Quantos Seremos? - Miguel Torga
Não sei quantos
seremos, mas que importa?!
Um só que fosse, e já
valia a pena.
Aqui, no mundo, alguém
que se condena
A não ser conivente
Na farsa do presente
Posta em cena!
Não podemos mudar a
hora da chegada,
Nem talvez a mais
certa,
A da partida.
Mas podemos fazer a
descoberta
Do que presta
E não presta
Nesta vida.
E o que não presta é
isto, esta mentira
Quotidiana.
Esta comédia desumana
E triste,
Que cobre de soturna
maldição
A própria indignação
Que lhe resiste.
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Miguel Torga
Órfã na janela - Adélia Prado
Estou com saudades de Deus,
uma saudade tão funda que me
seca
Estou como palha e nada me
conforta.
O amor hoje está tão pobre, tem
gripe
meu hálito não está para
salões.
Fico em casa esperando Deus,
cavacando a unha, fungando meu
nariz choroso,
querendo um pôster dele, no meu
quarto,
gostando igual antigamente
da palavra crepúsculo.
Que o mundo é desterro eu toda
vida soube.
Quando o sol vai-se embora é
pra casa de Deus que vai
pra casa onde está meu pai.
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Adélia Prado
Úmido - Cecília Meireles
Úmido gosto de terra,
cheiro de pedra lavada
— tempo inseguro do tempo! —
sombra do flanco da serra,
nua e fria, sem mais nada.
Brilho de areias pisadas,
sabor de folhas mordidas,
— lábio da voz sem ventura! —
suspiro das madrugadas
sem coisas acontecidas.
A noite abria a frescura
dos campos todos molhados,
— sozinha, com o seu perfume! —
preparando a flor mais pura
com ares de todos os lados.
Bem que a vida estava quieta.
Mas passava o pensamento...
— de onde vinha aquela música?
E era uma nuvem repleta,
entre as estrelas e o vento.
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Cecília Meireles
Atraso pontual - Paulo Leminski
Ontens e hojes, amores e ódio,
adianta consultar o relógio?
Nada poderia ter sido feito,
a não ser o tempo em que foi lógico.
Ninguém nunca chegou atrasado.
Bênçãos e desgraças
vem sempre no horário.
Tudo o mais é plágio.
Acaso é este encontro
entre tempo e espaço
mais do que um sonho que eu conto
ou mais um poema que faço?
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Paulo Leminski
Soneto do amigo - Vinícius de Moraes
Enfim, depois de tanto erro passado
Tantas retaliações, tanto perigo
Eis que ressurge noutro o velho amigo
Nunca perdido, sempre reencontrado.
É bom sentá-lo novamente ao lado
Com olhos que contêm o olhar antigo
Sempre comigo um pouco atribulado
E como sempre singular comigo.
Um bicho igual a mim, simples e humano
Sabendo se mover e comover
E a disfarçar com o meu próprio engano.
O amigo: um ser que a vida não explica
Que só se vai ao ver outro nascer
E o espelho de minha alma multiplica...
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Vinícius de Moraes
Sursum - Vinícius de Moraes
Eu avanço no espaço as mãos crispadas, essas mãos juntas - lembras-te?
- que o destino das coisas separou
E sinto vir se desenrolando no ar o grande manto luminoso
onde os anjos entoam madrugadas...
A névoa é como o incenso que desce e se desmancha
em brancas visões que vão subindo...
- Vão subindo as colunas do céu... (cisnes em multidão!)
como os olhares serenos estão longe!...
Oh, vitrais iluminados que vindes crescendo nas brumas da aurora,
o sangue escorre do coração dos vossos santos
Oh, Mãe das Sete Espadas...
Os anjos passeiam com pés de lã sobre as teclas dos velhos harmônios...
Oh, extensão escura de fiéis!
Cabeças que vos curvais ao peso tão leve da gaze eucarística
Ouvis? Há sobre nós um brando tatalar de asas enormes
O sopro de uma presença invade a grande floresta de mármore em ascensão.
Sentis? Há um olhar de luz passando em meus cabelos, agnus dei...
Oh, repousar a face, dormir a carne misteriosa
dentro do perfume do incenso em ondas!
No branco lajedo os passos caminham,
os anjos farfalham as vestes de seda.
Homens, derramai-vos como a semente pelo chão!
o triste é o que não pode ter amor...
Do órgão como uma colmeia os sons são abelhas eternas fugindo,
zumbindo, parando no ar.
Homens, crescei da terra como as sementes
e cantai velhas canções lembradas...
Vejo chegar a procissão de arcanjos -
seus olhos fixam a cruz da consagração que se iluminou no espaço
Cantam seus olhos azuis, tantum ergo!
