Registro de encantamento e atestado de importância - Stela Maris Rezende
E o livro abre a vida da gente.
E quanto mais livro, mais livre, a modo e tempo
que essa livraria toda nos livra da desumanidade.
[...] A gente quer é saber mais, inventar outros modos de
olhar,
remexer num assunto complicado,
gritar uma pergunta que bem podia ficar
quietinha
pra sempre num canto da memória de toda a humanidade;
[...]Cada livro é uma pergunta terrível, misteriosa,
angustiante.
Ou uma pergunta engraçada, festosa, sacudida-sai-cedo.
Uma coisa de fantasia de verdade mentirosa verdadeira.
Um livro é um mundo onde a condição humana tem vez e voz,
registro de encantamento e atestado de importância.
Quem lê pode respirar poesia.
Pode viver de prosa.
Quem lê tem uma chave,
uma maneira mais radiante de abrir o coração,
uma passagem, uma possibilidade,
um lugar de ave que se aventura,
que deseja se livrar de
morrer de desânimo[...]"
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Stela Maris Rezende
Canção de Outono - Cecília Meireles
Perdoa-me, folha seca,
não posso cuidar de ti.
Vim para amar neste mundo,
e até do amor me perdi.
De que serviu tecer flores
pelas areias do chão,
se havia gente dormindo
sobre o própro coração?
E não pude levantá-la!
Choro pelo que não fiz.
E pela minha fraqueza
é que sou triste e infeliz.
Perdoa-me, folha seca!
Meus olhos sem força estão
velando e rogando áqueles
que não se levantarão...
Tu és a folha de outono
voante pelo jardim.
Deixo-te a minha saudade
- a melhor parte de mim.
Certa de que tudo é vão.
Que tudo é menos que o vento,
menos que as folhas do chão...
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Cecília Meireles
Valsas de Esquina de Mignone - Dora Ferreira da Silva
Só um pássaro
e seu peso de orvalho tocando
o chão como se foram teclas.
Passa onde a graça
ilumina a cidade de ferro
subitamente atenta a essa beleza.
Nos jardins teimam rosas
delicadamente.
Violetas africanas
salpicam de ouro
muros escuros
e as princesas purpúreas
espiam dos balcões verdes
nas paredes florescidas:
dançam pétalas
dança a vida
nos jardins contentes
não termina a partitura
que se repete
sempre.
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Dora Ferreira da Silva
Redemoinha o vento - Fernando Pessoa

Redemoinha o vento,
Anda à roda o ar.
Vai meu pensamento
Comigo a sonhar.
Vai saber na altura
Como no arvoredo
Se sente a frescura
Passar alta a medo.
Vai saber de eu ser
Aquilo que eu quis
Quando ouvi dizer
O que o vento diz.
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Fernando Pessoa
Como a noite descesse... - Emílio Moura

