Cântico 14 – Eles te virão oferecer o ouro da Terra - Cecília Meireles
Eles te virão oferecer o ouro da Terra.
E tu dirás que não.
A beleza.
E tu dirás que não.
O amor.
E tu dirás que não, para sempre.
Eles te oferecerão o ouro d’além da Terra.
E tu dirás sempre o mesmo.
Porque tens o segredo de tudo.
E sabes que o único bem é o teu.
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Cecília Meireles
A culpa - Vera Lúcia de Oliveira
o que é
a culpa?
senão a mão que
não existe mais
aguilhoando
o mesmo cão
senão o olho desse cão
que não existe
abocanhando
a mesma mão
a culpa?
senão a mão que
não existe mais
aguilhoando
o mesmo cão
senão o olho desse cão
que não existe
abocanhando
a mesma mão
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Vera Lúcia de Oliveira
A máquina do mundo - Carlos Drummond de Andrade
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco
se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,
a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.
Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar
toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.
Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera
e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,
convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,
assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,
a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de
teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,
essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo
se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”
As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge
distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos
e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,
e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:
e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,
tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.
Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,
a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;
como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face
que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,
passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes
em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,
baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,
se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.
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Deixei de ser aquele que esperava - Fernando Pessoa
Deixei de ser aquele que esperava...
Isto é, deixei de ser quem nunca fui.
Entre onda e onda a onda não se cava,
E tudo, em seu conjunto, dura e flui.
Isto é, deixei de ser quem nunca fui.
Entre onda e onda a onda não se cava,
E tudo, em seu conjunto, dura e flui.
A seta dorme, inerme, na ampla aljava.
O presente ao futuro cria e imbui.
Se os mares erguem sua fúria brava
É que a futura paz seu ritmo obstrui.
O presente ao futuro cria e imbui.
Se os mares erguem sua fúria brava
É que a futura paz seu ritmo obstrui.
Tudo depende do que não existe.
Por isso meu ser mudo se converte
Na própria semelhança austera e triste.
Por isso meu ser mudo se converte
Na própria semelhança austera e triste.
Nada me explica. Nada me pertence.
E sobre tudo a lua alheia verte
A luz que tudo usurpa e nada vence.
E sobre tudo a lua alheia verte
A luz que tudo usurpa e nada vence.
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Dísticos - Antonio Brasileiro
Há os silêncios ocultos
e o não ter o que dizer.
Há o vulto dos passados
e a consciência calhorda.
A corda para enforcar
sustém os sinos da igreja.
Não há consertar o mundo:
o mundo é um desconcerto.
Há as tuas e as minhas raivas
e os meus e os teus perdões.
Ao cabo somos nós mesmos
inventando as soluções.
e o não ter o que dizer.
Há o vulto dos passados
e a consciência calhorda.
A corda para enforcar
sustém os sinos da igreja.
Não há consertar o mundo:
o mundo é um desconcerto.
Há as tuas e as minhas raivas
e os meus e os teus perdões.
Ao cabo somos nós mesmos
inventando as soluções.
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Pobre Velha Música! - Fernando Pessoa
Pobre velha música!
Não sei por que agrado,
Enche-se de lágrimas
Meu olhar parado.
Recordo outro ouvir-te,
Não sei se te ouvi
Nessa minha infância
Que me lembra em ti.
Com que ânsia tão raiva
Quero aquele outrora!
E eu era feliz? Não sei:
Fui-o outrora agora.
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Antes de virar gigante - Marina Colasanti
No tempo d'eu menina
os corredores eram longos
as mesas altas
as camas enormes.
A colher não cabia
na minha boca
e a tigela de sopa
era sempre mais funda
do que a fome.
No tempo d'eu menina
só gigantes moravam
lá em casa.
Menos meu irmão e eu
que éramos gente grande
vinda de Lilliput.
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Marina Colasanti
Passagem da noite - Carlos Drummond de Andrade
É noite. Sinto que é noite
não porque a sombra descesse
(bem me importa a face negra)
mas porque dentro de mim,
no fundo de mim, o grito
se calou, fez-se desânimo.
