Mostrando postagens com marcador Ferreira Gullar. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Ferreira Gullar. Mostrar todas as postagens

mar azul - Ferreira Gullar

mar azul marco azul
mar azul marco azul barco azul
mar azul marco azul barco azul arco azul
mar azul marco azul barco azul arco azul ar azul

 

Aprendizado - Ferreira Gullar

Do mesmo modo que te abriste à alegria
abre-te agora ao sofrimento
que é fruto dela
e seu avesso ardente.

Do mesmo modo
que da alegria foste
ao fundo
e te perdeste nela
e te achaste
nessa perda
deixa que a dor se exerça agora
sem mentiras
nem desculpas
e em tua carne vaporize
toda ilusão

que a vida só consome
o que a alimenta.


Cantiga para não morrer - Ferreira Gullar


Quando você for embora,
moça branca como a neve
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.


Neste leito de ausência - Ferreira Gullar

Neste leito de ausência em que me esqueço
desperta o longo rio solitário:
se ele cresce de mim, se dele cresço,
mal sabe o coração desnecessário.

O rio corre e vai sem ter começo
nem foz, e o curso, que é constante, é vário.
Vai nas águas levando, involuntário,
luas onde me acordo e me adormeço.

Sobre o leito de sal, sou luz e gesso:
duplo espelho — o precário no precário.
Flore um lado de mim? No outro, ao contrário,
de silêncio em silêncio me apodreço.

Entre o que é rosa e lodo necessário,
passa um rio sem foz e sem começo.


No corpo - Ferreira Gullar


De que vale tentar reconstruir com palavras
o que o verão levou
entre nuvens e risos
junto com o jornal velho pelos ares?

O sonho na boca, o incêndio na cama.
o apelo na noite
agora são apenas esta
contração (este clarão)
de maxilar dentro do rosto.

A poesia é o presente.



Uma fotografia aérea - Ferreira Gullar


I
Eu devo ter ouvido aquela tarde
um avião passar sobre a cidade
aberta como a palma da mão
entre palmeiras
e mangues
vazando no mar o sangue de seus rios
as horas
do dia tropical
aquela tarde vazando seus esgotos seus mortos
seus jardins
eu devo ter ouvido
aquela tarde
em meu quarto?
na sala? no terraço
ao lado do quintal?
o avião passar sobre a cidade
geograficamente
desdobrada
em si mesma
e escondida
debaixo dos telhados lá embaixo sob
as folhas
lá embaixo no escuro
sonoro do capim dentro
do verde quente
do capim
junto à noite da terra entre
formigas (minha
vida!) nos cabelos
do ventre e morno
do corpo por dentro na usina
da vida
em cada corpo em cada
habitante
dentro
de cada coisa
clamando em cada casa
a cidade
sob o calor da tarde
quando o avião passou

II
eu devo ter ouvido no meu quarto
um barulho cortar outros barulhos
no alarido da época
rolando
por cima do telhado
eu
devo ter ouvido
(sem ouvir)
o ronco do motor enquanto lia
e ouvia
a conversa da família na varanda
dentro daquela tarde
que era clara
e para sempre perdida
que era clara
e para sempre
em meu corpo
a clamar
(entre zunidos
de serras entre gritos
na rua
entre latidos
de cães
no balcão da quitanda
no açúcar já-noite das laranjas
no sol fechado
e podre
àquela hora
dos legumes que ficaram sem vender
no sistema de cheiros e negócios
do nosso Mercado Velho
– o ronco do avião)


III
eu devo ter ouvido
seu barulho atolou-se no tijuco
da Camboa na febre
do Alagado resvalou
nas platibandas sujas
nas paredes de louça
penetrou nos quartos entre redes
fedendo a gente
entre retratos
nos espelhos
onde a tarde dançava iluminada
Seu barulho
era também a tarde (um avião) que passava
ali
como eu
passava à margem do Bacanga
em São Luís do Maranhão
no norte
do Brasil
sob as nuvens

