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Guimarães Rosa


A moça atrás da vidraça
espia o moço passar.
O moço nem viu a moça,
ele é de outro lugar.

O que a moça quer ouvir
o moço sabe contar:
ah, se ele a visse agora,
bem que havia de parar.

Atrás da vidraça, a moça
deixa o peito suspirar.
O moço passou depressa,
ou a vida devagar?




Consciência Cósmica - Guimarães Rosa


Já não preciso de rir.
Os dedos longos do medo
largaram minha fronte.
E as vagas do sofrimento me arrastaram
para o centro do remoinho da grande força,
que agora flui, feroz, dentro e fora de mim...

Já não tenho medo de escalar os cimos
onde o ar limpo e fino pesa para fora,
e nem deixar escorrer a força de dos meus músculos,
e deitar-me na lama, o pensamento opiado...

Deixo que o inevitável dance ao meu redor,
a dança das espadas de todos os momentos.
e deveria rir , se me retesse o riso,
das tormentas que poupam as furnas da minha alma,
dos desastres que erraram o alvo do meu corpo... 


Distância - Guimarães Rosa

Um cavaleiro e um cachorro
viajam para a paisagem.
Conseguiram que esse morro
não lhes barrasse a passagem.
Conseguiram um riacho
com seus goles, com sua margem.
Conseguiram boa sede.
Constataram:
cai a tarde.

Sobre a tarde, cai a noite,
sobre a noite a madrugada.
Imagino o cavaleiro
esta orvalhada e estrelada.
O pensar do cavaleiro
talvez o amar, ou nem nada.
Imagino o cachorrinho
imaginário na estrada.
Caía a tarde.

Para a tarde o cavaleiro
ia, conforme avistado.
Após, também o cachorro.
Todos – iam, de bom grado,
à tarde do cavaleiro
do cachorro, do outro lado
- que na tarde se perderam,
no morro, no ar, no contato.
Caiu a tarde.


O sono das águas - Guimarães Rosa


Há uma hora certa,
no meio da noite, uma hora morta,
em que a água dorme. Todas as águas dormem:
no rio, na lagoa,
no açude, no brejão, nos olhos d'água.
nos grotões fundos.
E quem ficar acordado,
na barranca, a noite inteira,
há de ouvir a cachoeira
parar a queda e o choro,
que a água foi dormir...

Águas claras, barrentas, sonolentas,
todas vão cochilar.
Dormem gotas, caudais, seivas das plantas,
fios brancos, torrentes.
O orvalho sonha
nas placas da folhagem.
E adormece
até a água fervida,
nos copos de cabeceira dos agonizantes...
Ma nem todas dormem, nessa hora
de torpor líquido e inocente.
Muitos hão de estar vigiando,
e chorando, a noite toda,
porque a água dos olhos
nunca tem sono...


Saudade, sempre - João Guimarães Rosa

Sem mim
me agarro a um tanto de mim
não aqui
já existente
sobre tudo e abismo.
Horas são outrora
além-de. O
muito em mim me faz:
som de solidão.


LUAR - Guimarães Rosa


De brejo em brejo,
os sapos avisam:
--A lua surgiu!...

No alto da noite as estrelinhas piscam,
puxando fios,
e dançam nos fios
cachos de poetas.

A lua madura
Rola,desprendida,
por entre os musgos
das nuvens brancas...
Quem a colheu,
quem a arrancou
do caule longo
da via-láctea?...

Desliza solta...

Se lhe estenderes
tuas mãos brancas,
ela cairá...


Alongo-me - Guimarães Rosa


O rio nasce
toda a vida.
Dá-se
ao mar a alma vivida.
A água amadurecida,
a face
ida.
O rio sempre renasce.
A morte é vida.


Madrigal gravado em laca - Guimarães Rosa

Quando a borboleta coroou a flor amarela
os lírios , em ângulo reto com seus caules,
fizeram uma profunda saudação...

Amanhecer - Guimarães Rosa



Floresce, na orilha da campina,
esguio ipê
de copa metálica e esterlina.

Das mil corolas,
saem vespas,abelhas e besouros,
polvilhados de ouro,
a enxamear no leste,onde vão pousando
nas piritas que piscam nas ladeiras,
e no riso das acácias amarelas.

Dos charcos frios
sobem a caçá-los redes longas,
lentas e rasgadas de neblina.
Nuvens deslizam,despetaladas,
e altas, altas,
garças brancas planam.

Dançam fadas alvas,
cantam almas aladas,
na taça ampla,
na prata lavada,
na jarra clara da manhã...

Desconhecido - Guimarães Rosa


Sou o pensamento
O vento soprando forte
O barco da sorte
O sorriso da alegria
A força da magia
A dor do fraco
O segredo do forte
O medo da vida

Oração - Guimarães Rosa

O louva-deus, ereto, num caule de junquilho,
reza , de mãos postas, com punhais cruzados,
como um bandido calabrês...

Guimarães Rosa

O correr da vida embrulha tudo.
A vida é assim: esquenta e esfria,
aperta e daí afrouxa,
sossega e depois desinquieta.
O que ela quer da gente é coragem.

Saudade de tudo!... João Guimarães Rosa


Saudade, essencial e orgânica,
de horas passadas,
que eu podia viver e não vivi!...
Saudade de gente que não conheço,
de amigos nascidos noutras terras,
de almas órgãs e irmãs,
de minha gente dispersa,
que talvez até hoje ainda espere por mim...

Saudade triste do passado,
saudade gloriosa do futuro,
saudade de todos os presentes
vividos fora de mim!...

Pressa!...
Ânsia voraz de me fazer em muitos,
fome angustiosa da fusão de tudo,
sede da volta final
da grande experiência:
uma só alma em um só corpo,
uma só alma-corpo,
um só,
um!...
como quem fecha numa gota
o Oceano,
afogado no fundo de si mesmo...