Como a noite descesse e eu me sentisse só, só e desesperado
diante dos horizontes que se fechavam
gritei alto, bem alto: ó doce e incorruptível Aurora! e vi logo:
só as estrelas é que me entenderiam.
Era preciso esperar que o próprio passado desaparecesse,
ou então voltar à infância.
Onde, entretanto, quem me dissesse
ao coração trêmulo:
– É por aqui!
Onde, entretanto, quem me dissesse
ao espírito cego:
– Renasceste: liberta-te!
Se eu estava só, só e desesperado,
por que gritar tão alto?
Por que não dizer baixinho, como quem reza:
– Ó doce e incorruptível Aurora...
se só as estrelas é que me entenderiam?
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Emílio Moura
Palavras - Manoel de Barros
Palavra dentro da qual estou
há milhões
de anos é arvore.
Pedra também.
Eu tenho precedências para
pedra.
Pássaro também.
Não posso ver nenhuma dessas
palavras que
não leve um susto.
Andarilho também.
Não posso ver a palavra
andarilho que
eu não tenha vontade de
dormir debaixo
de uma árvore.
Que eu não tenha vontade de
olhar com
espanto, de novo, aquele
homem do saco
a passar como um rei de
andrajos nos
arruados de minha aldeia.
E tem mais uma: as andorinhas,
pelo que sei, consideram os
andarilhos
como árvore.
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Manoel de Barros
Por que cantamos - Mario Benedetti
Se cada hora vem com sua morte
se o tempo é um covil de ladrões
os ares já não são tão bons ares
e a vida é nada mais que um alvo móvel
você perguntará por que cantamos
se nossos bravos ficam sem abraço
a pátria está morrendo de tristeza
e o coração do homem se fez cacos
antes mesmo de explodir a vergonha
você perguntará por que cantamos
se estamos longe como um horizonte
se lá ficaram as árvores e céu
se cada noite é sempre alguma ausência
e cada despertar um desencontro
você perguntará por que cantamos
cantamos porque o rio esta soando
e quando soa o rio / soa o rio
cantamos porque o cruel não tem nome
embora tenha nome seu destino
cantamos pela infância e porque tudo
e porque algum futuro e porque o povo
cantamos porque os sobreviventes
e nossos mortos querem que cantemos
cantamos porque o grito só não basta
e já não basta o pranto nem a raiva
cantamos porque cremos nessa gente
e porque venceremos a derrota
cantamos porque o sol nos reconhece
e porque o campo cheira a primavera
e porque nesse talo e lá no fruto
cada pergunta tem a sua resposta
cantamos porque chove sobre o sulco
e somos militantes desta vida
e porque não podemos nem queremos
deixar que a canção se torne cinzas.
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Mario Benedetti
Quando a natureza faz amor - Rosália Milsztajn
A flor estremece
De gozo
Com o beijo
Do beija-flor
O vento levanta
Eufórico as águas
que arrepiam
Em finas vagas
O mar molha
Salga
A encosta
Com sua língua
A lua cintila
Com a faixa de sêmen
Que o mar
Ejacula
O sol se excita
Em rijos raios
Que penetram
Úmidas matas
E a floresta
Cheira a sexo
Do orvalho
Da manhã
No orgasmo das nuvens
A chuva chora
E o silêncio dorme
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Rosália Milsztajn
Cantar - Sophia de Mello B. Andresen

Tão longo caminho
E todas as portas
Tão longo o caminho
Sua sombra errante
Sob o sol a pino
A água de exílio
Por estradas brancas
Quanto passo andado
País ocupado
Num quarto fechado.
As portas se fecham
Fecham-se janelas
Os gestos se escondem
Ninguém lhe responde
Solidão vindima
E não querem vê-lo
Encontra silêncio
Que em sombra tornados
Naquela cidade.
Quanto passo andado
Encontrou fechadas
Como vai sozinho
Desenha as paredes
Sob as luas verdes
É brilhante e fria
Ou por negras ruas
Por amor da terra
Onde o medo impera.
Os olhos se fecham
As bocas se calam
Quando ele pergunta
Só insultos colhe
O rosto lhe viram
Seu longo combate
Silêncio daqueles
Em monstros se tornam
Tão poucos os homens.
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Sophia de Mello B. Andresen
Charles Bukowski
inexplicavelmente estamos
sozinhos
para sempre sozinhos
e era pra ser
assim,
não era pra ser
de nenhum outro modo -
quando a luta contra a morte
começar
a última coisa que desejo ver
é
um círculo de faces humanas
pairando sobre mim -
prefiro meus velhos amigos,
e as paredes de mim mesmo,
que estejam somente eles ali.
tenho estado sozinho mas
raramente
solitário.
satisfiz minha sede
no poço
de mim mesmo
aquele vinho era bom,
o melhor que já bebi,
e esta noite
sentado
olhando a escuridão
finalmente entendo
a escuridão e a
luz e tudo que está
entre os dois.
a paz da alma e do coração
chega
quando aceitamos como
é:
ter nascido
nesta
estranha vida
devemos aceitar
as inúteis apostas de nossos
dias
e nos satisfazer com
o prazer de
deixar tudo
pra trás.
não chore por mim.
não sofra por mim.
leia
o que escrevi e
então
esqueça
tudo.
beba do poço
de você mesmo
e comece
de novo.
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Plenitude - Hélio Pellegrino

