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A ciência pode classificar - Manoel de Barros


A ciência pode classificar
e nomear os órgãos de um sabiá
mas não pode medir seus encantos.
A ciência não pode calcular
quantos cavalos de força existem
nos encantos de um sabiá.

Quem acumula muita informação
perde o condão de adivinhar: divinare.

Os sabiás divinam.


Apontamentos - Manoel de Barros

Deixei uma ave me amanhecer.
Toda vez que a manhã está sendo começada nos
meus olhos, é assim...

Essa luz empoçada em avencas.

As avencas são cegas.
Nenhuma flor protege o silêncio quanto elas.

Ó a luz da manhã empoçada em avencas!

Sabiá de setembro tem orvalho na voz.
De manhã ele recita o sol.

Quando eu nasci
o silêncio foi aumentado.
Meu pai sempre entendeu
Que eu era torto
Mas sempre me aprumou.
Passei anos me procurando por lugares nenhuns.
Até que não me achei - e fui salvo.
Às vezes caminhava como se fosse um bulbo.

Agora estou sonhado de glicínias.

Não sei bem de que cor é a cor do amaranto.
Mas pelo amar e pelo canto
fica bem esse amaranto aí
(melhor do que se eu usasse perpétua,
que é o outro nome que se põe a essa
flor).
Amaranto murmura melhor.

Achei entre os pertences de Bernardo um vaso
de colher chuvas, um cachimbo
e um rosto de inseto dependurado na calça.
Bernardo tem fé quase assim de molusco.
Para saber dos passarinhos só precisa de suas
ignorâncias.

A voz de um passarinho me recita.

Os morros se andorinham longemente...
Eu me horizonto.
Eu sou o horizonte dessas garças.


Depois que atravessarem o muro e a tarde
os caracóis cessarão.
Às vezes cessam ao meio.
Cessam de repente, porque lhes acaba por
dentro a gosma com que sagram os seus
caminhos.
Vêm os meninos e os arrancam da parede
ocos
E com formigas por dentro passeando em seus
restos de carne.
Essas formigas são indóceis de ocos.
Ah, como serão ardentes nos caracóis os desejos
de voar!


P.S.: Caracol é uma solidão que anda na parede.


No descomeço era o verbo - Manoel de Barros


No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo,
lá onde a criança diz:
Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe
que o verbo escutar
não funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo,
ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta,
que é a voz de fazer nascimentos —
O verbo tem que pegar delírio.



Palavras - Manoel de Barros


Palavra dentro da qual estou há milhões
de anos é arvore.
Pedra também.
Eu tenho precedências para pedra.
Pássaro também.
Não posso ver nenhuma dessas palavras que
não leve um susto.
Andarilho também.
Não posso ver a palavra andarilho que
eu não tenha vontade de dormir debaixo
de uma árvore.
Que eu não tenha vontade de olhar com
espanto, de novo, aquele homem do saco
a passar como um rei de andrajos nos
arruados de minha aldeia.
E tem mais uma: as andorinhas,
pelo que sei, consideram os andarilhos
como árvore.


Manoel de Barros


Manoel de Barros

Morre o poeta Manoel de Barros. 


Ando muito completo de vazios.
Meu órgão de morrer me predomina.
Estou sem eternidades.

Não posso mais saber quando amanheço ontem.
Está rengo de mim o amanhecer.
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.
Atrás do ocaso fervem os insetos.
Enfiei o que pude dentro de um grilo 
o meu destino.
Essas coisas me mudam para cisco.
A minha independência tem algemas.


O muro - Manoel de Barros

O menino contou que o muro da casa dele era
da altura de duas andorinhas.
(Havia um pomar do outro lado do muro.)
Mas o que intrigava mais a nossa atenção
principal
Era a altura do muro
Que seria de duas andorinhas.
Depois o garoto explicou:
Se o muro tivesse dois metros de altura
qualquer ladrão pulava
Mas a altura de duas andorinhas nenhum ladrão
pulava.
Isso era.


A nossa velha casa - Manoel de Barros

Ao ver o abandono da velha casa: o mato a crescer das paredes
Ao ver os desenhos de mofo espalhados nos rebocos carcomidos
Ao ver o mato a subir no fogão, nos retratos, nos armários
E até na bicicleta do menino encostada no batente da casa
Ao ver o musgo e os limos a tomar conta do batente
Ao ver o abandono tão perto de mim que dava até para lamber
Pensei em puxar o alarme
Mas o alarme não funcionou.

A nossa velha casa ficou para os morcegos e os gafanhotos.
E os melões-de-são-caetano que subiram pelas
paredes já estão dando seus frutos vermelhos.


