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Esse despojamento - Henriqueta Lisboa


Esse despojamento
 esse amargo esplendor.
 Beleza em sombra
 sacrifício incruento.

 A mão sem jóias
 descarnada
 na pureza das veias.
 A voz por um fio
 desnuda
 na palavra sem gesto.

 O escuro em torno
 e a lucidez
 violenta lucidez terrível
 batida de encontro ao rosto
 como uma ofensa física.

 Na imensidade sem pouso,
 olhos duros
 de pássaro.


A menina selvagem - Henriqueta Lisboa


A menina selvagem veio da aurora
acompanhada de pássaros,
estrelas-marinhas
e seixos.
Traz uma tinta de magnólia escorrida
nas faces.
Seus cabelos, molhados de orvalho e
tocados de musgo,
cascateiam brincando
com o vento.
A menina selvagem carrega punhados
de renda,
sacode soltas espumas.
Alimenta peixes ariscos e renitentes papagaios.
E há de relance, no seu riso,
gume de aço e polpa de amora.


Reis Magos, é tempo!
Oferecei bosques, várzeas e campos
à menina selvagem:
ela veio atrás das libélulas.


Esse despojamento - Henriqueta Lisboa

Esse despojamento
 esse amargo esplendor.
 Beleza em sombra
 sacrifício incruento.

 A mão sem jóias
 descarnada
 na pureza das veias.
 A voz por um fio
 desnuda
 na palavra sem gesto.

 O escuro em torno
 e a lucidez
 violenta lucidez terrível
 batida de encontro ao rosto
 como uma ofensa física.

 Na imensidade sem pouso,
 olhos duros
 de pássaro.


Infância - Henriqueta Lisboa


E volta sempre a infância
com suas íntimas, fundas amarguras.
Oh! por que não esquecer
as amarguras
e somente lembrar o que foi suave
ao nosso coração de seis anos?

A misteriosa infância
ficou naquele quarto em desordem,
nos soluços de nossa mãe
junto ao leito onde arqueja uma criança;

nos sobrecenhos de nosso pai
examinando o termomêtro: a febre subiu;
e no beijo de despedida à irmãzinha
à hora mais fria da madrugada.

A infância melancólica
ficou naqueles longos dias iguais,
a olhar o rio no quintal horas inteiras,
a ouvir o gemido dos bambus verde-negros
em luta sempre contra as ventanias!

A infância inquieta
ficou no medo da noite
quando a lamparina vacilava mortiça
e ao derredor tudo crescia escuro, escuro...

A menininha ríspida
nunca disse a ninguém que tinha medo,
porém Deus sabe como seu coração batia no escuro,
Deus sabe como seu coração ficou para sempre diante da vida
— batendo, batendo assombrado!



Ciranda de mariposas - Henriqueta Lisboa


Vamos todos cirandar
ciranda de mariposas.
Mariposas na vidraça
são jóias, são brincos de ouro.
Ai! poeira de ouro translúcida
bailando em torno da lâmpada.
Ai! fulgurantes espelhos
refletindo asas que dançam.
Estrelas são mariposas
(faz tanto frio na rua!)
batem asas de esperança
contra as vidraças da lua.


O dia azul - Henriqueta Lisboa


O dia azul antecipou-se
ao lento despertar dos bosques.
Tudo azul! diziam em coro
os de pálpebras abertas.
Porém os olhos em refolhos
só descobriam sobre a relva
a minudência dos miosótis.

O dia azul veio em atraso
na esperança de contemplado.
É tempo ainda azul sem nuvens!
aunciavam vozes de alerta.
Porém os olhos em refolhos
já se esqueciam junto à relva
na intimidade dos miosótis;


As Coleções - Henriqueta Lisboa

Em primeiro lugar as magnólias.
Com seus cálices
e corolas: aquarelas
de todas as tonalidades e suma
delicadeza do toque.
Pequena aurora diluída
com doçura, nos tanques.

Depois a música: frêmito
e susto de pássaro.
As valsas – que sorrateiras. E as flautas.
As noites com flauta sob a janela
inaugurando a lua nascida
para o suspirado amor.

