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Perguntai ao muro - Fiama Hassa P. Brandão


Muro, em que meditas,
ao longo da estrada, por estas quintas,
casas, ermos, entre paixões
de alma dos espectros
presentes e vindouros? E os vivos,
porque se escondem
por trás da tua fronte alta,
quieta, seca, que cobiça os astros,
sem saber que o teu corpo
de xisto corre, avança,
mas não pode soltar-se da Terra
e alcançar o Alto?


Raio de Sol - Fiama Hassa P. Brandão,

Raio de Sol na ombreira da porta,
na trave da cadeira, vindo da gelosia,
peço-te para amanhã voltares
mais arqueado pela esfericidade da Terra,
um raio não decididamente recto
cravado no meu tórax côncavo,
mas no meu coração curvo como um globo.


A um poema - Fiama Hassa P. Brandão

A meio deste inverno começaram
a cair folhas demais. Um excessivo
tom amarelado nas imagens.
Quando falei em imagem
ia falar de solo. Evitei o
imediato, a palavra mais cromática.

O desfolhar habitual das memórias é
agora mais geral e também mais súbito.
Mas falaria de árvores, de plátanos,
com relativa evidência. Maior
ou menor distância, ou chamar-lhe-ei
rigor evocativo, em nada diminui

sequer no poema a emoção abrupta.
Tão perturbada com a intensa mancha
colorida. Umas passadas hesitantes.
entre formas vulgares e tão diferentes.
A descrição distante. Sobretudo esta
alheada distância em relação a um poema.



Dos Pinhais - Fiama Hassa P. Brandão

Ondulando, os pinhais
quiseram ser o mar.
Murmurando, quiseram ser
o vento. Mas somente
no meu ouvido eram vento,
nos meus olhos , mar.

E hoje, ali na encosta,
pinhais bordejam
o mar, sustêm o vento.



Da voz das coisas - Fiama Hassa P. Brandão

Só a rajada de vento
dá o som lírico
às pás do moinho.

Somente as coisas tocadas
pelo amor das outras
têm voz.


O nome lírico - Fiama Hassa P. Brandão

Esta manhã
hoje
é um nome.

Nem mesmo amanheceu
nem o sol
a evoca.

Uma palavra
palavra só
a ergue.

Como um nome
amanhece
clareia.

Não do sol
mas de quem
a nomeia.


Epístola para os meus medos - Fiama Hassa P. Brandão


Sois: os sons roucos, a espera vã, uma perdida imagem.
O coração suspende o seu hálito e os lábios tremem
sinto-vos, vindes ao rés da terra, como ventos baixos,
poisais no peitoril. Sois muito antigos e jovens,
da infância em que por vós chorava encostada a um rosto.
Que saudade eu tenho, ó escuridão no poço,
ó rastejar de víboras nos caniços, ó vespa
que, como eu, degustaste o figo úbere.
Depois, mundo maior foi a presença e a ausência,
a alegria e as dores de outros que não eu.
E um dia, no alto da catedral de Gaudí,
chorei de horror da Queda, como os caídos anjos.

Sótão - Fiama Hassa Pais Brandão


Por interstícios das malas abertas de quando éramos
crianças gritam as bocas sem nenhum eco
das bonecas. Criaturas fictícias, escalpelizadas
e sem tintas, de ventre oco. Mas o mortal
lugar do coração está ainda a palpitar.
O bojo do peito de celulóide, como o meu,
pede-nos perdão pela saudade que nos devora.

Idade - Fiama Hassa P. Brandão



Conheci dias duradouros,
o sol tão longo entre manhã e tarde.
Um levantar súbito de luz
por trás da crista das heras no muro velho,
e depois descer no verão entre grades verdes
e para além do portão como a cair no Hades,
no inverno. Não havia tempo
nos dias longos, mas a passagem diária
do sol abençoado.

A folha viva - Fiama Hassa P. Brandão


Matem-se o ramo vivo
Da verdura. A folha
Cai, repõe-se, a copa reverdece,
O seu volume sobe.
Nada é efêmero
Sob o tom da luz. Tudo
Retoma a folha, tem recorte,
O seu pecíolo verde ou outra forma.
Cai a folhagem, tinge todo o chão.
Ou, possuída a terra, ela persiste
E é perene a queda
De uma árvore,
Depois o surto,
E tudo convergente, se mantém.

