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Lacaniana - Artur da Távola


Fui o que discursaram
Sobre o que eu seria.
Sério, não discursei
Sobre o que eu queria.
Sou o que falaram
Sujeito ao que não quis.
Feito onde me perdi de ser
Vivo a renunciar-me.
Faleço onde sou falácia
Salva-me o saber-me perda.
Sujeito ao que falaram
Sou o que me falha.
Será o pecado original o exílio do ser?
Salva-me a esperança de individuar,
De zen vou ver.


Tempo - Artur da Távola

Hoje eu sou poesia,
Pedaço de nuvem
Nas mãos do teu dia.

Eu sou amargura,
Espaço de espanto
Num céu de loucura.

Hoje eu quero ser jardim,
Temporada de espanto
No sorriso de teu sim.

Agora vai ser a vez
Da esperança sem lança,
Da amizade sem força,
Do afago sem sexo,
Do sexo sem falsa noção de esmagar.

Chegou o tempo
De ser
E amar.


Ato de contrição - Artur da Távola


Ah, como somos comedidos!
Acomodamo-nos, vãos,
nos limites do concebido.

Somos bem educados, cultos,
e ruge tanta fome
nos apetites fora do concedido.

Ah, como somos sob medida!
sub metidos, hirtos, bem vestidos,
robôs impecáveis, ilusão de vida.

Ah, somos como os subvertidos,
introvertida soma de extrovertidos
por pompa, tinta, arroto ou brilhantina.

Filhos do instante, do entanto e do porém,
somos através, como os vidros,
mas opacos e pervertidos, sempre aquém.

Traçamos sinas e abstrações,
terçamos ódio finos, dissuadidos,
lãs de olvido e alucinações.

Sovamos os sidos, os vividos,
somos eiva, disfarce, diluição.
Somos somas a subtrações.


Retrato - Artur da Távola

 A dolorosa
 e lenta
 refeição do velho.
 Sopas e papas insepultas
 voracidade morta
 lassa obrigação de alimentar.

 Saliva é cuspe
 o cuspe é baba
 na dócil refeição do velho.

 A lentidão exasperante
 de quem come para não morrer
 e morrerá porém. Só

 A dolorosa
 e benta
 refeição do velho.

 A carne insulta-lhe
 a indecisão do dente,
 dor e cansaço no deglutir.

 Tudo é torpor ou gole
 na fome sem sabor
 da refeição do velho.


Uma perda - Artur da Távola



A Carlos Drummond de Andrade

No meio do caminho tinha uma perda.
Tinha uma perda no meio do caminho.
Tinha uma perda.
No meio do caminho tinha uma perda.

Primeiro a irmã depois o pai.
Não sabia que no meio do caminho
tinha a perda do paraíso
que me fez bravo.
Fui só, fui eu,
fui vida a partir da perda
que me estava destinada
no meio do carinho
de minha mãe solitária.

Fui perda de mim mesmo
procurado por toda a vida
até que achado no poema
do meu hoje encanecido.

Tudo porque
no meio do caminho tinha uma perda.
Tinha uma perda no meio do carinho.

Soneto inascido - Artur da Távola

O poema subjaz.
Insiste sem existir
escapa durante a captura
vive do seu morrer.
O poema lateja.
É limbo, é limo,
imperfeição enfrentada,
pecado original.
O poema viceja no oculto
engendra-se em diluição
desfaz-se ao apetecer.
O poema poreja flor e adaga
e assassina o íncubo sentido.
Existe para não ser.

Poema para gatos - Artur da Távola

Silêncio,
eis a tarefa
de todos os gatos.
Poucos sabem perscrutar
(talvez ninguém em plenitude)
o grau de solidão necessária
ao saber auto suficiente
para ser felino e doméstico
em sua tarefa de monge
guardião do inextricável
em quem o homem não percebe
a metafísica natural,
recolhimento
saber
sensualidade
e aceitação.

Autismo - Artur da Távola

O tédio que não revelo
resvala e vala na taquicardia
do sorriso emoliente
em minha ativa participação.
A morte, amiga de infância,
palpita vida na força do meu viver.
Sou segredos, dons, acasos e órfão,
silenciados em músicas e pickles.
Meu menino, a cirurgia, aquele cão, o não,
a morte do pai e minha irmã
moram anônimos
no quarto e sala da alma.
Falo o que calo
sinto o que guardo
sob outro eu igual ao mim
bem melhor, porém.
Mas autista.
O sexo implícito, o tesão abissal,
a gula mamada,
a timidez flatulenta,
jazem no fundo do meu mar.
Escafandro-me, debalde.
Calo constatações,
blasono brilhos
suicido sonhos,
calafrio-me a colher náuseas
e navego fés esperançosas.
Sou sem teto de onde salto
para o chão do não ser.
Minha blandícia
quem acarinhará?