A Mulher Inspiradora - Rabindranath Tagore

Mulher, não és só obra de Deus;
os homens vão-te criando eternamente
com a formosura dos seus corações,
e os seus anseios
vestiram de glória a tua juventude.

Por ti o poeta vai tecendo
a sua imaginária tela de oiro:
o pintor dá às tuas formas,
dia após dia,
nova imortalidade.

Para te adornar, para te vestir,
para tornar-te mais preciosa,
o mar traz as suas pérolas,
a terra o seu oiro,
sua flor os jardins do Verão.

Mulher, és meio mulher,
meio sonho.

Infinitamente Mulher... - Gérson Severo



Água, Terra
Semente, Ventania
Estrela, Fortaleza
Asas, Alquimia
Liberdade...
Tristeza...
Alegria...
Mulher Poesia
Negra
Branca
Camponesa e Índia...
Mulher Amiga
Amante
Mãe
Vida...
Fonte Infinita...

Com licença poética - Adélia Prado

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta,
anunciou: vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem, sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa me casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza
e ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos - dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria, sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

Enya - Watermark

Água azul - José Saramago

Altos segredos escondem dentro de água
O reverso da carne, corpo ainda.
Como um punho fechado ou um bastão,
Abro o líquido azul, a espuma branca,
E por fundos de areia e madrepérola,
Desço o véu sobre os olhos assombrados.

( Na medida do gesto, a largueza do mar
E a concha do suspiro que se enrola.)

Vem a onda de longe, e foi um espasmo,
Vem o salto na pedra, outro grito:
Depois a água azul desvenda as milhas,
Enquanto um longe, e longo, e branco peixe
Desce ao fundo do mar onde nascem as ilhas.


Canção de Vidro - Mário Quintana

E nada vibrou...
Não se ouviu nada...
Nada...

Mas o cristal
nunca mais deu o mesmo som.

Cala, amigo...
Cuidado, amiga...
Uma
palavra só
Pode tudo perder para sempre...

E é tão puro o
silêncio agora!

Caio Fernando Abreu

No meio do rio, eu via a pedra.
A única naquela extensão azul de água,
o pico negro erguido em inesperada fragilidade na solidão.
Eu não tinha instrumentos para caminhar até ela, a pedra,
tomá-la nos braços,
por um instante debruçar minha ternura
sobre seu isolamento
num absurdo desejo que em sua insensibilidade de coisa
ela se fizesse sensível e, assim suavizada,
contivesse o desespero amparando-se em mim.

Por que ela se perdia assim
e assim se assumia e se cumpria em pedra,
dona de si mesma, dispensando qualquer afeto,
qualquer comunicação?
Ela se bastava.

Parecia já ter ido além da própria estrutura
num lento inventariar do mundo ao redor,
como se seu pico tivesse olhos e esses olhos
projetassem indagações em torno, avançando nas descobertas,
constatações se fazendo certezas.

E como se seu isolamento fosse deliberado,
como se já não acreditasse em mais nada
e tivesse escolhido o amparo apenas das águas,
a precária proteção do azul _ como se tivesse escolhido o vento,
a erosão, os vermes, os musgos que a roíam devagar.
Assim, da mesma forma como outros escolhem o apoio das pessoas
ou a nudez do campo, ela escolhera o desafio da entrega.
O despojamento de ser, insolucionada e completa em suas fronteiras:
pedra porque pedra fora, era e seria num sempre que a sustentava,
frágil e absoluta.

Narciso e o Caracol - Cecília Meireles

Rodai o zodíaco,
fazei girar a rosa-dos-ventos,
sacudi a ampulheta,
gastai calendários,
despojai primaveras e enfeitai outonos,
matai luas e ressuscitai luas,
trazei pessoas,
levai fantasmas,
descei e subi rios,
atravessai a terra em longo e largo,
levantai cidades e castelos de cartas,
misturai as flores dos caleidoscópios,
fechai os olhos,
abri e fechai janelas,
portas,
palavras...
Jogai para longe os vossos sapatos com a poeira de tanto andar,
e os vossos lenços com lágrimas de tanto adeus.


Navio fantasma - Arthur Rimbaud


E desde então no Poema do Mar mergulhei,
Cheio de astros, latescentes, devorando
Os verdes céus, onde às vezes se vê,
Lívido e feliz, um sonhador boiando.

Onde tingindo de repente o infinito, delírios
E ritmos lentos sob o dia em esplendor
Mais fortes que o álcool, mais vastos que nossas liras,
Fermentam as sardas amargas do amor!

Sei dos céus rasgando-se em raios, e das trombas,
Das ressacas e da noite e das correntes,
Da Alba exaltada igual a um bando de pombas,
E o que o homem acreditou ver viram meus olhos videntes!

Haydn - Symphony No. 22

Libertação - José Régio

Menino doido, olhei em roda e vi-me
fechado e só na grande sala escura.
(Abrir a porta, além de ser um crime,
Era impossível para a minha altura...)

Como passar o tempo?...E diverti-me
Desta maneira trágica e segura:
Pegando em mim, resguei-me, abri, parti-me,
Desfiz trapos, arames, serradura...

Ah menino histérico e precoce!
Tu, sim!, que tens mãos trágicas de posse,
E tens a inquietação da Descoberta!

