Canção breve - Eugénio de Andrade


Tudo me prende à terra onde me dei:
o rio subitamente adolescente,
a luz tropeçando nas esquinas,
as areias onde ardi impaciente.

Tudo me prende do mesmo triste amor
que há em saber que a vida pouco dura,
e nela ponho a esperança e o calor
de uns dedos com restos de ternura.

Dizem que há outros céus e outras luas
e outros olhos densos de alegria,
mas eu sou destas casas, destas ruas,
deste amor a escorrer melancolia. 


Ao Tempo - Dante Milano

 Tempo, vais para trás ou para diante?
O passado carrega a minha vida
Para trás e eu de mim fiquei distante,
Ou existir é uma contínua ida
E eu me persigo nunca me alcançando?
A hora da despedida é a da partida

A um tempo aproximando e distanciando…
Sem saber de onde vens e aonde irás,
Andando andando andando andando andando

Tempo, vais para diante ou para trás?


Morte morreu - Adélia Prado


Quando o ano acinzenta-se em agosto
e chove sobre árvores
que mesmo antes das chuvas já reverdeceram,
da mesma estação levantam-se
nossos queridos
e os passarinhos que ainda vão nascer.
“Ó morte, onde está tua vitória?”

Eh tempo bom, diz meu pai.
A mãe acalma-se,
tomam-se as providências sensatas.
Todos pra janela, espiar as goteiras:
"Chuva choveu, goteira pingou
Pergunta o papudo se o papo molhou".
Pergunta a menina se a vida acabou. 


Gaita de lata - Cecília Meireles


Se o amor ainda medrasse,
aqui ficava contigo,
pois gosto da tua face,

desse teu riso de fonte,
e do teu olhar antigo
de estrela sem horizonte.

Como, porém, já não medra,
cada um com a sorte sua!

(Não nascem lírios de lua
pelos corações de pedra...)



Hilda Hilst


"De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco."
Carlos Drummond de Andrade

O que ficou de mim
além de eu mesma
não o sei.
Nem o digas às crianças
porque no que ficou
a palavra de amor
está partida

imperceptível sombra
de flor no ramo frágil.
Nem o diga aos homens
Era o rio
e antes do rio havia areia.
Era praia
e depois da praia havia o mar.
Era amigo
ah! e se tivesse existido
quem sabe ficava eterno.

Nada ficou de mim
além de eu mesma.
Tênue vontade de poesia
e mesmo isso
imperceptível sombra
de flor no ramo frágil.


No descomeço era o verbo - Manoel de Barros


No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo,
lá onde a criança diz:
Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe
que o verbo escutar
não funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo,
ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta,
que é a voz de fazer nascimentos —
O verbo tem que pegar delírio.



Chuva Interior - Mário Chamie

Quando saía de casa
percebeu que a chuva
soletrava
uma palavra sem nexo
na pedra da calçada.

Não percebeu
que percebia
que a chuva que chovia
não chovia
na rua por onde
andava.

Era a chuva
que trazia
de dentro de sua casa;
era a chuva
que molhava
o seu silêncio
molhado
na pedra que carregava.

Um silêncio
feito mina,
explosivo sem palavra,
quase um fio de conversa
no seu nexo de rotina
em cada esquina
que dobrava.

Fora de casa,
seco na calçada,
percebeu que percebia
no auge de sua raiva
que a chuva não mais chovia
nas águas que imaginava.


Os mais velhos - José Saramago


São de pedra, os mais velhos. Ermos, sós.
O gesto hirto. As mãos perdidas
Da remota brandura, como pranto
Vidrado e recolhido, água rasa:
Nada o mundo vos deu: (sois vós, e basta).
Inocente da morte que aceitais,
Recolho dessas mãos de cardos secos
A herança dos nardos imortais.


A dor tem um elemento de vazio - Emily Dickinson

A dor - tem um elemento de vazio - 
 Não se consegue lembrar 
 De quando começou - ou se houve 
 Um tempo em que não existiu - 

 Não tem futuro - para lá de si própria - 
 O seu infinito contém 
 O seu passado - iluminado para aperceber 
 Novas épocas - de dor.


Dulce Pontes - Canção do Mar

A ilha - Mia Couto

Passei a noite sem respirar.
Tu eras o meu mar,
meu mar,
meu tempo, minha colheita.

O quarto recolheu a noite
como um pastor, em silêncio,
convoca os seus bichos.

Quando a luz floriu
eu me ceguei de encontro à janela.

E, assim, cego
retornei ao teu ventre
como búzio
espirilando o infinito
na sua própria concha.

Não me chega o corpo que sou.
Resta-me
o desenho da lua na tua pupila.


Agenda - Miguel Torga

Folheio a vida
Num calendário velho.
Dias riscados, como contas pagas.
Domingos de repouso,
Segundas de trabalho
Sábados de cansaço,
Sem nenhum sentido.
No abismo do nada,
O nada, apenas.
Quem sofreu nestas páginas vazias,
Tão frias,
Tão serenas?

Cecília Meireles

Em colcha florida
me deitei.
Pássaros pintados
escutei.
Grinaldas nos ares
completei.

Da morte e da vida
me lembrei.
Dias acabados
lamentei.

(Flores singulares
não bordei.
A canção trazida
não cantei.

Naveguei tormentas pelos quatro lados.
Não as amansei!
Ó grinaldas, flores, pássaros pintados,
como dormirei?)


Canção - Tasso da Silveira

O país que procuras
fica além da distância.

Talvez teu passo não o atinja
mesmo se caminhares
toda a tarde do mundo.

O país que procuras
é longe.
Existe à beira dos profundos mananciais
de genesíaco frescor.
Banha-se na clara névoa das origens,
na pura luz da infinita inocência.

Talvez teu passo não lhe atinja
a perdida fronteira,
mesmo se caminhares, caminhares
ininterruptamente
toda a noite da Vida...