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Horário do Fim - Mia Couto


morre-se nada 
quando chega a vez 

é só um solavanco 
na estrada por onde já não vamos 

morre-se tudo 
quando não é o justo momento 

e não é nunca 
esse momento


A ilha - Mia Couto

Passei a noite sem respirar.
Tu eras o meu mar,
meu mar,
meu tempo, minha colheita.

O quarto recolheu a noite
como um pastor, em silêncio,
convoca os seus bichos.

Quando a luz floriu
eu me ceguei de encontro à janela.

E, assim, cego
retornei ao teu ventre
como búzio
espirilando o infinito
na sua própria concha.

Não me chega o corpo que sou.
Resta-me
o desenho da lua na tua pupila.


Solidão - Mia Couto


Aproximo-me da noite
 o silêncio abre os seus panos escuros
 e as coisas escorrem
 por óleo frio e espesso

 Esta deveria ser a hora
 em que me recolheria
 como um poente
 no bater do teu peito
 mas a solidão
 entra pelos meus vidros
 e nas suas enlutadas mãos
 solto o meu delírio

 É então que surges
 com teus passos de menina
 os teus sonhos arrumados
 como duas tranças nas tuas costas
 guiando-me por corredores infinitos
 e regressando aos espelhos
 onde a vida te encarou

 Mas os ruídos da noite
 trazem a sua esponja silenciosa
 e sem luz e sem tinta
 o meu sonho resigna

 Longe
 os homens afundam-se
 com o caju que fermenta
 e a onda da madrugada
 demora-se de encontro
 às rochas do tempo 


Lições - Mia Couto


Não aprendi a colher a flor
sem esfacelar as pétalas.
Falta-me o dedo menino
de quem costura desfiladeiros.

Criança, eu sabia
suspender o tempo,
soterrar abismos
e nomear as estrelas.
Cresci,
perdi pontes,
esqueci sortilégios.

Careço da habilidade da onda,
hei-de aprender a carícia da brisa.

Trémula, a haste
me pede
o adiar da noite.

Em véspera da dádiva,
a faca me recorda, no gume do beijo,
a aresta do adeus.

Não, não aprenderei
nunca a decepar flores.

Quem sabe, um dia,
eu, em mim, colha um jardim?


Diz o meu nome - Mia Couto

Diz o meu nome
pronuncia-o
como se as sílabas
te queimassem os lábios
sopra-o com a suavidade
de uma confidência
para que o escuro apeteça
para que se desatem os teus cabelos
para que aconteça

Porque eu cresço para ti
sou eu dentro de ti
que bebe a última gota
e te conduzo a um lugar
sem tempo nem contorno

Porque apenas para os teus olhos
sou gesto e cor
e dentro de ti
me recolho ferido
exausto dos combates
em que a mim próprio me venci

Porque a minha mão infatigável
procura o interior e o avesso
da aparência
porque o tempo em que vivo
morre de ser ontem
e é urgente inventar
outra maneira de navegar
outro rumo outro pulsar
para dar esperança aos portos
que aguardam pensativos

No húmido centro da noite
diz o meu nome
como se eu te fosse estranho
como se fosse intruso
para que eu mesmo me desconheça
e me sobressalte
quando suavemente
pronunciares o meu nome


Despedida - Mia Couto


Aves marinhas soltaram-se dos teus dedos
quando anunciaste a despedida
e eu que habitara lugares secretos
e me embriagara com os teus gestos
recolhi as palavras vagabundas
como a tempestade que engole os barcos
porque ama os pescadores

Impossível separarmo-nos
agora que gravaste o teu sabor
sobre o súbito
e infinito parto do tempo

Por isso te toco
no grão e na erva
e na poeira da luz clara
a minha mão
reconhece a tua face de sal

E quando o mundo suspira
exausto
e desfila entre mercados e ruas
eu escuto sempre a voz que é tua
e que dos lábios
se desprende e se recolhe

Ali onde se embriagam
os corpos dos amantes
o teu ventre aceitou a gota inicial
e um novo habitante
enroscou-se no segredo da tua carne

Nesse lugar
encostámos os nossos lábios
à funda circulação do sangue
porque me amavas
eu acreditava ser todos os homens
comandar o sentido das coisas
afogar poentes
despertar séculos à frente
e desenterrar o céu
para com ele cobrir
os teus seios de neve



Fui Sabendo de Mim - Mia Couto


Fui sabendo de mim
por aquilo que perdia

pedaços que saíram de mim
com o mistério de serem poucos
e valerem só quando os perdia

fui ficando
por umbrais
aquém do passo
que nunca ousei

eu vi
a árvore morta
e soube que mentia


Árvore - Mia Couto

cego
de ser raiz

imóvel
de me ascender caule

múltiplo
de ser folha

aprendo
a ser árvore
enquanto
iludo a morte
na folha tombada do tempo




Manhã - Mia Couto

Estou
e num breve instante
sinto tudo
sinto-me tudo

Deito-me no meu corpo
e despeço-me de mim
para me encontrar
no próximo olhar

Ausento-me da morte
não quero nada
eu sou tudo
respiro-me até à exaustão

Nada me alimenta
porque sou feito de todas as coisas
e adormeço onde tombam a luz e a poeira

A vida (ensinaram-me assim)
deve ser bebida
quando os lábios estiverem já mortos

Educadamente mortos


Lembrança alada - Mia Couto


Em alguma vida fui ave.

Guardo memória
de paisagens espraiadas
e de escarpas em voo rasante.

E sinto em meus pés
o consolo de um pouso soberano
na mais alta copa da floresta.

Liga-me à terra
uma nuvem e seu desleixo de brancura.

Vivo a golpes com coração de asa
e tombo como um relâmpago
faminto de terra.

Guardo a pluma
que resta dentro do peito
como um homem guarda o seu nome
no travesseiro do tempo.

Em alguma ave fui vida.


Companheiros - Mia Couto

 quero
 escrever-me de homens
 quero
 calçar-me de terra
 quero ser
 a estrada marinha
 que prossegue depois do último caminho

 e quando ficar sem mim
 não terei escrito
 senão por vós
 irmãos de um sonho
 por vós
 que não sereis derrotados

 deixo
 a paciência dos rios
 a idade dos livros

 mas não lego
 mapa nem bússola
 porque andei sempre
 sobre meus pés
 e doeu-me
 às vezes
 viver
 hei-de inventar
 um verso que vos faça justiça

 por ora
 basta-me o arco-íris

 em que vos sonho
 basta-te saber que morreis demasiado
 por viverdes de menos
 mas que permaneceis sem preço

 companheiros


O espelho - Mia Couto


Esse que em mim envelhece
assomou ao espelho
a tentar mostrar que sou eu.

Os outros de mim,
fingindo desconhecer a imagem,
deixaram-me a sós, perplexo,
com meu súbito reflexo.

A idade é isto: o peso da luz
com que nos vemos.


Horário do fim - Mia Couto


Morre-se nada
quando chega a vez

é só um solavanco
na estrada por onde já não vamos

morre-se tudo
quando não é o justo momento

e não é nunca
esse momento


Identidade - Mia Couto



 Preciso ser um outro
para ser eu mesmo

Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta

Sou pólen sem insecto

Sou areia sustentando
o sexo das árvores

Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro

No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço 



Tradutor de chuvas - Mia Couto


Um lenço branco
apaga o céu.

A fala da asa
vai traduzindo chuvas:
Não há adeus
no idioma das aves.

O mundo voa
e apenas o poeta
faz companhia ao chão.