A pedra, o vento, a luz alteada,
o salso mar eterno, o grito
do mergulhão, sob o infinito azul:
— Deus não me deve nada.
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Chuva - Francisco Bugalho
Chuva, caindo tão mansa,
Na paisagem do momento,
Trazes mais esta lembrança
De profundo isolamento.
Chuva, caindo em silêncio
Na tarde, sem claridade...
A meu sonhar d'hoje, vence-o
Uma infinita saudade.
Chuva, caindo tão mansa,
Em branda serenidade.
Hoje minh'alma descansa.
— Que perfeita intimidade!...
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Falar - Ferreira Gullar

A poesia é, de fato, o fruto
de um silêncio que sou eu, sois vós,
por isso tenho que baixar a voz
porque, se falo alto, não me escuto.
A poesia é, na verdade, uma
fala ao revés da fala,
como um silêncio que o poeta exuma
do pó, a voz que jaz embaixo
do falar e no falar se cala.
Por isso o poeta tem que falar baixo
baixo quase sem fala em suma
mesmo que não se ouça coisa alguma.
por isso tenho que baixar a voz
porque, se falo alto, não me escuto.
A poesia é, na verdade, uma
fala ao revés da fala,
como um silêncio que o poeta exuma
do pó, a voz que jaz embaixo
do falar e no falar se cala.
Por isso o poeta tem que falar baixo
baixo quase sem fala em suma
mesmo que não se ouça coisa alguma.
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Acordo de noite, muito de noite, no silêncio todo - Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)
Acordo de noite, muito de
noite, no silêncio todo.
São — tictac visível — quatro
horas de tardar o dia.
Abro a janela directamente,
no desespero da insónia.
E, de repente, humano,
O quadrado com cruz de uma
janela iluminada!
Fraternidade na noite!
Fraternidade involuntária,
incógnita, na noite!
Estamos ambos despertos e a
humanidade é alheia.
Dorme. Nós temos luz.
Quem serás? Doente, moedeiro
falso, insone simples como eu?
Não importa. A noite eterna,
informe, infinita,
Só tem, neste lugar, a
humanidade das nossas duas janelas,
O coração latente das nossas
duas luzes,
Neste momento e lugar,
ignorando-nos, somos toda a vida.
Sobre o parapeito da janela
da traseira da casa,
Sentindo húmida da noite a
madeira onde agarro,
Debruço-me para o infinito e,
um pouco, para mim.
Nem galos gritando ainda no
silêncio definitivo!
Que fazes, camarada, da
janela com luz?
Sonho, falta de sono, vida?
Tom amarelo cheio da tua
janela incógnita...
Tem graça: não tens luz
eléctrica.
Ó candeeiros de petróleo da
minha infância perdida!
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Canto de Muro - Fernando Py
o garoto chorava
num canto de muro
a Terra findava
num canto de muro
a noite pousava
crepúsculo sujo
de rua asfaltada.
Num canto de muro
nem Deus se encontrava
num canto de muro
blasfêmia gravada
num canto de muro
o diabo urinava
no chão sem futuro
da terra ensombrada.
Num canto de muro
o sol desmaiava
e a noite tranquila
o solo ocupava
— a posse, tão fria
(terreno tão duro)
teu ângulo diedro,
parede, rachado.
Num canto de muro
esquina forçada
o mundo vivia
e o mundo acabava.
Num canto de muro
a sombra vazia
prepara o futuro
da nova cidade.
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