Trapézio - Roseana Murray


Meu corpo oscila
entre céu e a Terra,
a noite e o dia
o mar e o deserto.

Como se num trapézio
pendurado sobre o tempo,
meu corpo oscila,
toma impulso,
e num salto
mergulha sobre a vida.


Então é você – Alice Ruiz


Então é você
que bem antes de mim
diz o que eu queria dizer
tão bem quanto eu diria.
E quem diria?
ainda melhor

Acho que teu nome é poesia
e por isso todos te chamam

Então é você
tua simples presença
preenche a minha existência
me faz ver o que eu não via.
E quem diria?
ainda melhor

Acho que teu nome é vida
e por isso todos te querem

Então é você
que quando fala
instala a compreensão
de tudo que eu seria.
E quem diria?
Ainda melhor

Acho que teu nome é amor
e por isso todos te amam

E quando todos te chamam
quem sou eu pra não chamar?

E quando todos te querem
quem sou eu pra não querer?

E porque todos te amam
“eu sei que vou te amar" ...




Poema de Natal - Vinícius de Moraes


Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.

Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.

Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.

Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.


O Mistério das Cousas - Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)


O mistério das cousas, onde está ele?
Onde está ele que não aparece
Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?
Que sabe o rio disso e que sabe a árvore?
E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso?
Sempre que olho para as cousas
E penso no que os homens pensam delas,
Rio como um regato que soa fresco numa pedra.
Porque o único sentido oculto das cousas
É elas não terem sentido oculto nenhum,
É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as cousas sejam realmente o que parecem ser
E não haja nada que compreender.

Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: —
As cousas não têm significação: têm existência.
As cousas são o único sentido oculto das cousas.


Por trás - Vera Lúcia de Oliveira

por trás do olho
sustar é perigoso

por trás do olho
respira sempre um outro
olho suspeitoso
palpar por dentro é vão
por onde um novo olho sobreposto
espreita o mesmo vão


Apontamentos - Manoel de Barros

Deixei uma ave me amanhecer.
Toda vez que a manhã está sendo começada nos
meus olhos, é assim...

Essa luz empoçada em avencas.

As avencas são cegas.
Nenhuma flor protege o silêncio quanto elas.

Ó a luz da manhã empoçada em avencas!

Sabiá de setembro tem orvalho na voz.
De manhã ele recita o sol.

Quando eu nasci
o silêncio foi aumentado.
Meu pai sempre entendeu
Que eu era torto
Mas sempre me aprumou.
Passei anos me procurando por lugares nenhuns.
Até que não me achei - e fui salvo.
Às vezes caminhava como se fosse um bulbo.

Agora estou sonhado de glicínias.

Não sei bem de que cor é a cor do amaranto.
Mas pelo amar e pelo canto
fica bem esse amaranto aí
(melhor do que se eu usasse perpétua,
que é o outro nome que se põe a essa
flor).
Amaranto murmura melhor.

Achei entre os pertences de Bernardo um vaso
de colher chuvas, um cachimbo
e um rosto de inseto dependurado na calça.
Bernardo tem fé quase assim de molusco.
Para saber dos passarinhos só precisa de suas
ignorâncias.

A voz de um passarinho me recita.

Os morros se andorinham longemente...
Eu me horizonto.
Eu sou o horizonte dessas garças.


Depois que atravessarem o muro e a tarde
os caracóis cessarão.
Às vezes cessam ao meio.
Cessam de repente, porque lhes acaba por
dentro a gosma com que sagram os seus
caminhos.
Vêm os meninos e os arrancam da parede
ocos
E com formigas por dentro passeando em seus
restos de carne.
Essas formigas são indóceis de ocos.
Ah, como serão ardentes nos caracóis os desejos
de voar!


P.S.: Caracol é uma solidão que anda na parede.


Mundo imaginário - Emílio Moura


Sob o olhar desta tarde,
quantas horas revivem
e morrem
de uma nova agonia? Velhas feridas se abrem,
de novo somos julgados, o que era tudo some-se
e num mundo fechado outras vigílias doem.

A noite se organiza e, no entanto, ainda restam
certas luzes ao longe. Ah, como encher com elas
este ser já não-ser que se dissolve e deixa
vagos traços na tarde?


Covardia - Helena Kolody


Meus olhos perscrutaram a extensão desconhecida
Da senda acidentada e inquietadora:
Era tão estranha, tão sinuosa
A estrada da vida!

Meus pés sentiram um medo misterioso
De palmilhar o mais antigo dos caminhos:
Medo do pó, medo das pedras, medo dos espinhos,
Receio daquelas sombras estranhas
Que subiam dos abismos e desciam das montanhas.

Covarde, circundei minh’alma de penumbra.

Encontrei mãos que se estenderam, tão amigas,
Oferecendo amparo certo na jornada.
Eu, porém, não confiei no auxilio de outra mão.

E fiquei isolada, fiquei esquecida
À margem do agitado caminho da vida.


Descrição - Cecília Meireles


Há uma água clara que cai sobre pedras escuras
e que, só pelo som, deixa ver como é fria.

Há uma noite por onde passam grandes estrelas puras.
Há um pensamento esperando que se forme uma alegria.


Há um gesto acorrentado e uma voz sem coragem,
e um amor que não sabe onde é que anda o seu dia.

E a água cai, refletindo estrelas, céu, folhagem...
Cai para sempre!