Mais tarde os campos, as grutas,
a maravilha. E o caos.
Com seus favos e suas hidras,
o mundo. O mar com seus apelos,
horizontes para o éter,
desespero em mergulho.

Com o tempo, o ocaso. As lentas
plumas, os reposteiros
com seus moucos ouvidos,
a tíbia madeira para
o resguardo das cinzas,
as entabulações – e com que recuos –
da paz.

Finalmente os endurecidos espelhos,
os cristais sob o quebra-luz,
dos ângulos o verniz,
o ouro com parcimônia, a prata,
o marfim com seus esqueletos.


A Ovelha - Henriqueta Lisboa

Encontrastes acaso
a ovelha desgarrada?
A mais tenra
do meu rebanho?
A que despertava ao primeiro
contato do sol?
A que buscava a água sem nuvens
para banhar-se?
A que andava solitária entre as flores
e delas retinha a fragrância
na lã doce e fina?
A que temerosa de espinhos
aos bosques silvestres
preferia o prado liso, a relva?
A que nos olhos trazia
uma luz diferente
quando à tarde voltávamos
ao aprisco?
A que nos meus joelhos brincava
tomada às vezes de alegria louca?
A que se dava em silêncio
ao refrigério da lua
após o longo dia estival?
A que dormindo estremecia
ao menor sussurro de aragem?

Encontrastes acaso
a mais estranha e dócil
das ovelhas?
Aquela a que no coração eu chamava
– a minha ovelha?


Passarinho - Henriqueta Lisboa

Passarinho não canta,
Passarinho não come,
passarinho não bebe.

Passarinho anda triste.

O que foi passarinho?
Mudas as penas, tens febre?
Não te dou alface, alpiste,
água clara? O companheiro? ...

Passarinho quieto, quieto,
nas próprias asas se esconde.

O companheiro levou-te
a voz, a garganta, o bico ?

Enterraram-se com ele

no lodo negro as escalas
aéreas de trampolim,
as teclas, o arco, o violino
e o piano de tua musica?

Era dele que te vinha
a auréola, o entono, o donaire
com que a cabecinha erguias
a esfuziar azougue, prata
liquida, com volutas
e arabescos de medalha?

Era dele que te vinha
o frêmito de ouro, o gozo
de jóia, pérola a perola
no aveludado dos trinos?
o arrepio de carícia
longo, fino, contagioso
de lua, de cisnes, de água
descendo, em fio, a colina?

Era dele que te vinha
tudo isto, o sol, as estrelas
o brilho do canto, as quentes
auroras na areia, ao vento
as espigas ondulando,
musgos nascendo nas pedras,
campos abertos, batidos
de lavoura, nas soalheiras?

Era dele que te vinha
aquele vinho furtivo
na espessura da folhagem
verde-jalde chuva, arco-íris
de paina tênue, delícia
de malvas brotando,
sombra de cílios no rosto, espera
do que vem trêmuloi e próximo? ...

Passarinho quieto, quieto.


Segredo - Henriqueta Lisboa




Andorinha no fio
Escutou um segredo
Foi à torre da Igreja.
Cochichou com o sino.
E o sino bem alto:
delém-dem
delém-dem
delém-dem
delém-dem!


Toda a cidade
Ficou sabendo.

Caboclo-d'Água - Henriqueta Lisboa

Caboclo-d'água Ô
caboclo-d'água.

Caboclo-d'água
vem de noite
— assombração.

Caboclo-d'água
molengão
tocando viola.

Caboclo-d'água
vá-se embora
vá-se embora
caboclo-d'àgua
não me chame
não!

A chuva é muita
sobe o rio
no barranco.

O vento chora
mais que reza
uma oração.

Acende a vela
minha gente,
eu tenho medo.

Eu tenho medo
de afogar
na escuridão.


Assim é o medo - Henriqueta Lisboa,

Assim é o medo:
cinza
Verde.
Olhos de lince.
Voz sem timbre
Torvo e morno
Melindre.

Da sombra espreita
à espera de algo

que o alente.
Não age: tenta
porém recua
a qualquer bulha.

No campo assiste
junto ao títere
à cruz que esparze
vivo gazeio
de nervosismo
com vidro moído
grácil granizo
de pássaros.

