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Presença - Mário Quintana


É preciso que a saudade desenhe tuas linhas perfeitas,
teu perfil exato e que, apenas, levemente, o vento
das horas ponha um frêmito em teus cabelos…

É preciso que a tua ausência trescale
sutilmente, no ar, a trevo machucado,
as folhas de alecrim desde há muito guardadas
não se sabe por quem nalgum móvel antigo…

Mas é preciso, também, que seja como abrir uma janela
e respirar-te, azul e luminosa, no ar.
É preciso a saudade para eu sentir
como sinto - em mim - a presença misteriosa da vida…

Mas quando surges és tão outra e múltipla e imprevista
que nunca te pareces com o teu retrato…
E eu tenho de fechar meus olhos para ver-te.


Deixa-me seguir para o mar - Mário Quintana


Tenta esquecer-me...
Ser lembrado é como evocar
Um fantasma... Deixa-me ser o que sou,
O que sempre fui, um rio que vai fluindo...
Em vão, em minhas margens cantarão as horas,
Me recamarei de estrelas como um manto real,
Me bordarei de nuvens e de asas,
Às vezes virão a mim as crianças banhar-se...
Um espelho não guarda as coisas refletidas!
E o meu destino é seguir... é seguir para o Mar,
As imagens perdendo no caminho...
Deixa-me fluir, passar, cantar...
Toda a tristeza dos rios
É não poder parar!


O vento e a canção - Mário Quintana


Só o vento é que sabe versejar:
Tem um verso a fluir que é como um rio de ar.

E onde a qualquer momento podes embarcar:
O que ele está cantando é sempre o teu cantar.

Seu grito é o grito que querias dar,
É ele a dança que ias tu dançar.

E, se acaso quisesses te matar,
Te ensinava cantigas de esquecer.

Te ensinava cantigas de embalar...
E só um segredo ele vem te dizer:

- é que o voo do poema não pode parar.


Canção do dia de sempre - Mário Quintana


Tão bom viver dia a dia...
A vida assim, jamais cansa...

Viver tão só de momentos
Como estas nuvens no céu...

E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência... esperança...

E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.

Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.

Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!

E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas,
Atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas.


Encantação da primavera - Mário Quintana

Brotam brotinhos na tarde feita
Só de suspiros:
O amor é um vírus...
Apenas o general de bronze continua de bronze!
O vento desrespeita todos os sinais do tráfego.
Velhinhos de gravata borboleta
Sobem e descem como autogiros.
O guarda de trânsito virou catavento.
As mulheres são de todas as cores como esses
manequins expostos nas vitrinas,
E onde é que estão, me conta,
as tuas esperanças mortas?!
Lá vão elas – tão lindas – vestidas de verde
Como Ofélias levadas pelos rios em fora
Enquanto eu nem me atrevo a olhar para o alto:
repara se não é
O Espírito Santo que vem descendo em lento voo
E até ele, até Ele, deve estar assim, – todo irisado
Como os olhos das crianças,
como as maravilhosas bolinhas-de-gude!


Nos salões do sonho - Mário Quintana


Mas vocês não repararam, não?!
Nos salões do sonho nunca há espelhos...
Por quê?
Será porque somos tão nós mesmos
Que dispensamos o vão testemunho dos reflexos?
Ou, então
- e aqui começa um arrepio -
Seremos acaso tão outros?
Tão outros mesmos que não suportaríamos a visão daquilo,
Daquela coisa que nos estivesse olhando fixamente do outro lado,
Se espelhos houvesse!
Ninguém pode saber... Só o diria
Mas nada diz,
Por motivos que só ele conhece,
O misterioso Cenarista dos Sonhos!


Eu escrevi um poema triste - Mário Quintana

Eu escrevi um poema triste
E belo, apenas da sua tristeza.
Não vem de ti essa tristeza
Mas das mudanças do Tempo,
Que ora nos traz esperanças
Ora nos dá incerteza...
Nem importa, ao velho Tempo,
Que sejas fiel ou infiel...

Eu fico, junto à correnteza,
Olhando as horas tão breves...
E das cartas que me escreves
Faço barcos de papel!


Esses inquietos ventos - Mário Quintana


Esses inquietos ventos andarilhos
Passam e dizem: “Vamos caminhar.
Nós conhecemos misteriosos trilhos,
Bosques antigos onde é bom cismar...

E há tantas virgens a sonhar idílios!
E tu não vieste, sob a paz lunar
Beijar os seus entrefechados cílios
E as dolorosas bocas a ofegar...”

Os ventos vêm e batem-me a janela:
“A tua vida: Que fizeste dela?”
E chaga a morte: “Anda! Vem dormir...

Faz tanto frio...e é tão macia a cama...”
Mas toda a longa noite ainda hei de ouvir
A inquieta voz dos ventos que me chama!...



Essa lembrança - Mário Quintana


Essa lembrança que nos vem às vezes...
folha súbita que tomba
abrindo na memória a flor silenciosa
de mil e uma pétalas concêntricas...

