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Noite de Abril - Sophia de Mello B. Andresen


Hoje, noite de Abril sem lua,
A minha rua
É outra rua.

Talvez por ser mais que nenhuma escura
E bailar o vento leste,
A noite de hoje veste
As coisas conhecidas de aventura.

Uma rua nova destruiu a rua do costume.
Como se sempre nela houvesse este perfume
De Vento leste e Primavera,
A sombra dos muros espera
Alguém que ela conhece.
E às vezes o silêncio estremece
Como se fosse a hora de passar alguém
Que só hoje não vem.


NO ALTO MAR - Sophia de Mello Breyner Andresen


No alto mar
A luz escorre
Lisa sobre a água.
Planície infinita
Que ninguém habita.

O Sol brilha enorme
Sem que ninguém forme
Gestos na sua luz.

Livre e verde a água ondula
Graça que não modula
O sonho de ninguém.

São claros e vastos os espaços
Onde baloiça o vento
E ninguém nunca de delícia ou de tormento
Abre neles os seus braços.


POEMA - Sophia de Mello Breyner Andresen


A minha vida é o mar o Abril a rua
O meu interior é uma atenção voltada para fora
O meu viver escuta
A frase que de coisa em coisa silabada
Grava no espaço e no tempo a sua escrita

Não trago Deus em mim mas no mundo o procuro
Sabendo que o real o mostrará

Não tenho explicações
Olho e confronto
E por método é nu meu pensamento

A terra o sol o vento o mar
São a minha biografia e são meu rosto

Por isso não me peçam cartão de identidade
Pois nenhum outro senão o mundo tenho
Não me peçam opiniões nem entrevistas
Não me perguntem datas nem moradas
De tudo quanto vejo me acrescento

E a hora da minha morte aflora lentamente
Cada dia preparada.


Eis-me - Sophia de Mello Breyner Andresen


Eis-me
Tendo-me despido de todos os meus mantos
Tendo-me separado de adivinhos mágicos e deuses
Para ficar sozinha ante o silêncio
Ante o silêncio e o esplendor da tua face.

Mas tu és de todos os ausentes o ausente
Nem o teu ombro me apoia nem a tua mão me toca
O meu coração desce as escadas do tempo em que não moras
E o teu encontro
São planícies e planícies de silêncio.

Escura é a noite
Escura e transparente
Mas o teu rosto está para além do tempo opaco
E eu não habito os jardins do teu silêncio
Porque tu és de todos os ausentes o ausente.


As minhas mãos - Sophia de Mello B. Andresen


As minhas mãos mantêm as estrelas,
Seguro a minha alma para que se não quebre
A melodia que vai de flor em flor,
Arranco o mar do mar e ponho-o em mim
E o bater do meu coração sustenta o ritmo das coisas.



Data - Sophia de Mello B. Andresen


Tempo de solidão e de incerteza
Tempo de medo e tempo de traição
Tempo de injustiça e de vileza
Tempo de negação.

Tempo de covardia e tempo de ira
Tempo de mascarada e de mentira
Tempo de escravidão.

Tempo dos coniventes sem cadastro
Tempo de silêncio e de mordaça
Tempo onde o sangue não tem rasto
Tempo da ameaça.


Eu busco o rastro de alguém - Sophia de Mello B. Andresen


Eu busco o rastro de alguém
Que o mar reflecte e contém.

Calma que eterniza as suas horas,
Ou tumulto que vibra
Nas marés desesperadas e sonoras.

Eu busco o rastro de alguém
Que ao meu encontro vem
No sonho de cada linha.
Alguém
Que no silêncio dos pinhais caminha,
Rio correndo, chama
Em tudo acesa.
Alguém que me devasta e inflama
Me destrói e me inunda de certeza.

Alguém que me devora,
Ou infinitamente longe me implora
Que venha.
Alguém que se desenha
No perfil dos montes
E sobe do fundo da terra com as fontes.


Dia de hoje - Sophia de Mello B. Andresen


Ó dia de hoje, ó dia de horas claras
Florindo nas ondas, cantando nas florestas,
No teu ar brilham transparentes festas
E o fantasma das maravilhas raras
Visita, uma por uma, as tuas horas
Em que há por vezes súbitas demoras
Plenas como as pausas dum vento.

Ó dia de hoje, ó dia de horas leves
Bailando na doçura
E na amargura
De serem perfeitas e de serem breves.


Cantar - Sophia de Mello B. Andresen


Tão longo caminho
E todas as portas
Tão longo o caminho
Sua sombra errante
Sob o sol a pino
A água de exílio
Por estradas brancas
Quanto passo andado
País ocupado
Num quarto fechado.

As portas se fecham
Fecham-se janelas
Os gestos se escondem
Ninguém lhe responde
Solidão vindima
E não querem vê-lo
Encontra silêncio
Que em sombra tornados
Naquela cidade.

Quanto passo andado
Encontrou fechadas
Como vai sozinho
Desenha as paredes
Sob as luas verdes
É brilhante e fria
Ou por negras ruas
Por amor da terra
Onde o medo impera.

