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Ausência - José Régio

Um a um, vão-se-me os dias,
Dia a dia, eu vou com eles...
Olhos extintos, mãos frias,
Perpasso ao longo dos dias
Como sombra que repeles...

E por quê? porque me deixas
Nesta frieza, em que forças
Nem tenho para erguer queixas
Cujo alívio me nem deixas,
Ou contra mim já não torças...?

Não me vês Tu sofrer tanto
Quanto gostas de me ver?
Ou não sei eu, por enquanto,
Valer-me de sofrer tanto
Para chegar a vencer?

No entanto, vão-se-me as horas
Num sofrer tudo o que passa,
Só porque Tu Te demoras
A atirar às minhas horas
Uns restos da Tua graça...

Levanto os olhos lá cima,
Sondo esse abismo estrelado,
Baixo-os ao chão..., e o que anima
Esse abismo lá de cima
Anima a colina e o prado:

Ao Teu simples ígneo sopro,
Abrem-se os astros, as flores,
E as cavernas como a escopro...
Encapelam-se, ao Teu sopro,
Vento e mar com seus furores...

Só a mim me não aqueces
Com as bênçãos do Teu bafo!
Só dum ser vivo Te esqueces,
E este ar, que já não aqueces,
Me não é ar, e eu abafo...

Fosse eu pedra bruta! fosse
Uma pouca de água! um bicho
Sem razão, feroz ou doce,
Que virias!, nem que eu fosse
Qualquer montinho de lixo...

Fosse eu terra..., e dera flor!
Fosse eu ar, mar... gozaria
No sol Teu próprio calor!
Que o céu dá sóis e o chão flor
Porque o Teu amor lhos cria...

Mas sou este ser humano
A quem deste alma, razão,
Coração, vontade.., e o engano
De sonhar ser mais que humano,
Contra a humanal condição!

E é por ser mais, que me deixas
Na solidão em que estou?
Por ser Teu filho, me fechas
Assim só comigo, e deixas
Entregue ao não-ser que sou?

Não posso! Que farei eu,
Tua obra-prima falhada,
Que acusa quem na escreveu
De lhe dar o que lhe deu
E a deixar não terminada?

Desde que Te amo, não sei
Com nada mais contentar-me!
Onde estarei? onde irei?
Desde que Te amo que sei
Que é tudo o mais vão alarme...

Corra que não corra o mundo,
Só sobre mim próprio giro
Sem mais encontrar, ao fundo
Dos mil caminhos do mundo,
Que um eu contra quem me firo...

Qualquer jornada que faça,
Qualquer empresa que tente,
Se me falha a Tua graça,
Faça o que faça ou não faça,
Que faço que me contente?

Amar-me, já o não consigo;
Fugir-me a mim, não no alcanço;
Não suporto estar comigo!
Se consigo ou não consigo,
Da mesma maneira canso...

Toda a largueza do mundo
Não me cura a falta de ar!
Sufoco!, neste profundo
Buraco negro do mundo
Que só Tu vens alargar...

E Tu não vens! e há que dias,
Há que séculos, Te espero,
De olhos extintos, mãos frias,
Sem nada que me encha os dias
Senão frio e desespero!

Fervem-me no peito as queixas,
As blasfémias, o clamor
Do abandono em que me deixas...
Mas gritos, blasfémias, queixas,
Bem sabes que é tudo amor!

Bem sabes como é verdade
Que nada Te substitui,
Ou Te empana a claridade,
Em quem, por ver a Verdade,
Já tudo em volta lhe rui...

Ai, que os irmãos me não creiam,
É de crer! pois lhes advém
Que soletrem mas não leiam,
E só creiam, ou não creiam,
Consoante lhes convém.

Mas Tu, que me vês por dentro
Como eles vêem por fora,
Tu, em cujo amor eu entro
Nu até alma, por dentro
Dum banho lustral de aurora,

Tu, — não! não podes deixar-me
Sem Ti, nem nada no mundo!
Para quê todo este alarme?
Mas como é que ousas deixar-me
Sequer um breve segundo?

Pois não vês que já pertences
Ao amor com que me enleias?
Não me enleies, ou não penses
Que eu, sim, mas Tu não pertences
Às nossas comuns cadeias!

Livra-me de Ti de vez,
Se Te não queres cativo
Do meu amor! Ou não vês
Que isto é nem morrer de vez
Nem, também, sentir-me vivo?

