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O vagalume - Dora Ferreira da Silva


Inquieta a escuridão.
Acende e apaga a lanterna
sem cessar.
Busca a perfeição.

A manhã o ilumina
insatisfeito
e opaco.


Valsas de Esquina de Mignone - Dora Ferreira da Silva



Só um pássaro
e seu peso de orvalho tocando
o chão como se foram teclas.
Passa onde a graça
ilumina a cidade de ferro
subitamente atenta a essa beleza.

Nos jardins teimam rosas
delicadamente.
Violetas africanas
salpicam de ouro
muros escuros
e as princesas purpúreas
espiam dos balcões verdes
nas paredes florescidas:
dançam pétalas
dança a vida
nos jardins contentes
não termina a partitura
que se repete
sempre.


Vento no jardim - Dora Ferreira da Silva


A rosa branca sorria
a vermelha te chamava
na chama do meio-dia.

O jardim se abria em cores
mas nos canteiros de sombra
avencas tristes dormiam.

Ó Menina o que viveste
no sobressalto do dia?

Tinhas na mão a tesoura
no gesto grande ousadia
de colher aquela rosa.

Não te chamara impaciente
estilhaçando a janela
com seu grito de alegria?

Veio o vento de repente
no alto o céu refulgia.

Gritaste de dor e medo:
uma gota incandescia
no teu dedo junto à pétala.

Feriu-te o espinho Menina
ou o dente da tesoura
quando essa rosa colhias?

Brancas ficaram as flores
do susto que te feria.

Ai Menina o que dissera
a voz do vento estrangeiro
à rosa que estremecia?

(O céu azul se calava)
Viste o teu Jardim de Dores
muito além daquele dia.


Nascimento do Poema - Dora Ferreira da Silva

É preciso que venha de longe
do vento mais antigo
ou da morte
é preciso que venha impreciso
inesperado como a rosa
ou como o riso
o poema inecessário.

É preciso que ferido de amor
entre pombos
ou nas mansas colinas
que o ódio afaga
ele venha
sob o látego da insônia
morto e preservado.

E então desperta
para o rito da forma
lúcida
tranquila:
senhor do duplo reino
coroado
de sóis e luas.



O carroção de feno - Dora Ferreira da Silva

Nenhuma estrela no céu
e poucas árvores na terra
esquecida a doce língua materna
(quem se lembra em mim?)

Taciturnos pensadores de queixo alteado
olham a ceifa do mundo
com advertências tardias e letras vencidas
dos senhores do dia.
Prosperam ratos. E a alegria?
Raptada ou foragida foi levada ou foi-se
por sonho
ou enfado.

Passa um carroção puxado a cavalos:
ontem? hoje? amanhã? quando?
O Poder passa decrépito escarrando
os últimos decretos
à rosa do amanhã.




O Ausente - Dora Ferreira da Silva


Tudo que foi luz
e hoje desmaia em treva
sob a errática
e suas confusas pétalas
tudo o que amamos e em desejo tivemos
com sede amarga de posse
em lábios angustiados
renasce deste silêncio de orfandade
e da vida faz cinza
e morte.

O inverno é que não estejas
senão nos olhos áridos da insônia
ai, que não estejas e o sol já não aquece
e o mar não dança entre rochedos
e o pássaro é um triste voo
que adormece.


A esperança - Dora Ferreira da Silva


Folha caminhando
verde orvalhado que se distancia.
É a espera do que não se sabe
e reza. A que Deus?
Nosso olhar se acerca perguntando
de silêncio é feita.
E juntas caminhamos
num percurso vago.



Canto - Dora Ferreira da Silva



O pássaro cantou
e os ramos vergaram
sob o peso do fruto
e o fruto cantou
sob o peso do pássaro
e o canto pousou
sobre o fruto
e os ramos cantaram.

Os Jacintos - Dora Ferreira da Silva


 Os jacintos se entreolham
calados. Só o perfume
os une, alheados.
Sem dar nem receber
a mão vazia à outra se uniria.

Por que são os jacintos
o que seríamos?
Prediletos do ser.
Nem mesmo cuidaríamos
do passo que nos leva
sob a Ursa Maior
sob a Ursa Menor.

De olhos fechados despertaríamos
da confusa tristeza de
sermos dois e isolados
flutuando na alma do mundo
como peixes assustados.

Complexa é a vida
ao descer cada vez mais
até à charogne desintegrada
de uma superpopulação
de miasmas.

Quero uma só alma
é o bastante
para quem vive um breve instante.
Quando a plenitude do uno?
Simples inefável resumo.

Poetas e insetos - Dora Ferreira da Silva

Gravamos nas folhas (como insetos)
signos arbitrários
futuros dicionários
para aprendizes de símbolos.

O céu é transparente como
as lentes dos óculos
e a terra se adorna
como as belas mulheres.