IV
eu devo ter ouvido
ou mesmo visto
o avião como um pássaro
branco
romper o céu
veloz voando sobre as cores da ilha
num relance passar
no ângulo da janela
como um fato qualquer
eu devo ter ouvido esse avião
que às três e dez de uma tarde
há trinta anos
fotografou nossa cidade


V
meu rosto agora
sobrevoa
sem barulho
essa fotografia aérea
Aqui está
num papel
a cidade que houve
(e não me ouve)
com suas águas e seus mangues
aqui está
(no papel)
uma tarde que houve
com suas ruas e casas
uma tarde
com seus espelhos
e vozes (voadas
na poeira)
uma tarde que houve numa cidade
aqui está
no papel que (se quisermos) podemos rasgar


Falar - Ferreira Gullar


A poesia é, de fato, o fruto
de um silêncio que sou eu, sois vós,
por isso tenho que baixar a voz
porque, se falo alto, não me escuto.

A poesia é, na verdade, uma
fala ao revés da fala,
como um silêncio que o poeta exuma
do pó, a voz que jaz embaixo
do falar e no falar se cala.

Por isso o poeta tem que falar baixo
baixo quase sem fala em suma
mesmo que não se ouça coisa alguma.



Dois e dois: quatro - Ferreira Gullar


Como dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena
embora o pão seja caro
e a liberdade pequena

Como teus olhos são claros
e a tua pele, morena
como é azul o oceano
e a lagoa, serena

como um tempo de alegria
por trás do terror me acena

e a noite carrega o dia
no seu colo de açucena

- sei que dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena

mesmo que o pão seja caro
e a liberdade, pequena.


Versos de entreter-se - Ferreira Gullar


À vida falta uma parte
- seria o lado de fora -
pra que se visse passar
ao mesmo tempo que passa

e no final fosse apenas
um tempo de que se acorda
não um sono sem resposta

À vida falta uma porta.


Trenzinho Caipira - Ferreira Gullar


Lá vai o trem com o menino
Lá vai a vida a rodar
Lá vai ciranda e destino
Cidade e noite a girar
Lá vai o trem sem destino
Pro dia novo encontrar


Correndo vai pela terra
Vai pela serra
Vai pelo mar
Cantando pela serra o luar
Correndo entre as estrelas a voar
No ar, no ar...


Ano Novo - Ferreira Gullar


Meia-noite. Fim
de um ano, início
de outro. Olho o céu:
nenhum indício.

Olho o céu:
o abismo vence o
olhar. O mesmo
espantoso silêncio
da Via-Láctea feito
um ectoplasma
sobre a minha cabeça
nada ali indica
que um ano novo começa.

E não começa
nem no céu nem no chão
do planeta:
começa no coração.

Começa como a esperança
de vida melhor
que entre os astros
não se escuta
nem se vê
nem pode haver:
que isso é coisa de homem
esse bicho
estelar
que sonha
(e luta).




Memória - Ferreira Gullar


Menino no capinzal caminha
nesta tarde e em outra
há vida
Entre capins e mata-pastos
vai, pisa
nas ervas mortas ontem
e vivas hoje
e revividas no clarão da lembrança

E há qualquer coisa azul que o ilumina
e que não vem do céu, e se não vem
do chão, vem
decerto do mar batendo noutra tarde
e no meu corpo agora
- um mar defunto que se acende na carne
como noutras vezes se acende o sabor
de uma fruta
ou a suja luz dos perfumes da vida
ah vida!


Madrugada - Ferreira Gullar


Do fundo de meu quarto, do fundo
de meu corpo
clandestino
ouço (não vejo) ouço
crescer no osso e no músculo da noite
a noite

a noite ocidental obscenamente acesa
sobre meu país dividido em classes.


Tato - Ferreira Gullar

Na poltrona da sala
as mãos sob a nuca
sinto nos dedos
a dureza do osso da cabeça
a seda dos cabelos
que são meus

A morte é uma certeza invencível

mas o tato me dá
a consistente realidade
de minha presença no mundo


Meu povo, meu poema - Ferreira Gullar


Meu povo e meu poema crescem juntos
como cresce no fruto
a árvore nova.

No povo meu poema vai nascendo
como no canavial
nasce verde o açúcar.

