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Extrair - Arnaldo Antunes

ex
 trair
 do tempo improvável, do improvável,
 de suas maquinações, ações,
 do ato regular que se dissipa em método, todo
 hábito que habito, repito,
 da meta inalcançável que me fita, cripta
 do incontável número dos dias vividos, idos,
 da inumerável cota dos dias por vir, ir,
 da engrenagem que não pára, dispara,
 sacode o chão que piso, piso
 de um ônibus em movimento, momento
 em que me agarro ao cilindro de metal do alto

 -

 a vida

 -

 não a que resta ainda, indo,
 mas a que transborda de cada ar expirado, inspirado,
 até que arrebente, vente




A Chuva - Arnaldo Antunes



A chuva molhou os transeuntes. A chuva encharcou as
praças. A chuva enferrujou as máquinas. A chuva enfureceu
as marés. A chuva e seu cheiro de terra. A chuva com sua
cabeleira. A chuva esburacou as pedras. A chuva alagou a
favela. A chuva de canivetes. A chuva enxugou a sede. A
chuva anoiteceu de tarde. A chuva e seu brilho prateado. A
chuva de retas paralelas sobre a terra curva. A chuva
destroçou os guarda-chuvas. A chuva durou muitos dias. A
chuva apagou o incêndio. A chuva caiu. A chuva
derramou-se. A chuva murmurou meu nome. A chuva ligou
pára-brisa. A chuva acendeu os faróis. A chuva tocou a
sirene. A chuva com a sua crina. A chuva encheu a piscina.
A chuva com as gotas grossas. A chuva de pingos pretos.
A chuva açoitando as plantas. A chuva senhora da lama. A
chuva sem pena. A chuva apenas. A chuva empenou os
móveis. A chuva amarelou os livros. A chuva corroeu as
cercas. A chuva e seu baque seco. A chuva e seu ruído de
vidro. A chuva inchou o brejo. A chuva pingou pelo teto. A
chuva multiplicando insetos. A chuva sobre os varais. A
chuva derrubando raios. A chuva acabou a luz. A chuva
molhou os cigarros. A chuva mijou no telhado. A chuva
regou o gramado. A chuva arrepiou os poros. A chuva fez
muitas poças. A chuva secou ao sol.

N. D. A. - ARNALDO ANTUNES


nenhuma das alternativas
me atrai-
nem a lua que brilha
nem a folha que cai
nem a fome da filha
nem o nome do pai

nenhuma das alternativas
me dá medo-
nem olhar a mulher
nem saber o segredo
nem a bruxa de Blair
nem o bispo Macedo

nenhuma das alternativas
me seduz-
nem a voz do deserto
nem a mão que conduz
nem o sonho desperto
nem o lustro da luz

nenhuma das alternativas
me convence-
nem a bola que rola
nem o time que vence
nem a chuva que chora
nem a água que benze

nenhuma das alternativas
me desperta-
nem a borda que alarga
nem a corda que aperta
nem a boca que amarga
ou o açucar que empedra

nenhuma das alternativas
me alivia-
nem a lâmpada acesa
nem o sol da Bahia
nem o dom da beleza
nem a anestesia

nenhuma das alternativas
me liberta-
nem a cama desfeita
nem a página aberta
nem o peito que aceita
o que a cuca deserta

nenhuma das alternativas
jaz
em meu peito-
nem o gordo salário
nem o alto conceito
nem o traço precário
nem o plano perfeito

nem a pústula
nem a pétala
nem a ruga
nem a rédea
nem a curva
nem a reta
nem a dúvida
ou a vida


a que nega
o resto
ao redor
resta
e cega
me leva
pelo cor
redor
à porta
(certa, in
certa, não
importa)
da saída

Criança não trabalha - Arnaldo Antunes


Lápis, caderno, chiclete, peão
Sol, bicicleta, skate, calção
Esconderijo, avião, correria,
Tambor, gritaria, jardim, confusão


Bola, pelúcia, merenda, crayon
Banho de rio, banho de mar,
Pula sela, bombom
Tanque de areia, gnomo, sereia,
Pirata, baleia, manteiga no pão


Giz, merthiolate, band aid, sabão
Tênis, cadarço, almofada, colchão
Quebra-cabeça, boneca, peteca,
Botão. pega-pega, papel papelão

Criança não trabalha
Criança dá trabalho
Criança não trabalha


1, 2 feijão com arroz
3, 4 feijão no prato
5, 6 tudo outra vez

O que te faz feliz? - Arnaldo Antunes

A lua, a praia, o mar, a rua, a saia, amar...
Um doce, uma dança, um beijo...
Ou é a goiabada com queijo?

Afinal, o que te faz feliz?

Chocolate, paixão, acordar cedo, dormir tarde.
Arroz com feijão, matar a saudade!
O aumento, a casa, o carro que você sempre quis...
Ou são os sonhos que te fazem feliz?
Um filme, um dia, uma semana.
Um bem, um biquíni, a grama!
Dormir na rede, matar a sede, ler...
Ou viver um romance?

O que faz você feliz?

Um lápis, uma letra, uma conversa boa.
Um cafuné, café com leite, rir à toa...
Um pássaro, ser dono do seu próprio nariz!
Ou será um choro que te faz feliz?
A causa, a pausa, o sorvete.
Sentir o vento, esquecer o tempo!
O sal, o sol, um som, o ar...
A pessoa ou o lugar?

Agora me diz,
O que te faz feliz?

O Buraco do Espelho - Arnaldo Antunes

O buraco do espelho está fechado
agora eu tenho que ficar aqui
com um olho aberto, outro acordado
no lado de lá onde eu caí
pro lado de cá não tem acesso
mesmo que me chamem pelo nome
mesmo que admitam meu regresso
toda vez que eu vou a porta some
a janela some na parede
a palavra de água se dissolve
na palavra sede, a boca cede
antes de falar, e não se ouve
já tentei dormir a noite inteira
quatro, cinco, seis da madrugada
vou ficar ali nessa cadeira
uma orelha alerta, outra ligada
o buraco do espelho está fechado
agora eu tenho que ficar agora
fui pelo abandono abandonado
aqui dentro do lado de fora.

O SEU OLHAR ... Arnaldo Antunes

O seu olhar lá fora
o seu olhar no céu
o seu olhar demora
o seu olhar no meu.

O seu olhar seu olhar melhora
melhora o meu.

Onde a brasa mora
e devora o breu
onde a chuva molha
o que se escondeu.

O seu olhar seu olhar melhora
melhora o meu.

O seu olhar agora
o seu olhar nasceu
o seu olhar me olha
o seu olhar é seu.

O seu olhar seu olhar melhora
melhora o meu.