- de suas cabeleiras louras brota o incêndio impalpável da destinação
Queimam... alongam em êxtase os corpos de cera,
e crepitando serenamente a cabeça em chamas
Voam - sobre o mistério
voam os círios alados cruzando o ar um frêmito de fogo!...
Oh, foi outrora, quando nascia o sol -
Tudo volta, eu dizia
- e olhava o céu onde eu não via Deus suspenso sobre o caos
como o impossível equilíbrio
Balançando o imenso turíbulo do tempo
sobre a inexistência da humana serenidade.
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Feliz Só Será - Johann Wolfgang von Goethe
Feliz só será
A alma que amar.
Estar alegre
E triste,
Perder-se a pensar,
Desejar
E recear
Suspensa em penar,
Saltar de prazer,
De aflição morrer-
Feliz só será
A alma que amar.
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Goethe
Explicação da eternidade - José Luís Peixoto
Devagar,
o tempo transforma
tudo em tempo.
o ódio transforma-se
em tempo,
o amor transforma-se
em tempo,
a dor transforma-se em
tempo.
os assuntos que
julgamos mais profundos,
mais impossíveis, mais
permanentes e imutáveis,
transformam-se devagar
em tempo.
por si só, o tempo não
é nada.
a idade é nada.
a eternidade não
existe.
no entanto, a
eternidade existe.
os instantes dos teus
olhos parados sobre mim eram eternos.
os instantes do teu
sorriso eram eternos.
os instantes do teu
corpo de luz eram eternos.
foste eterna até ao
fim.
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José Luís Peixoto
Nossa sabedoria é a dos rios - Carlos Nejar
Nossa sabedoria é a dos rios.
Não temos outra.
Persistir. Ir com os rios,
onda a onda.
Os peixes cruzarão nossos rostos vazios.
Intactos passaremos sob a correnteza
feita por nós e o nosso desespero.
Passaremos límpidos.
E nos moveremos,
rio dentro do rio,
corpo dentro do corpo,
como antigos veleiros.
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Carlos Nejar
Pablo Neruda
Amo o amor que se reparte
em beijos, leite e pão.
Amor que pode ser eterno
mas pode ser fugaz.
Amor que se quer libertar
para seguir amando.
Amor divinizado que vem vindo.
Amor divinizado que se vai.
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Pablo Neruda
A sombra - Humberto Ak'ab'al
Ele dançava
como nunca havia dançado,
e seus olhos eram para ela.
— Com quem dança ele?
Perguntou uma voz.
— Com uma sombra,
respondeu o vento.
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Humberto Ak'abal
Horário do Fim - Mia Couto
morre-se nada
quando chega a vez
é só um solavanco
na estrada por onde já não vamos
morre-se tudo
quando não é o justo momento
e não é nunca
esse momento
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Mia Couto
Epigrama nº 9 - Cecília Meireles
O vento voa,
a noite toda se atordoa,
a folha cai.
Haverá mesmo algum pensamento
sobre essa noite? sobre esse vento?
sobre essa folha que se vai?
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Cecília Meireles
Uns - Ricardo Reis
Uns, com os olhos postos no passado,
Vêem o que não vêem: outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, vêem
O que não pode ver-se.
Por que tão longe ir pôr o que está perto —
A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.
Perene flui a interminável hora
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe
o dia, porque és ele.
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Fernando Pessoa
O vento e a canção - Mário Quintana
Só o vento é que sabe versejar:
Tem um verso a fluir que é como um rio de ar.
E onde a qualquer momento podes embarcar:
O que ele está cantando é sempre o teu cantar.
Seu grito é o grito que querias dar,
É ele a dança que ias tu dançar.
E, se acaso quisesses te matar,
Te ensinava cantigas de esquecer.
Te ensinava cantigas de embalar...
E só um segredo ele vem te dizer:
- é que o voo do poema não pode parar.
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Mário Quintana
Itinerário - Cecília Meireles
Primeiro, foram os verdes
e águas e pedras da tarde,
e meus sonhos de perder-te
e meus sonhos de encontrar-te...
Mas depois houve caminhos
pelas florestas lunares,
e, mortos em meus ouvidos,
mares brancos de palavras.
Achei lugares serenos
e aromas de fonte extinta.
Raízes fora do tempo,
com flores vivas ainda.
E eram flores encarnadas,
por cima das folhas verdes.
(Entre os espinhos de prata,
só meus sonhos de perder-te...)
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Cecília Meireles
Caixinha mágica - Roseana Murray
Fabrico uma caixa mágica
para guardar o que não cabe
em nenhum lugar:
a minha sombra
em dias de muito sol,
o amarelo que sobra
do girassol,
um suspiro de beija-flor,
invisíveis lágrimas de amor.
Fabrico a caixa com vento,
palavras e desequilíbrio,
e para fechá-la
com tudo o que leva dentro,
basta uma gota de tempo.
O que é que você quer
esconder na minha caixa?
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Roseana Murray
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