No povo meu poema está maduro
como o sol
na garganta do futuro.

Meu povo em meu poema
se reflete
como a espiga se funde em terra fértil.

Ao povo seu poema aqui devolvo
menos como quem canta
do que planta.



A Fala - Ferreira Gullar

  As crianças riem no esplendor das frutas, Vina,
O sol é alegre.
Esta estrada, esta estrada de terra
onde as velhas sem teto se transformam em aves, O sol
é alegre.
Fala-me da ciência. O hálito maduro
em que as folhas crescem donas de sua morte.

Vina, as hortaliças não falam. Me curvo sobre nós
e as minhas asas tocam o teto.
Aonde não chega o amor e o sábado é mais pobre,
Lá, ciscamos estes séculos.
Os meus olhos, sábios, sorriem-me de entre as pedras.
Prossegue, eu te escuto, chão, usar a minha língua.
Vejo os teus dentes e o seu brilho. A terra, dizes,
a terra. Prossegue.

Falemos alto. Os peixes ignoram as estações e nadam.
Nos, caminhamos entre as árvores. Quando é verão, os druidas,
curvados, recolhem as ervas novas.
falemos alto,
Os milagres são poucos.
As águas refletem os cabelos, as blusas dos viajantes.
Os risos, claros, detrás do ar. Os pássaros voam em silêncio.
Não te posso dizer: ‘vamos’ – senão por aqui.
A infância dentro da luz dum musgo que os bichos
comem com a sua boca.
Eu ouço o mar; sopro, caminho na folhagem.
Mirar-nos límpidos no susto das águas escondidas!,
a alegria debaixo das palavras.

O culto do sol perdeu os homens; os restos de suas asas
rolam nestas estradas por onde vamos ainda.
Aqui é o chão, o nosso. No alto ar as esfinges sorriem.
Seus vastos pés de pedra, entre as flores.

Sopra, velho sopro de fé, vento das épocas
comedor de alfabetos, come o perfil dos mitos, vento
grande rato do ar eriçado de fomes,
Galopa

Esta linguagem não canta e não voa,
não voa,
o brilho baixo;
filha deste chão, vento que dele se ergue
em suas asas de terra.
Aqui, a pouca luz,
ganha a um sol fechado, soluça.

Sopra o coração o sol das folhas, Vina,
é verão nas minhas palavras.

Maduras, movem-se
as águas, fervilhando de rostos.
E me iluminam um lado no silêncio
para onde as cousas estão extremamente voltadas.

O teu mais velho canto,
arrastado com sol, varrido
no coração das épocas,
eu o recolho, agora, de entre estas pedras, queimado.

Tua boca, real,
clareia os campos que perdemos.
Eu jazo detrás da casa, aonde já ninguém vai
(onde a mitologia sopra, perdida dos homens,
entre flores pobres).
Fora, é o jardim, o sol – o nosso reino.
Sob a fresca linguagem, porém,
dentro de suas folhas mais fechadas,
a cabeça, os chavelhos reais de lúcifer,
esse diurno.

Assim é o trabalho. Onde a luz da palavra
torna à sua fonte,
detrás, detrás do amor,
ergue-se para a morte, o rosto.

Um fogo sem clarão queima os frutos
neste campo. Onde a vegetação não ri.

Cavamos a palavra. Sob o seu lustro
a cal; e cavamos a cal.

Onde jorrara a fonte, as pedras
secas. Onde jorrara
a fonte, jorrara a fonte.

Aqui jorrara a fonte.

Um fogo sem clarão cria os frutos deste campo.

Isto é a poesia florindo
sem rumor e sem milagre. A poeira
florindo o seu milagre.
Isto é um verão se erguendo
com as suas folhas e o seu sol.
Duma garganta clara,
o mar (um verão)
se erguendo sem barulho.

Numa altura do ar,
esplendentes,
as frutas.
Aonde não chega a fome, a nossa
fome, nos mostro:
as frutas!

Onde jorrara a fonte, jorrara
a fome. Onde jorrara
a morte, jorrara
a fonte. Aqui,
jorrara a fonte.
Aqui, onde jorrara
a morte, a água sorria
livre; a primavera
brilhava nos meus dentes.