Andarilho - Manoel de Barros

Eu já disse quem sou Ele.
Meu desnome é Andaleço.
Andando devagar eu atraso o final do dia.
Caminho por beiras de rios conchosos.
Para crianças de estrada eu sou um Homem do Saco.
Carrego latas furadas, pregos, papéis usados.
(Ouço arpejos de mim nas latas tortas.)
Não tenho pretensão de conquistar a inglória perfeita.
Os loucos me interpretam.
A minha direção é a pessoa do vento.
Meus rumores não têm termômetro.
De tarde arborizo pássaros.
De noite os sapos me pulam.
Não tenho carne de água.
Eu pertenço de andar atoamente.
Não tive estudamento de tomos.
Só conheço as ciências que analfabetam.
Todas as coisas têm de ser?
Sou um sujeito remoto.
Aromas de jacinto me infinitam.
E estes ermos me somam.



As bênçãos - Manoel de Barros

Não tenho a anatomia de uma garça pra receber
em mim os perfumes do azul.
Mas eu recebo. 
É uma bênção.

Às vezes se tenho uma tristeza, 
as andorinhas me namoram mais de perto.
Fico enamorado. 
É uma bênção.

Logo dou aos caracóis ornamentos de ouro
para que se tornem peregrinos do chão.
Eles se tornam. 
É uma bênção.

Até alguém já chegou de me ver passar
a mão nos cabelos de Deus!
Eu só queria agradecer.



Tempo - Manoel de Barros

Eu não amava que botassem data na minha existência.
A gente usava mais era encher o tempo.
Nossa data maior era o quando.
O quando mandava em nós.
A gente era o que quisesse ser só usando esse advérbio.
Assim, por exemplo: tem hora que eu sou quando uma árvore
e podia apreciar melhor os passarinhos.
Ou tem hora que eu sou quando uma pedra.
E sendo uma pedra eu posso conviver com os lagartos e os musgos.
Assim: tem hora eu sou quando um rio.
E as garças me beijam e me abençoam.
Essa era uma teoria que a gente inventava nas tardes.
Hoje eu estou quando infante.
Eu resolvi voltar quando infante por um gosto de voltar.
Como quem aprecia de ir às origens de uma coisa ou de um ser.
Então agora eu estou quando infante.
Agora nossos irmãos, nosso pai, nossa mãe e todos
moramos no rancho de palha perto de uma aguada.
O rancho não tinha frente nem fundo.
O mato chegava perto, quase roçava nas palhas.
A mãe cozinhava, lavava e costurava para nós.


Manoel de Barros

 Nasci para administrar o à-toa
                               o em vão
                            o inútil.
    Pertenço de fazer imagens.
   Opero por semelhanças.
   Retiro semelhanças de pessoas com árvores
              de pessoas com rãs
              de pessoas com pedras
              etc etc.
    Retiro semelhanças de árvores comigo.
   Não tenho habilidade pra clarezas.
   Preciso de obter sabedoria vegetal.
   (Sabedoria vegetal é receber com naturalidade 
uma rã no talo.)
   E quando esteja apropriado para pedra, 
terei também sabedoria mineral.




Eu queria ... - Manoel de Barros




Eu queria fazer parte das árvores como os pássaros.
Eu queria fazer parte do orvalho como as pedras.
Eu só não queria significar.
Porque significar limita a imaginação.
E com pouca imaginação eu não poderia
fazer parte de uma árvore.
Como os pássaros fazem.
Então a razão me falou: o homem não
pode fazer parte do orvalho como as pedras fazem.
Porque o homem não se transfigura senão pelas palavras.
E isso era mesmo.

Manoel de Barros

Que a palavra parede não seja símbolo
 de obstáculos à liberdade
 nem de desejos reprimidos
 nem de proibições na infância,
 etc. (essas coisas que acham os
 reveladores de arcanos mentais)
 Não.
 Parede que me seduz é de tijolo, adobe
 preposto ao abdomen de uma casa.
 Eu tenho um gosto rasteiro de
 ir por reentrâncias
 baixar em rachaduras de paredes
 por frinchas, por gretas - com lascívia de hera.
 Sobre o tijolo ser um lábio cego.
 Tal um verme que iluminasse.


Manoel de Barros


... poesias, a poesia é

- é como a boca
dos ventos
na harpa

nuvem
a comer na árvore
vazia que
desfolha a noite

raiz entrando
em orvalhos...

floresta que oculta
quem aparece
como quem fala
desaparece na boca

cigarra que estoura o
crepúsculo
que a contém

o beijo dos rios
aberto nos campos
espalmando em álacres
os pássaros

- e é livre
como um rumo
nem desconfiado...


Garça - Manoel de Barros

A palavra garça em meu perceber é bela.
Não seja só pela elegância da ave.
Há também a beleza letral.
O corpo sônico da palavra
E o corpo níveo da ave
Se comungam.
Não sei se passo por tantã dizendo isso.
Olhando a garça-ave e a palavra garça
Sofro uma espécie de encantamento poético.


