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Teologal - Adélia Prado


Agora é definitivo:
uma rosa é mais que uma rosa.
Não há como deserdá-la
de seu destino arquetípico.
Poetas que vão nascer
passarão noites em claro
rendidos à forma prima:
a rosa é mística.


Órfã na janela - Adélia Prado


Estou com saudades de Deus,
uma saudade tão funda que me seca
Estou como palha e nada me conforta.
O amor hoje está tão pobre, tem gripe
meu hálito não está para salões.
Fico em casa esperando Deus,
cavacando a unha, fungando meu nariz choroso,
querendo um pôster dele, no meu quarto,
gostando igual antigamente
da palavra crepúsculo.
Que o mundo é desterro eu toda vida soube.
Quando o sol vai-se embora é pra casa de Deus que vai
pra casa onde está meu pai.


Graça - Adélia Prado


O mundo é um jardim. Uma luz banha o mundo.
A limpeza do ar, os verdes depois das chuvas,
os campos vestindo a relva como o carneiro a sua lã.
A dor sem fel: uma borboleta viva espetada.
Acodem as gratas lembranças:
moças descalças, vestidos esvoaçantes,
tudo seivoso como a juventude,
insidioso prazer sem objeto.
Insisto no vício antigo — para me proteger do inesperado gozo.
E a mulher feia? E o homem crasso?
Em vão. Estão todos nimbados como eu.
A lata vazia, o estrume, o leproso no seu cavalo
estão  resplandecentes. Nas nuvens tem um rei, um reino,
um bobo com berloques, um príncipe. Eu passeio nelas,
é sólido. O que não vejo, existindo mais que a carne.
Esta tarde inesquecível Deus me deu. Limpou meus olhos e vi:
como o céu, o mundo verdadeiro é pastoril.

Morte morreu - Adélia Prado


Quando o ano acinzenta-se em agosto
e chove sobre árvores
que mesmo antes das chuvas já reverdeceram,
da mesma estação levantam-se
nossos queridos
e os passarinhos que ainda vão nascer.
“Ó morte, onde está tua vitória?”

Eh tempo bom, diz meu pai.
A mãe acalma-se,
tomam-se as providências sensatas.
Todos pra janela, espiar as goteiras:
"Chuva choveu, goteira pingou
Pergunta o papudo se o papo molhou".
Pergunta a menina se a vida acabou. 


Pranto Para Comover Jonathan - Adélia Prado


Os diamantes são indestrutíveis?
Mais é meu amor.
O mar é imenso?
Meu amor é maior,
mais belo sem ornamentos
do que um campo de flores.
Mais triste do que a morte,
mais desesperançado
do que a onda batendo no rochedo,
mais tenaz que o rochedo.
Ama e nem sabe mais o que ama.


Enredo para um tema - Adélia Prado



Ele me amava, mas não tinha dote,
só os cabelos pretíssimos e um beleza
de príncipe de estórias encantadas.
Não tem importância, falou a meu pai,
se é só por isto, espere.
Foi-se com uma bandeira
e ajuntou ouro pra me comprar três vezes.
Na volta me achou casada com D. Cristóvão.
Estimo que sejam felizes, disse.
O melhor do amor é sua memória, disse meu pai.
Demoraste tanto, que...disse D. Cristóvão.
Só eu não disse nada,
nem antes, nem depois.


A menina e a fruta - Adélia Prado


Um dia apanhando goiabas com a menina,
ela baixou o galho e disse pro ar
- inconsciente de que me ensinava -
"goiaba é uma fruta abençoada".
Seu movimento e rosto iluminados
agitaram no ar poeira e Espírito:
O Reino é dentro de nós,
Deus nos habita.
Não há como escapar à fome da alegria!




