Mostrando postagens com marcador Ruy Espinheira Filho. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Ruy Espinheira Filho. Mostrar todas as postagens

Fuga - Ruy Espinheira Filho


Escuto o tempo fluindo
no rumor azul da tarde.
E sinto-me ventar em mim
e doer bem onde arde
meu coração - doer com
incontáveis estilhaços
de idos objetos e
de mim mesmo. E escuto passos
me acompanhando : são meus
próprios passos - de ontem e antes
e hoje. Talvez amanhã.
Em seus lenços ondulantes,
o vento que sopra o tempo
oculta fundos mistérios
e do que era sorriso
compõe esses rostos sérios
que nos encaram do espelho
e de outros corpos, e vemos,
sob eles, os suaves traços
de quem em nós já perdemos.

Escuto o tempo fluindo,
fugindo. Sobe um soluço
da carne de tudo: móveis,
tecidos, metais. Que forte
é a morte! E só a memória
vive, vive-nos, e soa
seus violinos de névoa
sob um frio sol que monta
num céu de assombro: o Perdido.

Essa lenda que se amplia
no peito - já erodido
pelas distâncias - que vai
explodir em cada gota,
seixo, brilho, sombra, hálito
de alma
(essa asa rota
sangrando os seus enganos
entre as paredes do verso)

até nada se mover
sobre o extinto universo.


Circo - Ruy Espinheira Filho

Raia o sol, suspende a lua,
o palhaço está na rua.

Tremula a lona da praça,
tempos de assombro e de graça.

Ah, que gente tão risonha
nessa cidade que sonha

tigres, grifos, leões de oiro
e mulheres em voo loiro,

vindas de rússias e franças
- e acima das esperanças...

Nunca além de uma semana
permanece essa profana

prova de que Deus existe
e nem sempre a vida é triste.

Baixa o sol, se esconde a lua,
não há mais nada na rua,

caminho de pó e vento,
formigas, cão sonolento...

Porém já nada é tristonho,
- infenso a tempo e distância –

a nos sonhar essa infância.




Soneto do anjo de maio - Ruy Espinheira Filho


Então, em maio, um Anjo incendiou-me.
Em seu olhar azul havia um dia
claro como os da infância. E a alegria
entrou em mim e em sua luz tomou-me

o coração. Depois, suave, guiou-me
para mim mesmo, para o que morria,
em meu peito, de olvido. E a noite, fria,
fez-se cálida — e a mágoa desertou-me.

Já não eram as cinzas sobre o Nada,
mas rios, e ventos, e árvores, e flamas,
e montes, e horizontes sem ter fim!

Era a vida de volta, resgatada,
e nova, e para sempre, pelas chamas
desse Anjo de maio que arde em mim!


O rosto da chuva - Ruy Espinheira Filho



Esse rosto na chuva
te olha.
É uma chuva longa, uma
de muitos anos e viagens
correndo por esse rosto.

Densa como sangue, chove.
No rosto, outros rostos
cintilam,
gotas esparsas.
Assim casas, cidades, nomes,
Animais,
marés do peito abismo.

Esse rosto na chuva
te reflete
com o que a vinda,
vida,
te doou e às vezes inscreveu
tão fundo que lá não desces.

Esse rosto
na chuva que circula
em tuas veias
te punge com mil irresgatáveis
e
áspero cresce
sob a pele suave do teu rosto.

A chuva, uma história - Ruy Espinheira Filho



A chuva conta uma história
nas telhas, no chão de ardósia.

Fala do açude onde sonha
esse reflexo risonho

(e onde tão fundo sonharam
os sonhos dos afogados)

que é um menino em seu sonho
de horizontes tão longe

que lá (ele não sabia)
jamais chegaria a vida.

A chuva conta este conto
que é como um sonho em que sonha

esse menino, que se ergue
de sobre a luz do reflexo

(e vai com ele essa luz
de amplos espaços azuis)

à voz que o busca, de casa,
por sobre montes e vales

(para os ouvidos, demais
distante, mas chega à alma),

essa ternura que o chama
nas frias cinzas do ângelus

e o envolve, e o guia, cálida,
entre as ruínas da tarde,

e agora silencia
neste ermo fim do dia

de um homem, enquanto a chuva
chora no rosto dos muros.

Soneto de julho - Ruy Espinheira Filho

É muito tarde para não te amar.
Tudo o que ouço é o sopro do teu nome.
O que sinto é teu corpo, que consome
— presente, ausente — o meu corpo. Luar

em que me abraso, morro: teu olhar
ofuscando memórias, onde some
um mundo, e outro se ergue. Sede, fome
e esperança. Ah, para não te amar

é tão tarde que tudo é já distância,
que só respiro este luar que me arde,
este sopro sem praias do teu nome,

esta pedra em que pulsa e medra a ânsia
e esta aura, enfim, em que me envolve (é tarde!)
o que és — presente, ausente — e me consome.