Data - Sophia de Mello B. Andresen


Tempo de solidão e de incerteza
Tempo de medo e tempo de traição
Tempo de injustiça e de vileza
Tempo de negação.

Tempo de covardia e tempo de ira
Tempo de mascarada e de mentira
Tempo de escravidão.

Tempo dos coniventes sem cadastro
Tempo de silêncio e de mordaça
Tempo onde o sangue não tem rasto
Tempo da ameaça.


Balada do poeta vagabundo - Gastón Figueira


Levo pela minha estrada larga
uma balada nos lábios.
Um sorriso nos olhos
e o coração na mão.
Levo pela minha estrada larga
uma balada nos lábios...
— A recordação traz uma dor?
A dor, esqueço-a nos meus cantos.
Levo pela minha estrada larga
a balada que mais amo.
O eco canta, às vezes,
com os seus lábios invisíveis.

— Dança a chuva ou dança o vento?
— Está a tarde ensangüentada?
Como o sorriso nos olhos,
sigo o meu caminho sonhando.
Levo pela minha estrada larga
uma balada nos lábios...

E não importa que te acerques,
solidão do desencanto.
Não hei de te ver porque levo
o coração na mão,
o sorriso nos olhos
e a balada nos lábios...
Como é bom ir pela estrada
com a balada nos lábios,
o sorriso nos olhos,
e o coração na mão!


As nuvens são sombrias - Fernando Pessoa


As nuvens são sombrias
Mas, nos lados do sul,
Um bocado do céu
É tristemente azul.

Assim, no pensamento,
Sem haver solução,
Há um bocado que lembra
Que existe o coração.

E esse bocado é que é
A verdade que está
A ser beleza eterna
Para além do que há.


Cantiga para não morrer - Ferreira Gullar


Quando você for embora,
moça branca como a neve
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.


Canção - Cecília Meireles

Se não chover nem ventar,
se a lua e o sol forem limpos
e houver festa pelo mar
- ir-te-ei visitar.

Se o chão se cobrir de flor,
e o endereço estiver claro,
e o mundo livre de dor
- ir-te-ei ver, amor.

Se o tempo não tiver fim,
se a terra e o céu se encontrarem
à porta do teu jardim
- espera por mim.

Cantarei minha canção
com violas de eternamente
que são de alma e em alma estão.
- De outro modo, não.

Amor é síntese - Mirtes Mathias


Por favor não me analise
Não fique procurando cada ponto fraco meu
Se ninguém resiste a uma análise profunda
Quanto mais eu.
Ciumento, exigente, inseguro, carente
Todo cheio de marcas que a vida deixou
Vejo em cada grito de exigência
Um pedido de carência, um pedido de amor
Amor é síntese
É uma integração de dados
Não há que tirar nem pôr
Não me corte em fatias
Ninguém consegue abraçar um pedaço
Me envolva todo em seus braços
E eu serei perfeito amor.


Poema Melancólico a não sei que Mulher - Miguel Torga


Dei-te os dias, as horas e os minutos
Destes anos de vida que passaram;
Nos meus versos ficaram
Imagens que são máscaras anónimas
Do teu rosto proibido;
A fome insatisfeita que senti
Era de ti,
Fome do instinto que não foi ouvido.

Agora retrocedo, leio os versos,
Conto as desilusões no rol do coração,
Recordo o pesadelo dos desejos,
Olho o deserto humano desolado,
E pergunto porquê, por que razão
Nas dunas do teu peito o vento passa
Sem tropeçar na graça
Do mais leve sinal da minha mão...



Luz - Alice Ruiz


a luz está acesa
não importa
se você se importa
se você ora
ora não
ora sim
sempre acesa
chama perdida
chamando

a luz está tão acesa
toda ondas
se espraiando
olhando
por quem a veja

já não importa
se você está lá

a luz está


O poeta - Vinícius de Moraes


A vida do poeta tem um ritmo diferente
É um contínuo de dor angustiante.
O poeta é o destinado do sofrimento
Do sofrimento que lhe clareia a visão de beleza
E a sua alma é uma parcela do infinito distante
O infinito que ninguém sonda e ninguém compreende.

Ele é o eterno errante dos caminhos
Que vai, pisando a terra e olhando o céu
Preso pelos extremos intangíveis
Clareando como um raio de sol a paisagem da vida.
O poeta tem o coração claro das aves
E a sensibilidade das crianças.
O poeta chora.
Chora de manso, com lágrimas doces, com lágrimas tristes
Olhando o espaço imenso da sua alma.
O poeta sorri.
Sorri à vida e à beleza e à amizade
Sorri com a sua mocidade a todas as mulheres que passam.
O poeta é bom.
Ele ama as mulheres castas e as mulheres impuras
Sua alma as compreende na luz e na lama
Ele é cheio de amor para as coisas da vida
E é cheio de respeito para as coisas da morte.
O poeta não teme a morte.
Seu espírito penetra a sua visão silenciosa
E a sua alma de artista possui-a cheia de um novo mistério.
A sua poesia é a razão da sua existência
Ela o faz puro e grande e nobre
E o consola da dor e o consola da angústia.


A vida do poeta tem um ritmo diferente
Ela o conduz errante pelos caminhos, pisando a terra e olhando o céu
Preso, eternamente preso pelos extremos intangíveis.


