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Penélope - Alcides Villaça


Minha irmã foi noiva longamente
que hoje borda e fia na janela,
penélope de próprio labirinto.
Eu mesmo na janela não diviso
senão a vaga espera, em gesto aéreo,
tecida apenas do desejo aflito
com que bordo seu noivo nos atrasos.
Não cabem nossos olhos nesta sala
tão grande, de paredes recuadas;
pois que se cruzem, se amem, se maltratem
com entender de si seus tempos vários.

Apanho teu novelo descuidado.
componho-o de novo, ao revés;
alcança-o teu colo, no bordado
de onde partiu e chega, já sem cor.
Teu noivo, nessa espera, longamente
não vem; o que te posso responder
(como profeta que olha à ré do corpo)
é que já não virá, em seu destino
entregue à solidão dos esperados.
E nós, nosso retrato se colore
daquele azul das horas cumuladas
com que à distância vemos, no bordado,
fio e agulha em linho descansando.
Teu corpo no caminho da janela
eternamente indo, e eu ficando.



Viagem Antiga - Alcides Villaça

Havia vezes eu me via
como um menino não se vê.
A água na nuvem se adivinha,
a sede vem antes de sua vez.

Havia vezes eu me renascia
sem nunca ter saído além de mim:
emprestava-me espelhos e outras vias
de ver tocar sentir o fundo o si.

Era um segundo inteiro ou todo um dia
quando lançava o olhar além de mim
e me via em tudo o que não via?
Que trem cortava o tempo desse abril?

Em que viagem eu era o meu caminho?
Às vezes os meninos pousam olhos
no fim das paralelas, e descansam
o corpo de seus pesos e medidas.

Se nesta noite fixo a luz da esquina
e torno lento o sangue em seu caminho,
nem sombra apanho da viagem antiga
que, quando eu não queria, me fazia.

A costureira - Alcides Villaça

Que me quer a memória, a costureira?
Vale-se de meus dedos para sonhar,
e quando acordo mal me vejo.

Que me quer com retalhos
de um manto que nunca usei?
Vale-se de meu sonho para o trajar.

Quem pula em meu quintal às horas mortas
e me põe trêmula ogiva sob a pálpebra,
coração de um azul que não pedi?

Quem se finge morrer, para cerzir
na sombra a própria sombra - e some
à prima luz?

Quem costura alta noite, quem pedala
as correias à ré, e me abandona
às figuras de gelo?

A costureira com seus figurinos
volta páginas e páginas, num contínuo
desfile de moldes agulhados.

Que me quer a mulher? Gargareje
seus préstimos, quando queira,
só não me assalte o escasso tempo

que me costuro eu mesmo enquanto esqueço
o som da máquina extinta, e me recreio
com o corpo que tenho e o sopro ausente.