Os olhos se fecham
As bocas se calam
Quando ele pergunta
Só insultos colhe
O rosto lhe viram
Seu longo combate
Silêncio daqueles
Em monstros se tornam
Tão poucos os homens.


Paisagem - Sophia de Mello B. Andresen


Passavam pelo ar aves repentinas,
O cheiro da terra era fundo e amargo,
E ao longe as cavalgadas do mar largo
Sacudiam na areia as suas crinas.

Era o céu azul, o campo verde, a terra escura,
Era a carne das árvores elástica e dura,
Eram as gotas de sangue da resina
E as folhas em que a luz se descombina.

Eram os caminhos num ir lento,
Eram as mãos profundas do vento
Era o livre e luminoso chamamento
Da asa dos espaços fugitiva.

Eram os pinheirais onde o céu poisa,
Era o peso e era a cor de cada coisa,
A sua quietude, secretamente viva,
E a sua exalação afirmativa.

Era a verdade e a força do mar largo,
Cuja voz, quando se quebra, sobe,
Era o regresso sem fim e a claridade
Das praias onde a direito o vento corre.


Senhor, libertai-nos - Sophia de Mello Breyner Andresen


Senhor libertai-nos do jogo perigoso da transparência.
No fundo do mar da nossa alma não há corais nem búzios
Mas sufocado sonho
E não sabemos bem que coisa são os sonhos
Condutores silenciosos canto surdo
Que um dia subitamente emergem
No grande pátio liso dos desastres.


Por Delicadeza - Sophia de Mello B. Andresen


Bailarina fui
Mas nunca dancei
Em frente das grades
Só três passos dei

Tão breve o começo
Tão cedo negado
Dancei no avesso
Do tempo bailado

Dançarina fui
Mas nunca bailei
Deixei-me ficar
Na prisão do rei

Onde o mar aberto
E o tempo lavado?
Perdi-me tão perto
Do jardim buscado

Bailarina fui
Mas nunca bailei
Minha vida toda
Como cega errei

Minha vida atada
Nunca a desatei
Como Rimbaud disse
Também direi:

"Juventude ociosa
Por tudo iludida
Por delicadeza
Perdi minha vida."



Como uma Flor Vermelha - Sophia de Mello B. Andresen


À sua passagem a noite é vermelha,
E a vida que temos parece
Exausta, inútil, alheia.
Ninguém sabe onde vai nem donde vem,
Mas o eco dos seus passos
Enche o ar de caminhos e de espaços
E acorda as ruas mortas.
Então o mistério das coisas estremece
E o desconhecido cresce
Como uma flor vermelha.



Hora - Sophia de Mello B. Andresen


Sinto que hoje novamente embarco
Para as grandes aventuras,
Passam no ar palavras obscuras
E o meu desejo canta --- por isso marco
Nos meus sentidos a imagem desta hora.
Sonoro e profundo
Aquele mundo
Que eu sonhara e perdera
Espera
O peso dos meus gestos.
E dormem mil gestos nos meus dedos.

Desligadas dos círculos funestos
Das mentiras alheias,
Finalmente solitárias,
As minhas mãos estão cheias
De expectativa e de segredos
Como os negros arvoredos
Que baloiçam na noite murmurando.
Ao longe por mim oiço chamando
A voz das coisas que eu sei amar.


E de novo caminho para o mar.


Barcos - Sophia de Mello Breyner Andresen


Dormem na praia os barcos pescadores
Imóveis mas abrindo
Os seus olhos de estátua

E a curva do seu bico
Rói a solidão.




Inventei - Sophia de Mello B. Andresen

Inventei a dança
para me disfarçar.

Ébria de solidão
Eu quis viver.
E cobri de gestos
a nudez da minha alma

Porque eu era semelhante
às paisagens esperando
E ninguém me podia entender.


Um dia branco - Sophia de Mello B. Andresen

Dai-me um dia branco, 
um mar de beladona
Um movimento
Inteiro, unido, adormecido
Como um só momento.

Eu quero caminhar como quem dorme
Entre países sem nome que flutuam.

Imagens tão mudas
Que ao olhá-las me pareça
Que fechei os olhos.

Um dia em que se possa não saber.



Rosto - Sophia de Mello B. Andresen


Rosto nu na luz directa.

Rosto suspenso, despido e permeável,
Osmose lenta.
Boca entreaberta como se bebesse,
Cabeça atenta.

Rosto desfeito,
Rosto sem recusa onde nada se defende,
Rosto que se dá na duvida do pedido,
Rosto que as vozes atravessam.

Rosto derivando lentamente,
Pressentindo que os laranjais segredam,
Rosto abandonado e transparente
Que as negras noites de amor em si recebem

Longos raios de frio correm sobre o mar
Em silêncio ergueram-se as paisagens
E eu toco a solidão como uma pedra.

Rosto perdido
Que amargos ventos de secura em si sepultam
E que as ondas do mar puríssimas lamentam.


Puro espírito - Sophia de Mello B. Andresen



Puro espírito do êxtase e do vento
Que no silêncio da planície danças

Eu não quero tocar teu corpo de água
Nem quero possuir-te nem cantar-te
Pesa-me já demais a minha mágoa
Sem que seja preciso procurar-te.