Sinto que nós somos noite,
que palpitamos no escuro
e em noite nos dissolvemos.
Sinto que é noite no vento,
noite nas águas, na pedra.
E que adianta uma lâmpada?
E que adianta uma voz?
E noite no meu amigo.
É noite no submarino.
É noite na roça grande.
É noite, não é morte, é noite
de sono espesso e sem praia.
Não é dor, nem paz, é noite,
é perfeitamente a noite.
Mas salve, olhar de alegria!
E salve, dia que surge!
Os corpos saltam do sono,
o mundo se recompõe.
Que gozo na bicicleta!
Existir: seja como for.
A fraterna entrega do pão.
Amar: mesmo nas canções.
De novo andar: as distâncias,
as cores, posse das ruas.
Tudo que à noite perdemos
se nos confia outra vez.
Obrigado, coisas fiéis!
Saber que ainda há florestas,
sinos, palavras; que a terra
prossegue seu giro, e o tempo
não murchou; não nos diluímos.
Chupar o gosto do dia!
Clara manhã, obrigado,
o essencial é viver!
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Carlos Drummond de Andrade
A ciência pode classificar - Manoel de Barros
A ciência pode classificar
e nomear os órgãos de um sabiá
mas não pode medir seus encantos.
A ciência não pode calcular
quantos cavalos de força existem
nos encantos de um sabiá.
Quem acumula muita informação
perde o condão de adivinhar: divinare.
Os sabiás divinam.
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Lamento em voz baixa - Emílio Moura
A vida que não tive
morre em mim até hoje.
Chega, límpida, pura,
sorri, pálida, foge.
A vida que não tive
salta, viva, de tudo.
Se me sorri nos olhos,
com que ilusão me iludo.
A vida que não tive
é o que há de mim em mim,
chama, orvalho, segredo
do nunca de onde vim.
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Desencanto - Manuel Bandeira
Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.
Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.
E nestes versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.
- Eu faço versos como quem morre.
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Manuel Bandeira
Presença - Mário Quintana
É preciso que a saudade desenhe tuas linhas perfeitas,
teu perfil exato e que, apenas, levemente, o vento
das horas ponha um frêmito em teus cabelos…
É preciso que a tua ausência trescale
sutilmente, no ar, a trevo machucado,
as folhas de alecrim desde há muito guardadas
não se sabe por quem nalgum móvel antigo…
Mas é preciso, também, que seja como abrir uma janela
e respirar-te, azul e luminosa, no ar.
É preciso a saudade para eu sentir
como sinto - em mim - a presença misteriosa da vida…
Mas quando surges és tão outra e múltipla e imprevista
que nunca te pareces com o teu retrato…
E eu tenho de fechar meus olhos para ver-te.
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Mário Quintana
A menina selvagem - Henriqueta Lisboa
A menina selvagem veio da aurora
acompanhada de pássaros,
estrelas-marinhas
e seixos.
Traz uma tinta de magnólia escorrida
nas faces.
Seus cabelos, molhados de orvalho e
tocados de musgo,
cascateiam brincando
com o vento.
A menina selvagem carrega punhados
de renda,
sacode soltas espumas.
Alimenta peixes ariscos e renitentes papagaios.
E há de relance, no seu riso,
gume de aço e polpa de amora.
Reis Magos, é tempo!
Oferecei bosques, várzeas e campos
à menina selvagem:
ela veio atrás das libélulas.
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Henriqueta Lisboa
Às seis da tarde - Marina Colasanti
Às seis da tarde
as mulheres choravam
no banheiro.
Não choravam por isso
ou por aquilo
choravam porque o pranto subia
garganta acima
mesmo se os filhos cresciam
com boa saúde
se havia comida no fogo
e se o marido lhes dava
do bom e do melhor
choravam porque no céu
além do basculante
o dia se punha
porque uma ânsia
uma dor
uma gastura
era só o que sobrava
dos seus sonhos.
Agora
às seis da tarde
as mulheres regressam do trabalho
o dia se põe
os filhos crescem
o fogo espera
e elas não podem
não querem
chorar na condução.
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