Essa lembrança...mas de onde? de quem?
Essa lembrança talvez nem seja nossa,
mas de alguém que, pensando em nós,
só possa mandar um eco do seu pensamento
nessa mensagem pelos céus perdida...
Ai! Tão perdida que nem se possa saber mais de quem!


Uni-Verso - Mário Quintana



“Treme a folha no galho mais alto" - escrevo.
Paro e sorvo, de olhos fechados, o cheiro bom da terra, do capim chovido...
Parece que quer vir um poema...
Abro os olhos e fico olhando, interrogativamente,
a linha que escrevi no alto da página.
Depois de longo instante, acrescento-lhe três pontinhos.
Assim não ficará tão só enquanto aguarda as companheiras.
O vento fareja-me a face como um cachorro.
Eu farejo o poema.
Ah, todo o mundo sabe que a poesia está em toda parte,
mas agora cabe toda ela na folha que treme.
Por que não caberia então em um único verso?
Um uni-verso.
Treme a folha no galho mais alto.
(O resto é paisagem...)

A Rua - Mário Quintana


A rua é um rio de passos e de vozes,
um rio terrível que me vai levando,
mas estou só, como se está na infância...
ou quando a morte vai se aproximando...

No ar, agora, que distante aroma?
Decerto eu sem saber pensei em ti...
E um voo de andorinha na distância
É a minha saudade que eu te mando.

Mas tudo, nesse tumultuoso rio,
não fica ao fundo da lembrança
como no seio azul de uma redoma...

Tudo se afasta nessa correnteza
onde uma flor, às vezes, fica presa
e um claro riso sobre as águas dança!


Canção de nuvem e vento - Mário Quintana


Medo de nuvem
Medo medo
Medo da nuvem que vai crescendo
Que vai se abrindo
Que não se sabe
O que vai saindo
Medo da nuvem Nuvem Nuvem
Medo do vento
Medo do vento que vai ventando
Que vai falando
Que não se sabe
O que vai dizendo
Medo do vento Vento Vento
Medo do gesto
Mudo
Medo da fala
Surda
Que vai movendo
Que vai dizendo
Que não se sabe...
Que bem se sabe
Que tudo é nuvem que tudo é vento
Nuvem e Vento Vento!



Cântico - Mário Quintana

O vento verga as árvores, o vento clamoroso da aurora...

Tu vens precedida pelos voos altos,
Pela marcha lenta das nuvens.
Tu vens do mar, comandando as frotas do Descobrimento!
Minh'alma é trêmula da revoada dos Arcanjos.
Eu escancaro amplamente as janelas.
Tu vens montada no claro touro da aurora.
Os clarins de ouro dos teus cabelos na luz!



A música e a letra - Mário Quintana


Os pássaros pousados na pauta dos fios do telégrafo,
Eles é que vão sucessivamente improvisando
- um após outro -
A letra e a música dos ventos...



O Poema - Mário Quintana

Um poema 
como um gole d'água bebido no escuro.
Como um pobre animal palpitando ferido.
Como pequenina moeda de prata 
perdida para sempre na floresta noturna.
Um poema sem outra angústia 
que a sua misteriosa condição de poema.
Triste.
Solitário.
Único.
Ferido de mortal beleza. 


Inscrição para uma lareira - Mário Quintana


A vida é um incêndio: nela
dançamos, salamandras mágicas
Que importa restarem cinzas
se a chama foi bela e alta?
Em meio aos toros que desabam,
cantemos a canção das chamas!

Cantemos a canção da vida,
na própria luz consumida...



Canção da noite alta - Mário Quintana


Menina está dormindo.

Coração bulindo.
Mãe, por que não fechaste a janela?

É tarde, agora:
Pé ante pé
Vem vindo
O Cavaleiro do Luar.
Na sua fronte de prata
A lua se retrata.
No seu peito
Bate um coração perfeito.
No seu coração
Dorme um leão,
Dorme um leão com uma rosa na boca.
E o príncipe ergue o punhal no ar:
...um grito
aflito...
Louca!


Jazz - Mário Quintana


Deixa subirem os sons agudos,
os sons estrídulos do jazz no ar.
 Deixa subirem: são repuxos: caem…
 Apenas ficarão os arroios
correndo sem rumor dentro da noite.
 E junto a cada arroio, nos campos ermos,
 Um anjo de pedra estará postado.

O Anjo de Pedra que está sempre imóvel 
por detrás de todas as coisas –
 Em meio aos salões de baile,
entre o fragor das batalhas,
nos comícios das praças públicas –
E em cujos olhos sem pupilas, brancos e parados,
 Nada do mundo se reflete.

O poeta é belo - Mário Quintana


O poeta é belo como o Taj-Mahal
 feito de renda e mármore e serenidade

O poeta é belo como o imprevisto perfil de uma árvore
ao primeiro relâmpago da tempestade

O poeta é belo porque os seus farrapos
são do tecido da eternidade