embora eu os esperasse.

Acaso falam os homens do que viram?
Silenciosos são os lábios dos homens.

Grito ou palavra de amor não comovem
as pedras empedernidas pelo tempo.

Eram secos pássaros.
E o céu, que é plumagem, crepita.

Nem nos que voam nem nos que permanecem.
Não me demorei sobre nenhum pássaro.

Voando, eram a velha canção da infância morta
para mim, que sempre vi o que não existe
e eternamente verei o que jamais existirá.

Em voo, como os anos, a vida, o tempo...
Nada imaginei que pudesse ser admitido
pelos que não entendem uma teoria de pássaros.


A Johannes Vermeer - Lêdo Ivo




Pintas apenas formas sob vários espaços:
a moça de turbante azul, cenas, paisagens.

Fazes, Johannes Vermeer, a claridade, o sol
de tua vida obscura entre as ruas de Delft.

Operário da luz!




Vida - Lêdo Ivo


No esgoto das lembranças,
tomo pé em mares não sonhados.
Recordo o que não vi,
lembro o distante que nunca esteve próximo.
Andei longe, de pálbebras fechadas,
em dias que eram deltas,
estive aqui, ali e em qualquer parte,
no perto ou longe iguais.

Bebe, vida, na fonte das imagens
que o tangível te explica.
Come, vida, no cocho do efêmero
que o transitório é eterno
e sempre existirá unido ao tempo.
Vive o mar de ser mar.
Quero-o assim mesmo, cristal rastejante,
que vem lamber-me os pés.


O raio - Lêdo Ivo

O raio que caiu dividiu o verão.
A cisterna de luz escorrida na terra
sob a nuvem purpúrea e o vôo do gavião,
e me alcançou em cheio, no meio de mim,

como o aroma da flor que se ergue no jardim
para impor a quem passa o domínio do instante.
O sol desmoronado escondeu os seus raios
na doçura da palha espalhada no estábulo.

A serpente agoniza, mudada em coral.
A relva abre caminho ao silêncio dos homens
que escalam as montanhas douradas do outono.

Entre os que vão e vêm eu também venho e vou.
Nos tormentos do mundo fui multiplicado
e de tanto existir já não sei mais quem sou.


O dia inacabado - Lêdo Ivo



 Como todos os homens sou inacabado.
 Jamais termino de ser.
 Apos a noite breve um longo amanhecer
 me detém no umbral do dia.

 Perco o que ganho no sonho e no desejo
 quando a mim mesmo me acrescento.
 Toda vez que me somo, subtraio-me
 uma porção levada pelo vento.
 Incompleto no dia inacabado,
 livre de ser ainda como e quando,
 sigo a marcha das plantas e das estrelas.
 E o que me falta e sobra é o meu contentamento.


Os sinais - Lêdo Ivo

Saibam quantos vivem
neste mundo imenso:
Deus nao cheira a incenso.
É no estrume fresco
e na alga viscosa
que devemos ver
os sinais divinos
com os olhos de quando
éramos meninos.


A Pétala - Lêdo Ivo


Toda vida é incompleta
rosa a que falta
uma pétala.

Na escuridão
busco debalde
a tua mão.

E escuto um silvo:
É o trem que parte
da estação.


O passeio de canoa - Lêdo Ivo


Ainda hoje ouço o rumor dos remos na laguna.
Eles cortam as águas como se escavassem a terra
e separassem o amanhecer dos prodígios do dia.
A canoa desliza lentamente entre os mangues verdes e emaranhados
e a promessa do mar que fulge na foz deserta.

Os remos espalham cicatrizes na água ferida
que se abre e se refaz. A vida não é só o rumor
ou o gotejar dos remos. É também o silêncio
aberto como um pálio sobre os corpos inclinados para a água
e as almas condenadas à incerteza e ao desamparo.

Há um tempo de falar e um tempo de calar;
um tempo de dizer e um tempo de silenciar
após a aprendizagem do dia e a viagem na canoa
que sulca serenamente as águas da laguna e haverá de voltar
ao atracadouro onde a água e a terra
são verdades inseparáveis como a vida e a morte.


A moeda perdida - Lêdo Ivo


No meu sonho acho a moeda perdida.
Ela estava guardada no fundo do oceano,
na gruta de coral que os naufrágios não atingem,
no território puro onde não chega a morte.

