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Sentimento do tempo - Paulo Mendes Campos

Os sapatos envelheceram depois de usados
Mas fui por mim mesmo aos mesmos descampados
E as borboletas pousavam nos dedos de meus pés.

As coisas estavam mortas, muito mortas,
Mas a vida tem outras portas, muitas portas.

Na terra, três ossos repousavam
Mas há imagens que não podia explicar: me ultrapassavam.

As lágrimas correndo podiam incomodar
Mas ninguém sabe dizer por que deve passar
Como um afogado entre as correntes do mar.

Ninguém sabe dizer por que o eco embrulha a voz
Quando somos crianças e ele corre atrás de nós.

Fizeram muitas vezes minha fotografia
Mas meus pais não souberam impedir
Que o sorriso se mudasse em zombaria
Sempre foi assim: vejo um quarto escuro
Onde só existe a cal de um muro.

Costumo ver nos guindastes do porto
O esqueleto funesto de outro mundo morto
Mas não sei ver coisas mais simples como a água.

Fugi e encontrei a cruz do assassinado
Mas quando voltei, como se não houvesse voltado,
Comecei a ler um livro e nunca mais tive descanso.

Meus pássaros caíam sem sentidos.
No olhar do gato passavam muitas horas
Mas não entendia o tempo àquele tempo como agora.

Não sabia que o tempo cava na face
Um caminho escuro, onde a formiga passe
Lutando com a folha.

O tempo é meu disfarce.



Soneto de Paz - Paulo Mendes Campos

Cismando, o campo em flor, eu vi que a terra
Pode ser outra terra, de outra gente,
Para o prazer armada e competente
E desarmada para a voz da guerra.

No chão, olhando o céu que nos desterra,
Sem terminar falei, presente, ausente,
Ó vento desatado da vertente,
Ó doce laranjal sem fim da serra!

Mais tarde me esqueci, mas esse instante
De muito antiga perfeição campestre
Fez-me constante um pensamento errante:

Era o sem tempo, a paz da eternidade
Unindo a luz celeste à luz terrestre
Sem solução de amor e de unidade.


Canção romântica - Paulo Mendes Campos




Sol voltou todo molhado,
Foi secar-se no jardim.
Um anjo pobre e honrado
É quem me guarda de mim.
Encalha o barco na tarde,
Meu coração não é porto.
Dentro da noite é que arde
Um coração absorto.
E vai chover muitas horas
Sobre dínamos cansados,
Geradores de auroras,
Geradores de auroras,
Dos poetas estragados.

Vibrações do tempo - Paulo Mendes Campos


Tempo é espaço interior. Espaço é tempo exterior. Novalis

A gaivota determinada mergulha na água
Verde. Há um tempo para o peixe
E um tempo para o pássaro
E dentro e fora do homem
Um tempo eterno de solidão.

Muitas vezes, fixando o meu olhar no morto,
Vi espaços claros, bosques, igapós,
O sumidouro de um tempo subterrâneo
(Patético, mesmo às almas menos presentes)
Vi, como se vê de um avião,
Cidades conjugadas pelo sopro do homem,
A estrada amarela, o rio barrento e torturado,
Tudo tempos de homem, vibrações de tempo,
vertigens.

Senti o hálito do tempo doando melancolia
Aos que envelhecem no escuro das boîtes,
Vi máscaras tendidas para o copo e para o tempo.
Com uma tensão de nervos feridos
E corações espedaçados.
Se acordamos, e ainda não é madrugada,
Sentimos o invisível fender do silêncio,
Um tempo que se ergue ríspido na escuridão.
Cascos leves de cavalos cruzam a aurora.
O tempo goteja
Como o sangue.
Os cães discursam nos quintais, e o vento,
Grande cão infeliz,
Investe contra a sombra.

O tempo é audível; também se pode ouvir a
eternidade.