O menino, por fim, tombou cansado;
O seu boneco aí jaz esfarelado...
e eu acho, nem sei como, a porta aberta!

A Serenata - Adélia Prado

Uma noite de lua pálida e gerânios
ele viria com boca e mãos incríveis
tocar flauta no jardim.
Estou no começo do meu desespero
e só vejo dois caminhos:
ou viro doida ou santa.
Eu que rejeito e exprobro
o que não for natural como sangue e veias
descubro que estou chorando todo dia,
os cabelos entristecidos,
a pele assaltada de indecisão.
Quando ele vier, porque é certo que vem,
de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?
A lua, os gerânios e ele serão os mesmos
— só a mulher entre as coisas envelhece.
De que modo vou abrir a janela, se não for doida?
Como a fecharei, se não for santa?

Cantata de paz - Sophia de Mello B. Andresen

Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar
Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar

Vemos, ouvimos e lemos
Relatórios da fome
O caminho da injustiça
A linguagem do terror

A bomba de Hiroshima
Vergonha de nós todos
Reduziu a cinzas
A carne das crianças

D'África e Vietname
Sobe a lamentação
Dos povos destruídos
Dos povos destroçados

Nada pode apagar
O concerto dos gritos
O nosso tempo é
Pecado organizado.

Cenário - Cecília Meireles

Eis a estrada, eis a ponte, eis a montanha
sobre a qual se recorta a igreja branca.

Eis o cavalo pela verde encosta.
Eis a soleira, o pátio e a mesma porta.

E a direção do olhar. E o espaço antigo
para a forma do gesto e do vestido.

E o lugar da esperança. E a fonte. E a sombra.
E a voz que já não fala, e se prolonga.

E eis a névoa que chega, envolve a ruas,
move a ilusão de tempos e figuras.

– A névoa que se adensa e vai formando
nublados reinos de saudade e pranto.

Paisagem noturna - Manuel Bandeira

A sombra imensa, a noite infinita enche o vale . . .
E lá do fundo vem a voz
Humilde e lamentosa
Dos pássaros da treva. Em nós,
— Em noss'alma criminosa,
O pavor se insinua . . .
Um carneiro bale.
Ouvem-se pios funerais.
Um como grande e doloroso arquejo
Corta a amplidão que a amplidão continua . . .
E cadentes, metálicos, pontuais,
Os tanoeiros do brejo,
— Os vigias da noite silenciosa,
Malham nos aguaçais.

Pouco a pouco, porém, a muralha de treva
Vai perdendo a espessura, e em breve se adelgaça
Como um diáfano crepe, atrás do qual se eleva
A sombria massa
Das serranias.

O plenilúnio vai romper . . . Já da penumbra
Lentamente reslumbra
A paisagem de grandes árvores dormentes.
E cambiantes sutis, tonalidades fugidias,
Tintas deliqüescentes
Mancham para o levante as nuvens langorosas.

Enfim, cheia, serena, pura,
Como uma hóstia de luz erguida no horizonte,
Fazendo levantar a fronte
Dos poetas e das almas amorosas,
Dissipando o temor nas consciências medrosas
E frustrando a emboscada a espiar na noite escura,
— A Lua
Assoma à crista da montanha.
Em sua luz se banha
A solidão cheia de vozes que segredam . . .

Em voluptuoso espreguiçar de forma nua
As névoas enveredam
No vale. São como alvas, longas charpas
Suspensas no ar ao longe das escarpas.
Lembram os rebanhos de carneiros
Quando,
Fugindo ao sol a pino,
Buscam oitões, adros hospitaleiros
E lá quedam tranqüilos ruminando . . .
Assim a névoa azul paira sonhando . . .
As estrelas sorriem de escutar
As baladas atrozes
Dos sapos.

E o luar úmido . . . fino . . .
Amávico . . . tutelar . . .
Anima e transfigura a solidão cheia de vozes . . .

HAIKAI - A. A. de Assis


Leio no jardim.
Ideias há e azaleias
em redor de mim.

Põe-me as mãos nos ombros - Fernando Pessoa


Põe-me as mãos nos ombros...
Beija-me na fronte...
Minha vida é escombros,
A minha alma insonte.
Eu não sei por quê,
Meu desde onde venho,
Sou o ser que vê,
E vê tudo estranho.

Põe a tua mão
Sobre o meu cabelo...
Tudo é ilusão.
Sonhar é sabê-lo.

Franz Liszt

O nascimento do mito - Murilo Mendes

A menina de cabelos cacheados
Brinca com o arco nas nuvens

Escolho as sombras que bem quero
No perfil das árvores

Conto as estrelas pelos dedos
Faltam várias ao trabalho

Alguém transporta Sirius de um lado para outro
A noite explode em magnólias

Escutas as plantas crescerem
E o diálogo sinistro contínuo
Das ondas com o horizonte

Desmontam o universo-manequim
Carregam a areia do mar
Para a ampulheta do tempo

Homens obscuros edificam
Em ligação com os elementos
O monumento do sonho
E refazem pela Ode
O que os tanques desfizera.

Água que à água torna - José Saramago

Água que à água torna, de luz franjada,
Abre-se a vaga em espuma.
Movimento perpétuo, arco perfeito,
Que se ergue, retomba e reflui.
Onda do mar que o mesmo mar sustenta,
Amor que de si próprio se alimenta.