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Orfeu rebelde - Miguel Torga



Orfeu rebelde, canto como sou;
Canto como um possesso
que na casca do tempo, a canivete,
gravasse a fúria de cada momento
Canto, a ver se o meu canto compromete
A eternidade do meu sofrimento

Outros, felizes, sejam rouxinóis
Eu ergo a voz assim, num desafio,
Que o céu e a terra, pedras conjugadas
Do moinho cruel que me tritura,
Saibam que há gritos como há nortadas,
Violências famintas de ternura.

Bicho instintivo que adivinha a morte
No corpo dum poeta que a recusa,
Canto como quem usa
Os versos em legítima defesa
Canto, sem perguntar à Musa
Se o canto é de terror ou de beleza.


Poema Melancólico a não sei que Mulher - Miguel Torga


Dei-te os dias, as horas e os minutos
Destes anos de vida que passaram;
Nos meus versos ficaram
Imagens que são máscaras anónimas
Do teu rosto proibido;
A fome insatisfeita que senti
Era de ti,
Fome do instinto que não foi ouvido.

Agora retrocedo, leio os versos,
Conto as desilusões no rol do coração,
Recordo o pesadelo dos desejos,
Olho o deserto humano desolado,
E pergunto porquê, por que razão
Nas dunas do teu peito o vento passa
Sem tropeçar na graça
Do mais leve sinal da minha mão...



Quantos Seremos? - Miguel Torga

Não sei quantos seremos, mas que importa?!
Um só que fosse, e já valia a pena.
Aqui, no mundo, alguém que se condena
A não ser conivente
Na farsa do presente
Posta em cena!

Não podemos mudar a hora da chegada,
Nem talvez a mais certa,
A da partida.
Mas podemos fazer a descoberta
Do que presta
E não presta
Nesta vida.

E o que não presta é isto, esta mentira
Quotidiana.
Esta comédia desumana
E triste,
Que cobre de soturna maldição
A própria indignação
Que lhe resiste.


Não saibas: imagina - Miguel Torga


Deixa falar o mestre , e devaneia...
A velhice é que sabe, e apenas sabe
Que o mar não cabe
Na poça que a inocência abre na areia.

Sonha!
Inventa um alfabeto
De ilusões...
Um á-bê-cê secreto
Que soletres à margem das lições...


Voa pela janela
De encontro a qualquer sol que te sorria!
Asas? Não são precisas:
Vais ao colo das brisas,
Aias da fantasia...


Anunciação - Miguel Torga


Surdo murmúrio do rio,
a deslizar, pausado, na planura.
Mensageiro moroso
dum recado comprido,
di-lo sem pressa ao alarmado ouvido
dos salgueirais:
a neve derreteu
nos píncaros da serra;
o gado berra
dentro dos currais,
a lembrar aos zagais
o fim do cativeiro;
anda no ar um perfumado cheiro
a terra revolvida;
o vento emudeceu;
o sol desceu;
a primavera vai chegar, florida.


Agenda - Miguel Torga

Folheio a vida
Num calendário velho.
Dias riscados, como contas pagas.
Domingos de repouso,
Segundas de trabalho
Sábados de cansaço,
Sem nenhum sentido.
No abismo do nada,
O nada, apenas.
Quem sofreu nestas páginas vazias,
Tão frias,
Tão serenas?

Pietá - Miguel Torga


Vejo-te ainda, Mãe, de olhar parado,
Da pedra e da tristeza, no teu canto,
Comigo ao colo, morto e nu, gelado,
Embrulhado nas dobras do teu manto.

Sobre o golpe sem fundo do meu lado
Ia caindo o rio do teu pranto;
E o meu corpo pasmava, amortalhado,
De um rio amargo que adoçava tanto.

Depois, a noite de uma outra vida
Veio descendo lenta, apetecida
Pela terra-polar de que me fiz;

Mas o teu pranto, pela noite além,
Seiva do mundo, ia caindo, Mãe,
Na sepultura fria da raiz.


Prospecção - Miguel Torga

Não são pepitas de oiro que procuro.
Oiro dentro de mim, terra singela!
Busco apenas aquela
Universal riqueza
Do homem que revolve a solidão:
O tesoiro sagrado
De nenhuma certeza,
Soterrado
Por mil certezas de aluvião.
Cavo,
Lavo,
Peneiro,
Mas só quero a fortuna
De me encontrar.
Poeta antes dos versos
E sede antes da fonte.
Puro como um deserto.
Inteiramente nu e descoberto.


