Mostrando postagens com marcador Graça Pires. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Graça Pires. Mostrar todas as postagens

Quando Anoitece - Graça Pires

Quando anoitece
 contorno no meu rosto
 o perfil do dia que passou
 e tudo o que não sou
 me contradiz.

 Quando anoitece
 atravesso um labirinto
 caiado de paixão,
 pretexto circular
 da minha fé.

 Quando anoitece
 faço emergir do abismo
 um instinto quase secreto
 e fujo da noite,
 em vertiginosa simetria com o vento,
 como se fosse um equívoco
 esperar a madrugada
 com a mesma lentidão
 de um acto íntimo.

 Contra um muro branco
 esta lonjura gémea do vento.

 Uma casa ou um regaço
 alternando a desordem
 de corpos molhados
 numa dicotomia simulada
 quando o prazer
 é o reflexo nítido
 de um coágulo de azul
 queimado sobre madrepérolas.

 São corais que no fundo da água
 não quebram as vagas silvestres.

 Nasci agora
 enquanto uma andorinha
 baloiçava no espelho
 atravessado de pólen.

 Sou, sílaba por sílaba,
 o luto ou a negação
 de desumanos deuses.

 Quando anoitece...




Perfil - Graça Pires


De passagem,
 como a véspera imprecisa
 do poema,
 principia em mim
 a planície agreste
 da solidão dos outros.
 E a não ser
 o silêncio poente
 dos meus olhos,
 tudo o resto me diz
 que sou um pássaro
 a voar, inconsequentemente,
 no sentido das palavras.


Encantamento - Graça Pires

Amanhã, quando o chão for a construção da nudez
 e houver, entre os teus olhos
 e os meus, um súbito musgo,
 não se repetirá, meu Amor,
 o cambalear das palavras na garganta,
 nem diremos a interdição dos lagos
 na saliva esgotada no sal.

 Alguns corpos inventam
 a dimensão incondicionada da noite,
 exposta e cúmplice como a terra.
 Nós saberemos, lentamente,
 o mel inquietante dos dedos.

 Em nome da primeira vez que amei,
 tracei na pele um movimento eterno de combustão e dor,
 peças sensíveis da engrenagem
 montada no fundo dos meus olhos
 como um ciclo solar.

 Hoje conheço os contornos de um lugar
 pela quietude das ondas na maré vaza,
 ou pela brisa espontânea do poente
 e sei que o amor,
 onde nenhuma contradição é necessária
 é tudo quanto sobra no espaço vazio
 entre o que somos e o que não somos.


Expressão - Graça Pires


Dentro da curva inesperada
 dos meus braços,
 transbordam os gestos
 numa espiral imperceptível.

 Nas pontas dos meus dedos
 se alonga a neblina
 que deriva do inverso da loucura
 quando prendo nos dentes
 a superstição da lua
 ou esboço no riso
 a cumplicidade dos espelhos
 timidamente transparentes
 para dizer que só pelo silêncio
 se vence o labirinto das palavras
 e se mede a solidão.



É de terra o molde do meu corpo - Graça Pires



 Escavo no peito um declive de seara
para ceifar o pão e roçar o ventre
no aroma dos fenos, até que o fermento
 levede o trigo por entre os dedos do estio.
As farpas de um arado podem sulcar-me a pele
porque é de terra o molde do meu corpo.


Apesar da sede - Graça Pires



Tudo podia ser mais simples.
Mas a infância fica tão longe
e os espelhos começaram
a gritar-me uma inocência
que deixou de ser minha
para sempre.
O que quero dizer
acompanha, devagar,
o movimento do sol.
E são cada vez mais lentos
os passos que me levam
na direção das nascentes.
Apesar da sede.


A cor do entardecer - Graça Pires



Planto urzes brancas
em redor do caminho.
No começo do verão,
será tão intensa
a cor do entardecer,
que os frutos hão-de devorar-me
a boca, para conter a sede.