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Sinfonia para pressa e presságio - Paulo Leminski

Escrevia no espaço.
Hoje, grafo no tempo,
na pele, na palma, na pétala,
luz do momento.
Sôo na dúvida que separa
o silêncio de quem grita
do escândalo que cala,
no tempo, distância, praça,
que a pausa, asa, leva
para ir do percalço ao espasmo.

Eis a voz, eis o deus, eis a fala,
eis que a luz se acendeu na casa
e não cabe mais na sala.

Atraso pontual - Paulo Leminski


Ontens e hojes, amores e ódio,
adianta consultar o relógio?
Nada poderia ter sido feito,
a não ser o tempo em que foi lógico.
Ninguém nunca chegou atrasado.
Bênçãos e desgraças
vem sempre no horário.
Tudo o mais é plágio.
Acaso é este encontro
entre tempo e espaço
mais do que um sonho que eu conto
ou mais um poema que faço?



Objeto Sujeito - Paulo Leminski


você nunca vai saber
quanto custa uma saudade
o peso agudo no peito
de carregar uma cidade
pelo lado de dentro
como fazer de um verso
um objeto sujeito
como passar do presente
para o pretérito perfeito
nunca saber direito

você nunca vai saber
o que vem depois de sábado
quem sabe um século
muito mais lindo e mais sábio
quem sabe apenas
mais um domingo

você nunca vai saber
e isso é sabedoria
nada que valha a pena
a passagem pra Pasárgada
Xanadu ou Shangrilá
quem sabe a chave
de um poema
e olha lá



Além alma (Uma grande depois) - Paulo Leminski


    Meu coração lá de longe
faz sinal que quer voltar.
   Já no peito trago em bronze:

NÃO TEM VAGA NEM LUGAR.

   Pra que me serve um negócio
que não cessa de bater?
   Mais me parece um relógio
que acaba de enlouquecer.
   Pra que é que eu quero quem chora,
se estou tão bem assim,
   e o vazio que vai lá fora
cai macio dentro de mim?


Pergunte ao pó - Paulo Leminski

cresce a vida
cresce o tempo
cresce tudo
e vira sempre
esse momento.

cresce o ponto
bem no meio
do amor seu centro
assim como
o que a gente sente
e não diz
cresce dentro



Como pode? - Paulo Leminski

Soa estranho, esta manhã,
tudo o que sempre foi meu, como pode?
Como pode que esse som lá fora,
os sons da vida, a voz de todo dia,
pareça ficção científica?

Como pode que esta palavra,
que já vi mil vezes e mil vezes disse,
não signifique mais nada,
a não ser que o dia, a noite, a madrugada,
a não ser que tudo não é nada disso?

Pode que eu já não seja mais o mesmo.
Pode a luz, pode ser, pode céu e pode quanto.
Pode tudo o que puder poder.
Só não pode ser tanto.



Diversonagens suspersas - Paulo Leminski


Meu verso, temo, vem do berço.
Não versejo porque eu quero,
versejo quando converso
e converso por conversar.
Pra que sirvo senão pra isto,
pra ser vinte e pra ser visto,
pra ser versa e pra ser vice,
pra ser a super-superfície,
onde o verbo vem ser mais?

Não sirvo pra observar.
Verso, persevero e conservo
um susto de quem se perde
no exato lugar onde está.

Onde estará meu verso?
Em algum lugar de um lugar,
onde o avesso do inverso
começa a ver e ficar.
Por mais prosas que eu perverta,
Não permita Deus que eu perca
meu jeito de versejar.


Fazia poesia - Paulo Leminski

fazia poesia
 e a maioria saía
 tal a poesia que fazia
 fazia poesia
 e a poesia que fazia
 não é essa
 que nos faz alma vazia
 fazia poesia
 e a poesia que fazia
 tinha tamanho família
 fazia poesia
 e cada tábua que caía
 doía no coração
 fazia poesia
 e fez alto em nossa folia
 fazia tanta poesia
 que ainda vai ter
 poesia um dia


Paulo Leminski

nada que o sol
não explique
tudo que a lua
mais chique
não tem chuva
que desbote essa flor





Paulo Leminski

Vim pelo caminho difícil,
a linha que nunca termina,
a linha bate na pedra,
a palavra quebra uma esquina,

mínima linha vazia,
a linha, uma vida inteira,
palavra, palavra minha.


Paulo Leminski

podem ficar com a realidade
esse baixo astral
em que tudo entra pelo cano

eu quero viver de verdade
eu fico com o cinema americano

Contranarciso - Paulo Leminski

Em mim
Eu vejo o outro
E outro
E outro
Enfim dezenas
Trens passando
Vagões cheios de gente
Centenas

O outro
Que há em mim
É você
Você
E você

Assim como
Eu estou em você
Eu estou nele
Em nós
E só quando
Estamos em nós
Estamos em paz
Mesmo que estejamos a sós


Para umas noites que andam fazendo - Paulo Leminski,

deixe eu abrir a porta
quero ver se a noite vai bem

quem sabe a lua lua
ou nos sonhos crianças
sombras murmuram amém

deixa ver quem some antes
a nuvem estrela ou ninguém

Um Homem com uma dor - Paulo Leminski



Um homem com uma dor
é muito mais elegante
caminha assim de lado
como se chegando atrasado
andasse mais adiante

carrega o peso da dor
como se portasse medalhas
uma coroa um milhão de dólares
ou coisa que os valha

ópios édens analgésicos
não me toquem nessa dor
ela é tudo que me sobra
sofrer, vai ser minha última obra.


Luz versus luz - Paulo Leminski

de ilusão em ilusão
até a desilusão
é um passo sem solução
um abraço
um abismo
um
soluço
adeus a tudo que é bom

quem parece são não é
e os que não parecem são

Blade Runner Waltz - Paulo Leminski



Em mil novecentos e oitenta e sempre,
ah, que tempos aqueles,
dançamos ao luar, ao sol da valsa
A Perfeição do Amor Através da Dor e da Renúncia,
nome, confesso, um pouco longo,
mas os tempos, aquele tempo,
ah, não se faz mais tempo
como antigamente.

Aquilo sim é que eram horas,
dias enormes, semanas anos, minutos milênios,
e toda aquela fortuna em tempo
a gente gastava em bobagens,
amar, sonhar, dançar ao som da valsa,
aquelas falsas valsas de tão imenso nome lento
que a gente dançava em algum setembro
daqueles mil novecentos e oitenta e sempre.

Aviso aos náufragos - Paulo Leminski

Esta página, por exemplo,
não nasceu para ser lida.
Nasceu para ser pálida,
um mero plágio da Ilíada,
alguma coisa que cala,
folha que volta pro galho,
muito depois de caída.

Nasceu para ser praia,
quem sabe Andrômeda, Antártida,
Himalaia, sílaba sentida,
nasceu para ser última
a que não nasceu ainda.

Palavras trazidas de longe
pelas águas do Nilo,
um dia, esta página, papiro,
vai ter que ser traduzida,
para o símbolo, para o sânscrito,
para todos os dialetos da Índia,
vai ter que dizer bom dia
ao que só se diz ao pé do ouvido,
vai ter que ser a brusca pedra
onde alguém deixou cair o vidro.
Não é assim que é a vida?