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Vem navegar na minha vida - Caio F. Abreu

 Vem navegar na minha vida
 Faça de conta que meu corpo é um rio,
 Faça de conta que os meus olhos são a correnteza,
 Faça de conta que meus braços são peixes
 Faça de conta que você é um barco
 E que a natureza do barco é navegar.
 E então navegue, sem pensar,
 Sem temer as cachoeiras da minha mente,
 Sem temer as correntezas, as profundidades.
 Me farei água clara e leve.
 Para que você me corte lenta, segura,
 Até mergulharmos juntos no mar
 Que é nosso porto.



Caio Fernando Abreu



Por tudo que fomos.
Por tudo o que não conseguimos ser.
Por tudo que se perdeu.
Por termos nos perdido.
Pelo que queríamos que fosse e não foi.
Pela renúncia.
Por valores não dados.
Por erros cometidos.
Acertos não comemorados.
Palavras dissipadas.
Versos brancos.
Chorei pela guerra cotidiana.
Pelas tentativas de sobrevivência.
Pelos apelos de paz não atendidos.
Pelo amor derramado.
Pelo amor ofendido e aprisionado.
Pelo amor perdido.
Pelo respeito empoeirado em cima da estante.
Pelo carinho esquecido junto das cartas envelhecidas no guarda- roupa.
Pelos sonhos desafinados, estremecidos e adiados.
Pela culpa. Toda a culpa. Minha. Sua. Nossa culpa.
Por tudo que foi e voou.
E não volta mais, pois que hoje é já outro dia.
Chorei.
Apronto agora os meus pés na estrada.
Ponho-me a caminhar sob sol e vento.
Vou ali ser feliz e já volto.

Caio F. Abreu

Meu Deus, não sou muito forte,
não tenho muito além de uma certa fé.
Preciso agora da tua mão sobre a minha cabeça.
Que eu não perca a capacidade de amar, de ver, de sentir.
Que eu continue alerta.
Que, se necessário,
eu possa ter novamente o impulso do voo no momento exato.
Que eu não me perca,
que eu não me fira,
que não me firam,
que eu não fira ninguém.
Livra-me dos poços e dos becos de mim, Senhor.
Que meus olhos saibam continuar se alargando sempre.

Caio Fernando Abreu

No meio do rio, eu via a pedra.
A única naquela extensão azul de água,
o pico negro erguido em inesperada fragilidade na solidão.
Eu não tinha instrumentos para caminhar até ela, a pedra,
tomá-la nos braços,
por um instante debruçar minha ternura
sobre seu isolamento
num absurdo desejo que em sua insensibilidade de coisa
ela se fizesse sensível e, assim suavizada,
contivesse o desespero amparando-se em mim.

Por que ela se perdia assim
e assim se assumia e se cumpria em pedra,
dona de si mesma, dispensando qualquer afeto,
qualquer comunicação?
Ela se bastava.

Parecia já ter ido além da própria estrutura
num lento inventariar do mundo ao redor,
como se seu pico tivesse olhos e esses olhos
projetassem indagações em torno, avançando nas descobertas,
constatações se fazendo certezas.

E como se seu isolamento fosse deliberado,
como se já não acreditasse em mais nada
e tivesse escolhido o amparo apenas das águas,
a precária proteção do azul _ como se tivesse escolhido o vento,
a erosão, os vermes, os musgos que a roíam devagar.
Assim, da mesma forma como outros escolhem o apoio das pessoas
ou a nudez do campo, ela escolhera o desafio da entrega.
O despojamento de ser, insolucionada e completa em suas fronteiras:
pedra porque pedra fora, era e seria num sempre que a sustentava,
frágil e absoluta.

Oriente - Caio Fernando Abreu


Manda-me verbena ou benjoim no próximo crescente
e um retalho roxo de seda alucinante
e mãos de prata ainda (se puderes)
e se puderes mais, manda violetas
(margaridas talvez, caso quiseres)

manda-me osíris no próximo crescente
e um olho escancarado de loucura
(em pentagrama, asas transparentes)

manda-me tudo pelo vento:
envolto em nuvens, selado com estrelas
tingido de arco-íris, molhado de infinito
(lacrado de oriente, se encontrares).

Caio Fernando Abreu


Não, não ofereço perigo algum:
sou quieta como folha de outono
esquecida entre as páginas de um livro,
sou definida e clara como o jarro
com a bacia de ágata no canto do quarto
- se tomada com cuidado,
verto água límpida sobre as mãos
para que se possa refrescar o rosto mas,
se tocada por dedos bruscos
num segundo me estilhaço em cacos,
me esfarelo em poeira dourada.

Alento - Caio Fernando Abreu

Quando mais nada houver,
eu me erguerei cantando,
saudando a vida
com meu corpo de cavalo jovem.

E numa louca corrida
entregarei meu ser ao ser do Tempo
e a minha voz à doce voz do vento.

Despojado do que já não há
solto no vazio do que ainda não veio,
minha boca cantará
cantos de alívio pelo que se foi,
cantos de espera pelo que há de vir.

Escorreu o dia como areia,
ficou a poesia amordaçada.
Mas a lua na madrugada,
pondo-lhe uma caneta
entre os dedos ordenou:
-Toda poesia deverá ser liberada!!
E então fez-se verbo
da palavra aprisionada!
A voz da poesia ocordou o dia,
e assustou a passarada!

Caio Fernando Abreu

Tenho a boca afiada de punhais
não choro
olho os faróis com duros olhos
ardidos de quem tem febres
mas não sangro
as mãos vazias deixam passar o vento
lavando os dedos que não se crispam
não há palavras, nem mesmo estas
o único sentido de estar aqui
é apenas estar secamente aqui
cravado como um prego
em plena carne viva da tarde.

Que seja doce - Caio Fernando Abreu

Repito todas as manhãs,
ao abrir as janelas para deixar
entrar o sol ou o cinza dos dias,
bem assim: que seja doce.
Quando há sol, e esse sol bate
na minha cara amassada do sono
ou da insônia,
contemplando as partículas de poeira soltas no ar,
feito um pequeno universo,
repito sete vezes para dar sorte:
que seja doce que seja doce que seja doce
e assim por diante.
Mas, se alguém me perguntasse
o que deverá ser doce,
talvez não saiba responder.
Tudo é tão vago como se fosse nada.
Ninguém perguntará coisa alguma, penso.
Depois continuo a contar para mim mesmo,
como se fosse ao mesmo tempo
o velho que conta e a criança que escuta,
sentado no colo de mim.

Sonhe - Caio F. Abreu


Tem sempre um pôr-do-sol
esperando para ser visto,
uma árvore, um pássaro,
um rio, uma nuvem...

Imagine.
Invente.
Sonhe.
Voe.