Em Ti, por Ti amo tudo!
Se Te vais e em vão Te chamo,
Fico cego, surdo, mudo...
Faltas-me e falta-me tudo,
Que afinal só a Ti amo!

Pois bem, deitar-me-ei por terra,
Nu no chão nu, sem conforto
Senão o cinto que enterra
Seus férreos dentes na terra
De minha carne e meu corpo,

Deitar-me-ei dias e noites,
Não provarei água ou pão,
Fustigar-me-ei com açoites,
Encherei dias e noites
Gritando a Tua traição,

Até que venhas! até
Que, de novo, a Tua graça
Me dê calor, luz, ar, fé,
Me ressuscite! ou até
Tudo que sou se desfaça...


Pérola solta - José Régio


Sem que eu a esperasse, 
Rolou aquela lágrima 
No frio e na aridez da minha face. 
Rolou devagarinho..., 
Até à minha boca abriu caminho. 
Sede! o que eu tenho é sede! 
Recolhi-a nos lábios e bebi-a. 
Como numa parede 
Rejuvenesce a flor que a manhã orvalhou, 
Na boca me cantou, 
Breve como essa lágrima, 
Esta breve elegia.

Libertação - José Régio

Menino doido, olhei em roda e vi-me
fechado e só na grande sala escura.
(Abrir a porta, além de ser um crime,
Era impossível para a minha altura...)

Como passar o tempo?...E diverti-me
Desta maneira trágica e segura:
Pegando em mim, resguei-me, abri, parti-me,
Desfiz trapos, arames, serradura...

Ah menino histérico e precoce!
Tu, sim!, que tens mãos trágicas de posse,
E tens a inquietação da Descoberta!

O menino, por fim, tombou cansado;
O seu boneco aí jaz esfarelado...
e eu acho, nem sei como, a porta aberta!

Natal - José Régio

Nascença Eterna,
Nasce mais uma vez!
Refaz a humílima Caverna
Que nunca se desfez.

Distância Transcendente,
Chega-te, uma vez mais,
Tão perto que te aqueças, como a gente,
No bafo dos obscuros animais.

Os que te dizem não,
Os épicos do absurdo,
Que afirmarão, na sua negação,
Senão seu olho cego, ouvido surdo?

Infelizes supremos,
Com seu fracasso alcançam nomeada,
E contentes se atiram aos extremos
Do seu nada.

Da nossa ambiguidade,
Somos piores, nós, talvez,
E uns e outros só vemos a verdade,
Que, Verdade de Sempre, tu nos dês.

Se nada tem sentido sem a fé
No seu sentido, Sol que não te apagas,
Rompe mais uma vez na noite, que não é
Senão o dia de outras plagas.

Perpétua Luz, Contínua Oferta
À nossa escuridade interna,
Abre-te, Porta sempre aberta,
Mais uma vez, na humílima Caverna.

LITANIA DO NATAL - José Régio

A noite fora longa, escura, fria.
Ai noites de Natal que dáveis luz,
Que sombra dessa luz nos alumia?
Vim a mim dum mau sono, e disse: «Meu Jesus…»
Sem bem saber, sequer, porque o dizia.

E o Anjo do Senhor: «Ave, Maria!»

Na cama em que jazia,
De joelhos me pus
E as mãos erguia.
Comigo repetia: «Meu Jesus…»
Que então me recordei do santo dia.

E o Anjo do Senhor: «Ave, Maria!»

Ai dias de Natal a transbordar de luz,
Onde a vossa alegria?
Todo o dia eu gemia: «Meu Jesus…»
E a tarde descaiu, lenta e sombria.

E o Anjo do Senhor: «Ave, Maria!»

De novo a noite, longa, escura, fria,
Sobre a terra caiu, como um capuz
Que a engolia.
Deitando-me de novo, eu disse: «Meu Jesus…»

E assim, mais uma vez, Jesus nascia.

Ignoto Deo - José Régio



Desisti de saber qual é o Teu nome,
Se tens ou não tens nome que Te demos,
Ou que rosto é que toma, se algum tome,
Teu sopro tão além de quanto vemos.
Desisti de Te amar, por mais que a fome
Do Teu amor nos seja o mais que temos,
E empenhei-me em domar, nem que os não dome,
Meus, por Ti, passionais e vãos extremos.


Chamar-Te amante ou pai... grotesco engano
Que por demais tresanda a gosto humano!
Grotesco engano o dar-te forma! E enfim,
Desisti de Te achar no quer que seja,
De Te dar nome, rosto, culto, ou igreja...
– Tu é que não desistirás de mim!