E quando acordo sou mudo como os peixes.
A minha terra é igual ao mar, tem a pureza da água.
Todas as palavras são moedas perdidas.


A tempestade - Lêdo Ivo



Para que os cajueiros possam florir caiu esta chuva
que apagou as estrelas e encharcou os caminhos.
Água e vento derrubaram as cancelas antigas,
quebraram telhas, vergaram árvores, suprimiram cercas,
desalojaram abelhas e marimbondos,
enxotaram os pássaros predatórios,
e o galinheiro é um cemitério de pintos amarelos.

Este é o regimento do mundo: relâmpagos e raios
antes da flor e do fruto.

Primeira lição - Lêdo Ivo


Na escola primária
Ivo viu a uva
e aprendeu a ler.

Ao ficar rapaz
Ivo viu a Eva
e aprendeu a amar.


E sendo homem feito
Ivo viu o mundo,
seus comes e bebes.

Um dia num muro
Ivo soletrou
a lição da plebe.

E aprendeu a ver.
Ivo viu a ave?
Ivo viu o ovo?

Na nova cartilha
Ivo viu a greve
Ivo viu o povo.




A queimada - Lêdo Ivo

Queime tudo o que puder :
as cartas de amor
as contas telefônicas
o rol de roupas sujas
as escrituras e certidões
as inconfidências dos confrades ressentidos
a confissão interrompida
o poema erótico que ratifica a impotência
e anuncia a arteriosclerose
os recortes antigos e as fotografias amareladas.

Não deixe aos herdeiros esfaimados
nenhuma herança de papel.

Seja como os lobos : more num covil
e só mostre à canalha das ruas os seus dentes afiados.
Viva e morra fechado como um caracol.
Diga sempre não à escória eletrônica.

Destrua os poemas inacabados, os rascunhos,
as variantes e os fragmentos
que provocam o orgasmo tardio dos filólogos e escoliastas.
Não deixe aos catadores do lixo literário nenhuma migalha.
Não confie a ninguém o seu segredo.
A verdade não pode ser dita.


Minha Pátria - Lêdo Ivo


Minha pátria não é a língua portuguesa.
Nenhuma língua é a pátria.
Minha pátria é a terra mole
e peganhenta onde nasci
e o vento que sopra em Maceió.
São os caranguejos que correm na lama dos mangues
e o oceano cujas ondas
continuam molhando os meus pés quando sonho.

Minha pátria são os morcegos suspensos
no forro das igrejas carcomidas,
os loucos que dançam ao entardecer
no hospício junto ao mar,
e o céu encurvado pelas constelações.


Minha pátria são os apitos dos navios
e o farol no alto da colina.
Minha pátria é a mão do mendigo na manhã radiosa.
São os estaleiros apodrecidos
e os cemitérios marinhos
onde os meus ancestrais tuberculosos
e impaludados não param de
tossir e tremer nas noites frias
e o cheiro de açúcar nos armazéns portuários
e as tainhas que se debatem nas redes dos pescadores
e as résteas de cebola enrodilhadas na treva
e a chuva que cai sobre os currais de peixe.


A língua de que me utilizo
não é e nunca foi a minha pátria.
Nenhuma língua enganosa é a pátria.
Ela serve apenas para que eu celebre
a minha grande e pobre pátria muda,
minha pátria disentérica e desdentada,
sem gramática e sem dicionário,
minha pátria sem língua e sem palavras.


Epigrama do pássaro - Lêdo Ivo


"Precisamos deixar algo para a posteridade",
disse o poeta, contemplando o gari
que recolhia o lixo da cidade.
E o pássaro que não deixa nenhum canto após a morte
e se limita a ser vida no ar perene
que habita o instante
em silêncio pousou no ramo de uma árvore.


A passagem - Lêdo Ivo


Que me deixem passar - eis o que peço
diante da porta ou diante do caminho.
E que ninguém me siga na passagem.
Não tenho companheiros de viagem
nem quero que ninguém fique ao meu lado.
Para passar, exijo estar sozinho,
somente de mim mesmo acompanhado.
Mas caso me proíbam de passar
por ser eu diferente ou indesejado
mesmo assim passarei.
Inventarei a porta e o caminho.
E passarei sozinho.


O passeio matinal - Lêdo Ivo


Com os olhos no chão
procuro o que não perdi.

Hoje só poderei aceitar
o que vier como um presente.

A nuvem sobre a minha cabeça:
o branco balão prometido.