Sentimento do tempo - Paulo Mendes Campos

Os sapatos envelheceram depois de usados
Mas fui por mim mesmo aos mesmos descampados
E as borboletas pousavam nos dedos de meus pés.

As coisas estavam mortas, muito mortas,
Mas a vida tem outras portas, muitas portas.

Na terra, três ossos repousavam
Mas há imagens que não podia explicar: me ultrapassavam.

As lágrimas correndo podiam incomodar
Mas ninguém sabe dizer por que deve passar
Como um afogado entre as correntes do mar.

Ninguém sabe dizer por que o eco embrulha a voz
Quando somos crianças e ele corre atrás de nós.

Fizeram muitas vezes minha fotografia
Mas meus pais não souberam impedir
Que o sorriso se mudasse em zombaria
Sempre foi assim: vejo um quarto escuro
Onde só existe a cal de um muro.

Costumo ver nos guindastes do porto
O esqueleto funesto de outro mundo morto
Mas não sei ver coisas mais simples como a água.

Fugi e encontrei a cruz do assassinado
Mas quando voltei, como se não houvesse voltado,
Comecei a ler um livro e nunca mais tive descanso.

Meus pássaros caíam sem sentidos.
No olhar do gato passavam muitas horas
Mas não entendia o tempo àquele tempo como agora.

Não sabia que o tempo cava na face
Um caminho escuro, onde a formiga passe
Lutando com a folha.

O tempo é meu disfarce.



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