Onde jorrando a morte, a fome vinha
e a boca apodrecia bem seu hálito;
e no hálito as rosas
desta fonte; e nas rosas
a morte desta fome.

As frutas sem morte
não as comemos.
Essas
que uma outra fome, clara,
segura.
Essas
suspensas lá onde o silêncio,
não bem como uma árvore
de vidro,
frutifica.

Ouve jorrar a morte
no teu riso, a alegria
queimando a vida;
os teus bichos domésticos,
as flores infernais
a rebentar dos passos.
Agora, eu te falo duma água
que não te molha a mão
nem reflete
O teu rosto casual

O odor
do corpo é impuro,
mas é preciso amá-lo.
Nenhum outro sol me clareia,
senão esse, mortal
como um pássaro,
que meu trabalho acende
desse odor.

E é assim que a alegria constrói;
dentro de minha boca,
o seu cristal difícil.

Movimento – tão pouco é o ar,
tão muito o tempo falho
nesse ar.

Fala: movimento... a fala
acende da poeira. Gira
o cone do ar, as velhas forças
movendo a luz.

Move, que é onde se apoia
o vértice do pó.
Roda a mecânica esquecida
e, resguardado, o trigo
– o silêncio extremo
acossado de sóis.
As cavernas jamais tocadas
vibram.

Apagado o hálito,
onde seguras
o teu vivo brilho?

Trigo, trigais
comidos. Rebenta
no ouro a espiga.
O nosso pão vacila
mas a tua língua é feliz.

O mito nos apura
em seus cristais.

Os ventos que enterramos
não nos deixam.
Estão nos castigando
com seu escuro fogo.

A altura em que queimamos
o sono
estabelece o nosso inferno
e as nossas armas.

Chão verbal,
campos de sóis pulverizados.
As asas da vida aqui se desfazem
e mais puras regressam.

O mar lapida os trabalhos
de sua solidão

A palavra erguida
vigia
acima das fomes
o terreno ganho.
Flores diurnas, minhas feras,
estas são as máquinas do voo
A pele do corpo
se incendeia
em vosso inferno verdadeiro.

Eu te violento, chão da vida,
garganta de meu dia.
Em tua áspera luz
governo o meu canto.

Sobre a poeira dos abraços
construo meu rosto

Entre a mão e o que ela fere
o pueril sopra seu fogo

Oficina impiedosa!
Minha alquimia
é real

Na minha irascível pátria
o perfume
queima a polpa
Nos fundos lagos o dia move
seus carvões enfurecidos

O silêncio sustenta caules
em que o perigo gorjeia.

As rosas que eu colho
não são essas, frementes
na iluminação da manhã;
são, se as colho, as dum jardim contrário,
nascido desses, vossos, de sua terrosa
raiz, mas crescido inverso
como a imagem nágua;
aonde não chegam os pássaros
com seu roubo, no exasperado coração da terra,
floresce, tigre, isento de odor.

Aranha,
como árvore, engendra na sombra
a sua festa, seu voo qualquer.
Velhos sóis que a folhagem bebeu,
luz, poeira
agora, tecida no escuro. Alto abandono
em que os frutos alvorecem,
e rompem!

Mas não se exale a madurez
desse tempo: e role o ouro, escravo,
no chão,
para que o canto se redima sem ajuda.



Um instante - Ferreira Gullar

Aqui me tenho
como não me conheço
nem me quis
sem começo
nem fim
aqui me tenho
sem mim

nada lembro
nem sei
à luz presente
sou apenas um bicho
transparente.


Não há vagas - Ferreira Gullar

O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

- porque o poema, senhores,
está fechado:
"não há vagas"

Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

O poema, senhores,
não fede
nem cheira.


Traduzir-se - Ferreira Gullar


Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?


A Voz do Poeta - Ferreira Gullar


Não é voz de passarinho
flauta do mato
viola

Não é voz de violão
clarinete pianola

É voz de gente
(na varanda? na janela?
na saudade? na prisão?)

é voz de gente - poema:
fogo logro solidão.