Janela – Adélia Prado


Janela, palavra linda.
Janela é o bater das asas da borboleta amarela.
Abre pra fora as duas folhas de madeira à-toa pintada,
janela jeca, de azul.
Eu pulo você pra dentro e pra fora, monto a cavalo em você,
meu pé esbarra no chão.
Janela sobre o mundo aberta, por onde vi
o casamento da Anita esperando neném, a mãe
do Pedro Cisterna urinando na chuva, por onde vi
meu bem chegar de bicicleta e dizer a meu pai:
minhas intenções com sua filha são as melhores possíveis.
Ô janela com tramela, brincadeira de ladrão,
clarabóia na minha alma,
olho no meu coração.



A menina do olfato delicado - Adélia Prado


Quero comer não, mãe
(no canto do fogão o caldeirão esmaltado)
quero comer não, mãe
(arroz com feijão, macarrão grosso)
quero comer não, mãe
(sem massa de tomate)
quero comer não, mãe
(com gosto de serragem)
quero comer não, mãe
(com cheiro de carbureto)
quero comer não
(vi um gato no caminho, fervendo de bicho)
quero comer não, mãe
(quando inaugurar a luz elétrica e o pai
consumir com o gasômetro, eu como).
Vamos ficar no escuro, mãe. Põe lamparina,
põe gasômetro não, o azul dele tem cheiro,
o cheiro entra na pele, na comida, no pensamento,
toma a forma das coisas. Quando a senhora tem raiva
sem xingar é igual a ruindade do gasômetro,
a azuleza dele. Vomito, mãe. Vou comer agora não.


Resumo - Adélia Prado

Gerou os filhos, os netos,
deu à casa o ar de sua graça
e vai morrer de câncer.
O modo como pousa a cabeça para um retrato
é o da que, afinal, aceitou ser dispensável.
Espera, sem uivos, a campa, a tampa, a inscrição:
1906-1970
SAUDADE DOS SEUS, LEONORA


Domus - Adélia Prado


Com seus olhos estáticos
na cumeeira a casa olha o homem.
A intervalos
lhe estremecem os ouvidos,
de paredes sensíveis, discernentes:
agora é amor, agora é injúria,
punhos contra a parede,
pânico.

Comove Deus
a casa que o homem faz para morar,
Deus
que também tem os olhos
na cumeeira do mundo.

Pede piedade a casa por seu dono
e suas fantasias de felicidade.
Sofre a que parece impassível.
É viva a casa e fala.



Exercício Espiritual - Adélia Prado

Maria,
roga a Teu Filho que me mostre o Pai.
Imagens sobrevêm:
homem, vinheta, instrumento,
o que ameaça ser um leque de penas
e é uma cabeça de naja,
a perigosa serpente.
Quero ver o Pai, insisto,
roga a Teu Filho que me mostre o Pai.
Um dente, uma vulva,
um molho de nabos comparecem,
gerados como eu, do nada.
De onde vêm os nabos, Maria?
Onde está o Pai?
De onde vim?
Move-se na parede um cavalo de sol.
É o pai?
Não,
é só uma sombra e já se desfaz.
O Pai, então, é uma usina?
Meu pai dizia: ó Pai!
E levantava os braços respeitoso.
Também meu avô: Deus é Pai!
E tirava o chapéu.
Assim, um pai remetendo a outro
e mais outro e outro mais,
enfim, a milhões de pais até Adão,
que sou eu acordando de um sonho,
apenas “raia sanguínea e fresca”
a madrugada, filha de parnasiano,
que me encantava quando eu era mocinha,
filha de ferroviário,
cansada agora
como feirante ao meio-dia:
ai, meu pai,
me ajuda a torrar o resto
deste lote de abóboras,
me tira da cabeça
a ideia de ver Deus-Pai,
me dá um pito e um café.





Azul sobre Amarelo, Maravilha e Roxo - Adélia Prado

Desejo, como quem sente fome ou sede,
um caminho de areia margeado de boninas,
onde só cabem a bicicleta e seu dono.
Desejo, como uma funda saudade
de homem ficado órfão pequenino,
um regaço e o acalanto, a amorosa tenaz de uns dedos
para um forte carinho em minha nuca.
Brotam os matinhos depois da chuva,
brotam os desejos do corpo.
Na alma, o querer de um mundo tão pequeno,
como o que tem nas mãos o Menino Jesus de Praga.