Poética do eremita - Fiama Hassa P. Brandão

No deserto estão secas
as pedras que no mar se molhavam
a semelhança confunde o eremita
que solitário demais
passou o tempo entregando-se
à solitária memória.
Aqui a pedra seca
para o eremita não perdeu
a qualidade úmida de poder
ter estado ao pé do mar.

Verso Vão - Fiama Hassa P. Brandão

Onda de sol, verso de ouro,
perífrase vã. Extasiar-me,
antes, por esta fusão,
mistura de brilhos. Ou, ainda
mais íntima, a consciência
extensa como o céu, o corpo de tudo,
semelhança absoluta. Respirar
na quebra da onda. Na água,
uma braçada lenta
até ao limite de mim.

Canto de Orfeu - Fiama Hassa P. Brandão

Pendurou no salgueiro a cítara
caminhou diante dos seus passos
sendo depois punido pelos Anjos.
Caminhou sempre para o futuro
mesmo olhando para trás na memória
e por esse futuro foi punido
pois levaria consigo a imagem viva.
Não era Eurídice aquela que o seguia
mas a sua face figurada
pelos olhos de Orfeu ainda capazes
de criar o modelo e a imagem.
Depois da morte ela ainda vivia
pronta para o prender em espelhos dúplices
e ele que amava nela o corpo, a alma,
o suor, o aroma, a linha dos dedos,
levou-a para sempre escendida
ao Tempo do Espaço depois do futuro.
Foi punido por Anjos ciosos
da sua ciência da Origem,
enquanto outros Anjos doces coroavam
aquele Filho que também levara
na memória dos olhos a figura
da Mãe, que todos os filhos levam em si.
Um terrível canto de lamento humano
Depois soou: "Che farò senza Uridice?",
com o som das vogais mais dolorosas.
Mas o sábio Orfeu deixou a lira
somente ser tocada pelo vento
quando o canto perseguia a imagem.

Viver na Beira-Mar - Fiama Hassa P. Brandão



Nunca o mar foi tão ávido
quanto a minha boca. Era eu
quem o bebia. Quando o mar
no horizonte desaparecia e a areia férvida
não tinha fim sob as passadas,
e o caos se harmonizava enfim
com a ordem, eu
havia convulsamente
e tão serena bebido o mar.

Resposta - Fiama Hassa P. Brandão

Eu vinha para a vida, e deram-me dias
vivos com os seus lugares e espaço.

Ontem nasci sem fim, e alimentei-me
nesta mesa que em duas se reparte.
Uma aba no mar, vagante à toa,
trouxe os sabores de ondas, de orlas.
Outra aba na terra mostrou-me as pedras
polidas, úberes, gastas. Pedras
densas que me encheram o ventre
e me criaram similar à Terra.
No mar tive cristais quebrados, jóias;
na terra, tão nítida poeira branca
que fundi as formas das flores visíveis.

E hoje é este olhar profundo,
deriva das imagens pelo mundo.

Urbanização - Fiama Hasse Pais Brandão

Tudo o que vivêramos
um dia fundiu-se
com o que estava
a ser vivido.
Não na memória
mas no puro espaço
dos cinco sentidos.
Havíamos estado no mundo, raso,
um campo vazio de tojo seco.

Depois, alguém
urbanizou o vazio,
e havia casas e habitantes
sobre o tojo. E eu,
que estivera sempre presente,
vi a dupla configuração de um campo,
ou a sós em silêncio
ou narrando esse meu ver.

Epístola para Dédalo - Fiama Hasse Pais Brandão


Porque deste a teu filho asas de plumagem e cera
se o sol todo-poderoso no alto as desfaria?
Não me ouviu, de tão longe, porém pensei que disse:
todos os filhos são Ícaros que vão morrer no mar.
Depois regressam, pródigos, ao amor entre o sangue
dos que eram e dos que são agora, filhos dos filhos.

A porta branca - Fiama Hassa Pais Brandão


Por detrás desta porta,
uma de todas as portas que para mim se abrem e se fecham,
estou eu ou o universo que eu penso.
Deste meu lado, dois olhos que vigiam
os fenómenos naturais, incluindo a celeste mecânica
e as sociedades humanas, sedentárias e transumantes.

Mas podem os olhos fazer a sua enumeração,
e pode o pensado universo infindamente ir-se,
que para mim o que hoje importa
é aquela olhada vaga porta.

Que ela seja só como a vejo, a porta branca,
com duas almofadas em recorte,
lançada devagar sobre o vão do jardim,
onde o gato, por uma fenda aberta
pela sua pata, tenta ver-me,
tão alheio a versos e a universos.