Da Noite - Hilda Hilst


II
Que canto há de cantar o que perdura?
A sombra, o sonho, o labirinto, o caos
A vertigem de ser, a asa, o grito.
Que mitos, meu amor, entre os lençóis:
O que tu pensas gozo é tão finito
E o que pensas amor é muito mais.
Como cobrir-te de pássaros e plumas
E ao mesmo tempo te dizer adeus
Porque imperfeito és carne e perecível

E o que eu desejo é luz e imaterial.

Que canto há de cantar o indefinível?
O toque sem tocar, o olhar sem ver
A alma, amor, entrelaçada dos indescritíveis.
Como te amar, sem nunca merecer?


Meus olhos - Pablo Neruda


Quisera que meus olhos fossem duros e frios
e que ferissem fundo dentro do coração
e que nada expressassem dos meus sonhos vazios,
fosse esperança ou ilusão.
Indecifráveis sempre a todos os profanos
do fundo e suave azul da tranquila safira,
incapazes de ver os pesares humanos
ou a alegria do viver.
No entanto estes meus olhos são cândidos e tristes,
não como eu os desejo nem como devem ser.
É que estes olhos meus é o coração que os veste
e seu desgosto fá-los ver.


Rumos errados - Cora Coralina

A caminhada ...
 Amassando a terra.
 Carreando pedras.
 Construindo com as mãos
 sangrando
 a minha vida.

 Deserta a longa estrada.
 Mortas as mãos viris
 que se estendiam às minhas.
 Dentro da mata bruta
 leiteando imensos vegetais,
 cavalgando o negro corcel da febre,
 desmontado para sempre.

 Passa a falange dos mortos ...
 Silêncio! Os namorados dormem.
 Os poetas cobriram as liras.
 Flutuam véus roxos
 no espaço.


Deixa-me seguir para o mar - Mário Quintana


Tenta esquecer-me...
Ser lembrado é como evocar
Um fantasma... Deixa-me ser o que sou,
O que sempre fui, um rio que vai fluindo...
Em vão, em minhas margens cantarão as horas,
Me recamarei de estrelas como um manto real,
Me bordarei de nuvens e de asas,
Às vezes virão a mim as crianças banhar-se...
Um espelho não guarda as coisas refletidas!
E o meu destino é seguir... é seguir para o Mar,
As imagens perdendo no caminho...
Deixa-me fluir, passar, cantar...
Toda a tristeza dos rios
É não poder parar!


Noite - Cecília Meireles


Tão perto!
Tão longe!
Por onde
é o deserto?
Às vezes,
responde,
de perto,
de longe.
Mas depois
se enconde.
Somos um
ou dois?
Às vezes,
nenhum.
E em seguida,
tantos!
A vida
transborda
por todos
os cantos.
Acorda
com modos
de puro
esplendor.
Procuro
meu rumo:
horizonte
escuro:
um muro
em redor.
Em treva
me sumo.
Para onde
me leva?

Pergunto a Deus se estou viva,
se estou sonhando ou acordada.
Lábio de Deus! – Sensitiva
tocada.


Cai chuva. É noite. - Fernando Pessoa


Cai chuva. É noite. Uma pequena brisa
        Substitui o calor.
P'ra ser feliz tanta coisa é precisa.
        Este luzir é melhor.

O que é a vida? O espaço é alguém para mim.
        Sonhando sou eu só.
A luzir, em quem não tem fim
        E, sem querer, tem dó.

Extensa, leve, inútil passageira,
        Ao roçar por mim traz
Uma ilusão de sonho, em cuja esteira
        A minha vida jaz.

Barco indelével pelo espaço da alma,
        Luz da candeia além
Da eterna ausência da ansiada calma,
        Final do inútil bem.

Que se quer, e, se veio, se desconhece
        Que, se for, seria
O tédio de o haver... E a chuva cresce
        Na noite agora fria.


Quantos Seremos? - Miguel Torga

Não sei quantos seremos, mas que importa?!
Um só que fosse, e já valia a pena.
Aqui, no mundo, alguém que se condena
A não ser conivente
Na farsa do presente
Posta em cena!

Não podemos mudar a hora da chegada,
Nem talvez a mais certa,
A da partida.
Mas podemos fazer a descoberta
Do que presta
E não presta
Nesta vida.

E o que não presta é isto, esta mentira
Quotidiana.
Esta comédia desumana
E triste,
Que cobre de soturna maldição
A própria indignação
Que lhe resiste.


Órfã na janela - Adélia Prado


Estou com saudades de Deus,
uma saudade tão funda que me seca
Estou como palha e nada me conforta.
O amor hoje está tão pobre, tem gripe
meu hálito não está para salões.
Fico em casa esperando Deus,
cavacando a unha, fungando meu nariz choroso,
querendo um pôster dele, no meu quarto,
gostando igual antigamente
da palavra crepúsculo.
Que o mundo é desterro eu toda vida soube.
Quando o sol vai-se embora é pra casa de Deus que vai
pra casa onde está meu pai.


Úmido - Cecília Meireles


Úmido gosto de terra,
cheiro de pedra lavada
— tempo inseguro do tempo! —
sombra do flanco da serra,
nua e fria, sem mais nada.
Brilho de areias pisadas,
sabor de folhas mordidas,

— lábio da voz sem ventura! —
suspiro das madrugadas
sem coisas acontecidas.
A noite abria a frescura
dos campos todos molhados,

— sozinha, com o seu perfume! —
preparando a flor mais pura
com ares de todos os lados.
Bem que a vida estava quieta.
Mas passava o pensamento...
— de onde vinha aquela música?
E era uma nuvem repleta,
entre as estrelas e o vento.