Ponta Seca - Miguel Torga


Remendo o coração, como a andorinha
Remenda o ninho onde foi feliz.
Artes que o instinto sabe ou adivinha...
Mas fico a olhar depois a cicatriz.


Destino - Miguel Torga


Acordo como os pássaros cativos,
Com a ária da vida nos ouvidos.
Acordo sem amarras nos sentidos.
Fiéis à sempiterna liberdade...
Nada pode vencer a lealdade
Que juraram à deusa aventureira.
Nem as grades do sono, nem a severidade
Da noite carcereira.

Acordo e recomeço
O canto interrompido:
O desvairado canto
Da ira inquieta...
-O canto que o poeta
Se obrigou a cantar
Antes de ter nascido,
Antes de a sua angústia começar.


Para a manhã - Miguel Torga

Rosa acordada, que sonhaste?
Nas pálpebras molhadas vê-se ainda
Que choraste...

Foi algum pesadelo?
Algum presságio triste?
Ou disse-te algum deus que não existe
Eternidade?

Acordaste e és bela:
Vive!
O sol enxugará esse teu pranto
Passado.

Nega o presságio com perfume e encanto!
Faz o dia perfeito e acabado!


Santo e Senha - Miguel Torga

Deixem passar quem vai na sua estrada.
Deixem passar
Quem vai cheio de noite e de luar.
Deixem passar e não lhe digam nada

Deixem, que vai apenas
Beber água de sonho a qualquer fonte;
Ou colher açucenas
A um jardim que ele lá sabe, ali defronte.

Vem da terra de todos, onde mora
E onde volta depois de amanhecer.
Deixem-no pois passar, agora

Que vai cheio de noite e solidão
Que vai ser uma estrela no chão.



Raízes - Miguel Torga

O destino plantou-me aqui
e arrancou-me daqui.
E nunca mais as raízes
me seguraram bem em nenhuma terra.


Apelo - Miguel Torga


Porque não vens agora, que te quero
E adias esta urgência?
Prometeste-me o futuro e eu desespero
O futuro é o disfarce da impotência....

Hoje, aqui, já, neste momento,
Ou nunca mais.
A sombra do alento é o desalento
O desejo o limite dos mortais.


Glória - Miguel Torga



Depois do Inverno, morte figurada,
A primavera, uma assunção de flores.
A vida
Renascida
E celebrada
Num festival de pétalas e cores.

Eternidade - Miguel Torga


A vida passa lá fora,
Ou na pressa de uma roda,
Ou na altura de uma asa,
Ou na paz de uma cantiga;
E vem guardar-se num verso
Que eu talvez amanhã diga.

Destino - Miguel Torga

 
Acordo com os pássaros cativos,
Com a ária da vida nos ouvidos,
acordo sem amarras nos sentidos,
Fiéis à sempiterna liberdade...
Nada pôde vencer a lealdade
que juraram à deusa aventureira.
Nem as grades do sono, nem a severidade
Da noite carcereira.

Acordo e recomeço

O canto interrompido:
O desvairado canto
Da ira irrequieta...
- O canto que o poeta
Se obrigou a cantar
Antes de ter nascido,
Antes de a sua angústia começar.


Exaltação - Miguel Torga



Venha!
Venha uma pura alegria
Que não tenha
Nem a senha
Nem o dia!

Abra-se a porta da vida
Sem se perguntar quem é!
E cada qual que decida
Se quer a alma aquecida
No lume da nova fé.

Venha!
Venha um sol que ninguém tenha
No seu coração gelado!
Venha
Uma fogueira de lenha
De todo o tempo passado!

Ícaro - Miguel Torga


Minhas asas humanas de poeta!
Derreteu-as o sol da lucidez.
Cego, abria-as ao vento
Da inspiração
E voava.

Mas pouco a pouco,
Como quem desperta,
Dei conta da cegueira.
E fui perdendo altura.

Agora canto apenas
Ao rés-do-chão da vida,
A olhar o descampado
Do céu azul
Aberto à graça doutras emoções.

E o canto é triste assim desiludido.
Falta-lhe a perspectiva e o sentido
Que tinha quando eu tinha as ilusões.

Água - Miguel Torga



Água a correr na fonte.
Uma quimera líquida que sai
Das entranhas do monte
A saber ao mistério que lá vai…

Pura
Branca, inodora e fria,
Cai numa pedra dura
E desfaz o mistério em melodia.