Subimos a escada platônica
descemos a escada plutônica
escrevendo entre dois amores
a modo de insetos nas folhas
para gerar sem fim
outras flores
outras fomes.


Tanta tristeza nas águas... - Dora Ferreira da Silva




Tanta tristeza nas águas
na face que refletia
o espelho frágil da lua
miragem melancolia.

Em que reino vive agora
a princesa que vivia
na infância sob amoreiras
acesas à luz do dia?

Onde o sol, onde o tumulto
de pombas no céu ardente
onde o frio da tarde morta
entre escombros do poente?

Tanta tristeza nas águas
na face que refletia
o espelho frágil da lua
miragem melancolia.

Onde a lua marinheira
no alto céu que surgia –
negro mar cheio de espantos
mordido de ventanias?

Onde o Rei do reino ausente
onde a fada que fazia
do mundo um sono profundo
e do sonho a luz do dia?

Tanta tristeza nas águas
na face que refletia
o espelho frágil da lua
miragem melancolia.

Ao Sol - Dora Ferreira da Silva



Naufragas na noite
em pompas de luz e imensidade
todo germe palpita na semente
e da nova manhã ressurges
clara divindade
nua a carnação sob o manto escarlate.



Utopia - Dora Ferreira da Silva


Deus é dia - noite
inverno - verão
guerra - paz
penúria - saciedade:
era este o credo da Montanha
Dormindo velávamos.

Quantas vezes a ti voltei
regaço
e a ti voltarei
horizonte da meta?
Não do preciso ou impreciso desejo
mas doar pleno
sendo Deus oferenda e altar.
Quem desperta do gesto litúrgico
de si mesmo feito
sente o peito pulsar
silêncio
e dança.


Auto-Retrato - Dora Ferreira da Silva


Foi sempre a distância mestra severa;
e o refúgio, nas árvores.
O Amor nas frondes, o abrigo no vento,
lentos remos sulcando espaços:
sua água, seu chão.
A modo de pássaro precário
sobreviveu à noite.
Partindo, completou-se.


Narciso - Dora Ferreira da Silva



Lampeja o olhar que antes a toda a beleza
se esquivara. És tu, Narciso,
teu reflexo nas águas, ou a irmã
de gêmeo rosto e forma?
Não, não te afastas, porque a unidade
em duas se faria e o mundo das sombras ulula
à espera de tal luto. Permaneces inclinado
e adoras, sem saber se és tu, ou quem queres ver
no exasperado amor que as águas refletem.

A Morte veio enfim buscar-te, consternada,
vendo os olhos do estranho amante
fixos na flor nascida de teu sonho.

Agora - Dora Ferreira da Silva


Agora que no vagar dos pensamentos
chamo-te - pai - da estação da infância
como se pudesses voltar no rápido só para me embalar,
fecho os olhos dentro de tuas pálpebras
És minha invenção de amor. Olhos melancólicos
os teus. Eu contigo em degredo.

Difícil tocar a face desse segredo cada vez mais longe
e partir e também ficar,
embora encontrada a chave da porta mais secreta.
Se eu pudesse dizer: seja a paisagem de seda azul
e o último sol fortíssimo do ocaso
- eu liberta enfim de tuas pupilas.
Um rio passaria desenhado pela mão mais fina.
Passa uma pluma apenas uma no rio acordado.

Finisterra - Dora Ferreira da Silva

Coroada de heras,
a lua para a festa esquiva.
À sombra, amantes teceram ramos.
Longe, nas grutas do mar,
pura é a água de que nascemos.
Resina no coração dos vivos,
o musgo se alastrando.
Que música se faz distância e remos
que formas se dissipam
se em novelos os dedos se emaranham?

Dança a lua votiva sua dança nas águas:
desnastraram-lhe as estrelas o cabelo.
São asas ou serpentes que na espádua se alagam
para desatar-lhe o voo?
As velas do barco já se afastam
do marinheiro que trespassou-lhe o sangue.

À janela da noite - Dora Ferreira da Silva



A lua em seu círculo.
Piam pássaros da sombra.
Meu coração destas raízes, hera escura
na solidão de um muro.
Cintila a constelação de Andrômeda
em sua haste de lágrimas.
Nos grãos do vento
partiram pombos em tumulto e brancura.
Nem a glória
nem o lamento:
vento e planura.

Flores - Dora Ferreira da Silva


As flores do inverno vão se abrindo
em arbustos sem folhas
candelabros de ramos
que se aquecem
na débil luz que emana das corolas.
Falam em surdina, veladas de aroma,
as pétalas, bailarinas do pudor,
confidenciando nos vórtices secretos
dentro da pálpebra do dia sem calor.

Noite - Dora Ferreira da Silva

No declive da altura
poço de lumes.

Entre folhas
perpassa um voo.

(Noite e alma
toque levíssimo
de palmas.)

Uma estrela cavalga a escuridão.