E duas mãos nela mergulham com tristeza,
deixando um esplendor sobre a sua passagem.

(Porque existe um esplendor e uma inútil beleza
nessas mãos que desenham dentro da água sua viagem
para fora da natureza,

onde não chegará nunca esta água imprecisa,
que nasce e desliza, que nasce e desliza...)




A espera - Adalgisa Nery

Amado... Por que tardas tanto?
As primeiras sombras se avizinham
E as estrelas iniciam a noite.
Vem...
Pois a esperança que se acolheu em meu coração
Vai deixá-lo como um ninho abandonado nos penhascos.
Vem... Amado...
desce a tua boca sobre a minha boca
Para a tua alma levar a minha alma
Pesada de sofrimento!
Vem...
Para que, beijando a minha boca
Eu receba a sensação de uma janela aberta.
Amado meu...
Por que tardas tanto?
Vem...
E serás como um ramo de rosas brancas
Pousando no túmulo da minha vida...
Vem amado meu.
Por que tardas tanto?


Melody Gardot - Good Night

Entardecer na Praia da Luz - Albano Martins


Espreguiçados, os ramos 
das palmeiras filtram 
a luz que sobra 
do dia. É já noite 
nas folhas. O branco 
das paredes recolhe 
o sangue e o vinho 
de buganvílias 
e hibiscos. Bebe-os 
de um trago: saberás 
que, mais do que cegueira, a noite 
é uma embriaguez perfeita. 



Hino Nacional - Carlos Drummond de Andrade

Precisamos descobrir o Brasil!
Escondido atrás das florestas,
com a água dos rios no meio,
o Brasil está dormindo, coitado.
Precisamos colonizar o Brasil.

O que faremos importando francesas
muito louras, de pele macia,
alemãs gordas, russas nostálgicas para
garçonettes dos restaurantes noturnos.
E virão sírias fidelíssimas.
Não convém desprezar as japonesas...

Precisamos educar o Brasil.
Compraremos professores e livros,
assimilaremos finas culturas,
abriremos dancings e subvencionaremos as elites.

Cada brasileiro terá sua casa
com fogão e aquecedor elétricos, piscina,
salão para conferências científicas.
E cuidaremos do Estado Técnico.

Precisamos louvar o Brasil.
Não é só um país sem igual.
Nossas revoluções são bem maiores
do que quaisquer outras; nossos erros também.
E nossas virtudes? A terra das sublimes paixões...
os Amazonas inenarráveis... os incríveis João-Pessoas...

Precisamos adorar o Brasil!
Se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens,
por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão
de seus sofrimentos.

Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!
Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,
ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.
O Brasil não nos quer! Está farto de nós!
Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.
Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?



As minhas mãos - Sophia de Mello B. Andresen


As minhas mãos mantêm as estrelas,
Seguro a minha alma para que se não quebre
A melodia que vai de flor em flor,
Arranco o mar do mar e ponho-o em mim
E o bater do meu coração sustenta o ritmo das coisas.



Se tudo o que há é mentira - Fernando Pessoa

Se tudo o que há é mentira,
É mentira tudo o que há.
De nada nada se tira,
A nada nada se dá.

Se tanto faz que eu suponha
Uma coisa ou não com fé,
Suponho-a se ela é risonha,
Se não é, suponho que é.

Que o grande jeito da vida
É pôr a vida com jeito.
Fana a rosa não colhida
Como a rosa posta ao peito.

Mais vale é o mais valer,
Que o resto ortigas o cobrem
E só se cumpra o dever
Para que as palavras sobrem.


Data - Sophia de Mello B. Andresen


Tempo de solidão e de incerteza
Tempo de medo e tempo de traição
Tempo de injustiça e de vileza
Tempo de negação.

Tempo de covardia e tempo de ira
Tempo de mascarada e de mentira
Tempo de escravidão.

Tempo dos coniventes sem cadastro
Tempo de silêncio e de mordaça
Tempo onde o sangue não tem rasto
Tempo da ameaça.


Balada do poeta vagabundo - Gastón Figueira


Levo pela minha estrada larga
uma balada nos lábios.
Um sorriso nos olhos
e o coração na mão.
Levo pela minha estrada larga
uma balada nos lábios...
— A recordação traz uma dor?
A dor, esqueço-a nos meus cantos.
Levo pela minha estrada larga
a balada que mais amo.
O eco canta, às vezes,
com os seus lábios invisíveis.

— Dança a chuva ou dança o vento?
— Está a tarde ensangüentada?
Como o sorriso nos olhos,
sigo o meu caminho sonhando.
Levo pela minha estrada larga
uma balada nos lábios...

E não importa que te acerques,
solidão do desencanto.
Não hei de te ver porque levo
o coração na mão,
o sorriso nos olhos
e a balada nos lábios...
Como é bom ir pela estrada
com a balada nos lábios,
o sorriso nos olhos,
e o coração na mão!


As nuvens são sombrias - Fernando Pessoa


As nuvens são sombrias
Mas, nos lados do sul,
Um bocado do céu
É tristemente azul.

Assim, no pensamento,
Sem haver solução,
Há um bocado que lembra
Que existe o coração.

E esse bocado é que é
A verdade que está
A ser beleza eterna
Para além do que há.


Cantiga para não morrer - Ferreira Gullar


Quando você for embora,
moça branca como a neve
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.