E que rascante
violino brusco
não arrepia
ao longo o azul
dos meus veludos
se, a noite em meio
cá no fundo
quarto escuro,
a lua arrisca
numa oblíqua
o olhar morteiro.

Dentro da jaula
(mundo inapto)
do domador
em fúria à fera
subsinuosa-
mente resvala.

Aos frios reptos
do ziguezague
em choque, súbito
relampagueio,

as duas forças
se opõem dúbias
se atraem foscas
para a luta
pelo avesso:
despiste e fuga
ouro e vermelho
desde a entranha.

As duas forças
antagônicas:
qual delas ganha
acaso
ou perde
o medo
frente a
frente ao
medo?


Verde - Henriqueta Lisboa



É verde a vida que se escoa
dos alvéolos da primavera
É verde o fruto que não doa
verdor a quem desespera

Estala o verde do vergel
em longos talos dobradiços
para mesclar-se no aranzel
que vai do avesso à superfície

A lua verde com o susto
o logro o oposto a falência
o rosto verde à luz da lua
da demência.

Serena - Henriqueta Lisboa



Essa ternura grave
que me ensina a sofrer
em silêncio, na suavi-
dade do entardecer,
menos que pluma de ave
pesa sobre meu ser.
E só assim, na levi-
tação da hora alta e fria,
porque a noite me leve,
sorvo, pura, a alegria,
que outrora, por mais breve,
de emoção me feria.

Primavera - Henriqueta Lisboa


Depois do inverno que fora rude
e fechara os caminhos com seus passos de neve,
certa manhã em que havia bailado de borboletas,
desabrochou à altura de minha janela
dentre o verde das folhas tenras,
a primeira rosa vermelha
do meu jardim orvalhado de lágrimas.

Essa rosa era tua, Senhor, era tua,
viera ao mundo para dar-te um momento de glória,
ascender a ti nas asas do aroma
e desfolhar-se, após, delicadamente a teus pés,
em grandes gotas de sangue.

Mas o inverno fora rude,
os caminhos tinham estado fechados pela neve
e as borboletas bailavam tão levemente aquela manhã,
que tomei para mim tua rosa vermelha
e escondi minha face entre suas pétalas
e aspirei seu perfume
e me feri por gosto nos seus espinhos
e tão sofregamente a acariciei,
que ela se desfolhou contra o meu coração.

Os lírios - Henriqueta Lisboa

Certa madrugada fria
irei de cabelos soltos
ver como crescem os lírios.

Quero saber como crescem
simples e belos – perfeitos! –
ao abandono dos campos.

Antes que o sol apareça,
neblina rompe neblina
com vestes brancas, irei.

Irei no maior sigilo
para que ninguém perceba
contendo a respiração.

Sobre a terra muito fria
dobrando meus frios joelhos
farei perguntas à terra.

Depois de ouvir-lhe o segredo
deitada por entre os lírios
adormecerei tranqüila.

Do supérfluo - Henriqueta Lisboa


Também as cousas participam
de nossa vida. Um livro. Uma rosa.
Um trecho musical que nos devolve
a horas inaugurais. O crepúsculo
acaso visto num país
que não sendo da terra
evoca apenas a lembrança
de outra lembrança mais longínqua.
O esboço tão-somente de um gesto
de ferina intenção. A graça
de um retalho de lua
a pervagar num reposteiro
A mesa sobre a qual me debruço
cada dia mais temerosa
de meus próprios dizeres.
Tais cousas de íntimo domínio
talvez sejam supérfluas.
No entanto
que tenho a ver contigo
se não leste o livro que li
não viste a rosa que plantei
nem contemplaste o pôr-do-sol
à hora em que o amor se foi?
Que tens a ver comigo
se dentro em ti não prevalecem
as cousas — todavia supérfluas —
do meu intransferível patrimônio?

Fidelidade - Henriqueta Lisboa


Ainda agora e sempre
o amor complacente.
De perfil de frente
com vida perene.
E se mais ausente
a cada momento
tanto mais presente
com o passar do tempo
à alma que consente
no maior silêncio
em guardá-lo dentro
de penumbra ardente
sem esquecimento
nunca para sempre
doloridamente.