Sensorial - Adélia Prado

Obturação, é da amarela que eu ponho.
Pimenta e cravo,
mastigo à boca nua e me regalo.
Amor, tem que falar meu bem,
me dar caixa de música de presente,
conhecer vários tons pra uma palavra só.
Espírito, se for de Deus, eu adoro,
se for de homem, eu testo
com meu seis instrumentos.
Fico gostando ou perdoo.
Procuro sol, porque sou bicho de corpo.
Sombra terei depois, a mais fria.



Homilia - Adélia Prado

 Quem dentre vós
dirá convictamente:
os alquimistas morreram
- aqueles simples -
morreram os conquistadores,
os reis
os tocadores de alaúde,
os mágicos.
Oh, engano!
a vida é eterna, irmãos,
aquietai-vos, pois, em vossas lidas,
louvai a Deus e reparti a côdea
o boi, vosso marido e esposa
e sobretudo
e mais que tudo
a palavra sem fel. 


Dolores - Adélia Prado

Hoje me deu tristeza,
sofri três tipos de medo
acrescido do fato irreversível:
não sou mais jovem.
Discuti política, feminismo,
a pertinência da reforma penal,
mas ao fim dos assuntos
tirava do bolso meu caquinho de espelho
e enchia os olhos de lágrimas:
não sou mais jovem.
As ciências não me deram socorro,
não tenho por definitivo consolo
o respeito dos moços.
Fui no Livro Sagrado
buscar perdão pra minha carne soberba
e lá estava escrito:
"Foi pela fé que também Sara, apesar da idade avançada,
se tornou capaz de ter uma descendência..."
Se alguém me fixasse, insisti ainda,
num quadro, numa poesia...
e fossem objetos de beleza os meus músculos frouxos...
Mas não quero. Exijo a sorte comum das mulheres nos tanques,
das que jamais verão seu nome impresso e no entanto 
sustentam os pilares do mundo, porque mesmo viúvas dignas
não recusam casamento, antes acham sexo agradável,
condição para a normal alegria de amarrar uma tira no cabelo
e varrer a casa de manhã.

Uma tal esperança imploro a Deus.



Tão bom aqui - Adélia Prado

Me escondo no porão
para melhor aproveitar o dia
e seu plantel de cigarras.
Entrei aqui pra rezar,
agradecer a Deus este conforto gigante.
Meu corpo velho descansa regalado,
tenho sono e posso dormir,
tendo comido e bebido sem pagar.
O dia lá fora é quente,
a água na bilha é fresca,
acredito que sugestiono elétrons.
Eu só quero saber do microcosmo,
o de tanta realidade que nem há.
Na partícula visível de poeira
em onda invisível dança a luz.
Ao cheiro de café minhas narinas vibram,
alguém vai me chamar.
Responderei amorosa,
refeita de sono bom.
Fora que alguém me ama,
eu nada sei de mim.


Dona Doida - Adélia Prado

Uma vez, quando eu era menina,
choveu grosso, com trovoada e clarões,
exatamente como chove agora.
Quando se pôde abrir as janelas,
as poças tremiam com os últimos pingos.
Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema,
decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos.
Fui buscar os chuchus e estou voltando agora,
trinta anos depois. Não encontrei minha mãe.
A mulher que me abriu a porta, riu de dona tão velha,
com sombrinha infantil e coxas à mostra.
Meus filhos me repudiaram envergonhados,
meu marido ficou triste até a morte,
eu fiquei doida no encalço.
Só melhoro quando chove.




Primeira Infância - Adélia Prado

Era rosa, era malva, era leite,
 as amigas de minha mãe vaticinando:
 vai ser muito feliz, vai ser famosa.
 ...Eram rendas, pano branco, estrela dalva,
 benza-te a cruz, no ouvido, na testa.
 Sobre tua boca e teus olhos
 o nome da Trindade te proteja.
 Em ponto marca no vestidinho: navios.
 Todos à vela. A viagem que eu faria
 em roda de mim.