Uma didática da invenção - Manoel de Barros



Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:



a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca
b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas
têm devoção por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote,
tem salvação
e) Que um rio que flui entre dois jacintos carrega mais ternura
que um rio que flui entre dois lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.
etc.
etc.
etc.
Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.
Desinventar objetos. O pente, por exemplo.
Dar ao pente funções de não pentear.
Até que ele fique à disposição de ser uma begônia.
Ou uma gravanha.
Usar algumas palavras que ainda não tenham idioma.
Repetir repetir – até ficar diferente.
Repetir é um dom do estilo.

No Tratado das Grandezas do Ínfimo estava
escrito:
Poesia é quando a tarde está competente para dálias.
É quando
Ao lado de um pardal o dia dorme antes.
Quando o homem faz sua primeira lagartixa.
É quando um trevo assume a noite
E um sapo engole as auroras.
Formigas carregadeiras entram em casa de bunda.
As coisas que não têm nome são mais pronunciadas por crianças.
No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo,
lá onde a criança diz:
Eu escuto a cor dos passarinhos.



A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo,
ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta,
que é a voz de fazer nascimentos –
O verbo tem que pegar delírio.

Um girassol se apropriou de Deus: foi em Van Gogh.



Para entrar em estado de árvore é preciso
partir de um torpor animal de lagarto às
três horas da tarde, no mês de agosto.
Em dois anos a inércia e o mato
vão crescer em nossa boca.
Sofreremos alguma decomposição lírica
até o mato sair na voz.



Hoje eu desenho o cheiro das árvores.
Não tem altura o silêncio das pedras.
Adoecer de nós a Natureza:
– Botar aflição nas pedras
(Como fez Rodin).



Pegar no espaço contigüidades verbais é o
mesmo que pegar mosca no hospício para dar
banho nelas.
Essa é uma prática sem dor.
É como estar amanhecido a pássaros.
Qualquer defeito vegetal de um pássaro pode
modificar os seus gorjeios.



As coisas não querem mais ser vistas
por pessoas razoáveis:
Elas desejam ser olhadas de azul –
Que nem uma criança que você olha de ave.
Poesia é voar fora da asa.

Em casa de caramujo até o sol encarde.



O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa
era a imagem de um vidro mole
que fazia uma volta atrás de casa.
Passou um homem depois e disse:
Essa volta que o rio faz
por trás de sua casa se chama enseada.
Não era mais a imagem de uma cobra de vidro
que fazia uma volta atrás de casa.
Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem.
Lembro um menino
repetindo as tardes naquele quintal.



Ocupo muito de mim com o meu desconhecer.
Sou um sujeito letrado em dicionários.
Não tenho mais que 100 palavras.
Pelo menos uma vez por dia
me vou no Morais ou no Viterbo –
A fim de consertar a minha ignorãça,
mas só acrescenta.
Despesas para minha erudição tiro nos almanaques:
– Ser ou não ser, eis a questão.



Ou na porta dos cemitérios:
– Lembra que és pó e que ao pó tu voltarás.
Ou no verso das folhinhas:
– Conhece-te a ti mesmo.
Ou na boca do povinho:
– Coisa que não acaba no mundo é gente besta
e pau seco.
Etc.
Etc.
Etc.


Maior que o infinito é a encomenda.

Manoel por Manoel - Manoel de Barros

"Eu tenho um ermo enorme dentro do olho.
Por motivo do ermo não fui um menino peralta.
Agora tenho saudade do que não fui.
Acho que o que faço agora
é o que não pude fazer na infância.
Faço outro tipo de peraltagem.
Quando era criança
eu deveria pular muro do vizinho para catar goiaba.
Mas não havia vizinho.
Em vez de peraltagem eu fazia solidão.
Brincava de fingir que pedra era lagarto.
Que lata era navio.
Que sabugo era um serzinho mal resolvido
e igual a um filhote de gafanhoto.
Cresci brincando no chão, entre formigas.
De uma infância livre e sem comparamentos.
Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação.
Porque se a gente fala a partir de ser criança,
a gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha,
de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore.

Então eu trago das minhas raízes crianceiras
a visão comungante e oblíqua das coisas.
Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina.
É um paradoxo que ajuda a poesia e que eu falo sem pudor.
Eu tenho que essa visão oblíqua vem
de eu ter sido criança em algum lugar perdido
onde havia transfusão da natureza e comunhão com ela.
Era o menino e os bichinhos.
Era o menino e o sol.
O menino e o rio.
Era o menino e as árvores."

Ando muito completo de vazios... Manoel de Barros


Ando muito completo de vazios.
Meu órgão de morrer me predomina.
Estou sem eternidades.
Não posso mais saber quando amanheço ontem.
Está rengo de mim o amanhecer.
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.
Atrás do ocaso fervem os insetos.
Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu destino.
Essas coisas me mudam para cisco.
A minha independência tem algemas.


O casaco - Manoel de Barros

Um homem estava anoitecido.
Se sentia por dentro um trapo social.
Igual se, por fora,
usasse um casaco rasgado e sujo.
Tentou sair da angústia
Isto ser:
Ele queria jogar o casaco rasgado e sujo no lixo.
Ele queria amanhecer.