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Poema infinitivo - Fernando Py


Valorizar toda manhã de sol
como se a derradeira fosse.

Toda manhã de sol sobre a verdura
como se nunca mais houvesse.

Sentir que a vida é ainda boa e amiga
feito na antiga meninice.

E não temer a morte soberana
que se engalana para o enlace.


O verbo - Fernando Py


o verbo
preexiste
às areias do tempo

o verbo
perfaz o mundo
em seus números

o verbo
no espaço da frase
conjuga
seu traço múltiplo

o verbo
molda-se em carne
no disfarce
da palavra

o verbo
se apessoa
aos enxertos
da voz

o verbo
mal se conquista
- a doma é acerba

o verbo
se averba


Canto de Muro - Fernando Py

Num canto de muro
o garoto chorava
num canto de muro
a Terra findava
num canto de muro
a noite pousava
crepúsculo sujo
de rua asfaltada.

Num canto de muro
nem Deus se encontrava
num canto de muro
blasfêmia gravada
num canto de muro
o diabo urinava
no chão sem futuro
da terra ensombrada.

Num canto de muro
o sol desmaiava
e a noite tranquila
o solo ocupava
— a posse, tão fria
(terreno tão duro)
teu ângulo diedro,
parede, rachado.

Num canto de muro
esquina forçada
o mundo vivia
e o mundo acabava.
Num canto de muro
a sombra vazia
prepara o futuro
da nova cidade.

Flor - Fernando Py

Quem te ensinou o segredo
e a forma de assim colorir?
Quem te criou o perfume?
Quem te fez sorrir?
(O seio assim despojado
o corpo e a voz sem brilhar
silêncio de todas as cores
domínio da luz sobre o tempo.)
Quem te viveu nos momentos
de desespero e abandono
ao ar, ao sol – teus lamentos?
Quem te sofreu as tragédias
sob mão assassina e lasciva?
Quem te sentiu os instantes
de morte, paz e miséria?

No jarro inútil – prisão colorida,
já não és mais a mesma voz.
O seio murchou e o perfume
desfez-se. Ninguém reparou.
Quem te fará outra vez?



Paisagem interior - Fernando Py

Casas desertas ao sol de verão
Portas abertas
Brilho vidrado nas lajes do chão
Luz sempre inquieta
Falso silêncio, dúbio e sem cor
Veias pulsando
Calmo terreno, só, sem amor
Tempo infinito
Ar tão parado, vida esquecida
num pensamento
Não há mais nuvens nem esperança
nem um lamento
Aves que voam, lentas, pesadas
- sublimação
Vários insetos dentro da casa
- vivo cadáver
Olhos quebrados, luz defluindo
- último sangue
Vivas as veias vão navegando
- mas sem destino.

Sol de verão nas casas desertas
- perdidas
E eternamente vai se apagar
a luz inquieta
Sempre à procura, nunca esperando
felicidade
até que um dia o falso silêncio
seja verdade.


Crise - Fernando Py



O horizonte encoberto. Nuvens agridem.
Blasfêmias elevam-se, caem.
Os cavalos soltos nas planícies, nitridos,
Crinas galopando na névoa, superfície quebrada,
cascos, ânsia no duro pisar, levantando ódio,
negrume, os cavalos.

Os cavalos: as patas, o pescoço intumescido,
Veias saltando, os cavalos são dor
- angústia presa devastando o horizonte encoberto.
Cinza na boca, sombra e fezes, garra sobre o peito,
vertigem no planeta rubro e em sua aurora.

Os cavalos: neles, golpeando o horizonte encoberto,
Vejo a terra imóvel sob nuvens
- pureza que já não é,
Mas sorrindo na treva, campina
onde os cavalos cairão.
Diviso (planeta rubro) a aurora clara
- centelha mínima da noite
na terra ainda paraíso.

Noturno - Fernando Py


No silêncio da noite vou formando
teu retrato, no silêncio da noite
modelando teus olhos, teus cabelos
entre os lençóis de sono que me envolvem.

Na meia claridade, maldesperto,
angustiado, insone, construindo
a arquitetura móvel de teus lábios
levanto-me, e estás sempre comigo.

Durante o dia e a qualquer momento
estamos lado a lado, vou compondo
a tua imagem (vento sombra nuvem),
lembrança amiga no trabalho duro.

E surges na agonia do crepúsculo
- e és a aurora inaugurando a noite.

Ulisses - Fernando Py


Estou sempre voltando para casa.
Cada ideia vivida, cada gesto
é uma viagem que faço de regresso.
Dentro em mim há distâncias suficientes
para ausências enormes, nos caminhos
que percorro sem me sentir eu mesmo.
Retorno agora, ontem, aqui, assim,
de modo singular, desprevenido.
A tal ponto me ausento regressando
que sou como Ulisses navegando
pelas águas febris de um mar sem nome.
Talvez um dia eu volte para sempre
e as distâncias talvez desapareçam.
Então meu pensamento estará morto.

Duplo - Fernando Py


Olho-me adentro sem cessar e no silêncio
e na penumbra de mim mesmo não me exprimo
nesse mim que se esconde e se retrai no vago
espaço de urna célula e vai construindo
outro mim de mim, disposto em gêmeos compassos,
e não aparece ao olho, ao espelho, à imagem
casualmente em máscara, fechado à curio-
sidade de meus olhos lacerados, cegos
de tanta luz enganosa, nem se derrama
sobre a superfície polida e indiferente,
enquanto cresce em mim a presença de estranho
ser não eu, de irrevelada e própria pessoa,
que domina esse meu corpo, casca de angústia
e contradições simétricas envolventes,
e me explora e me assimila; mas sou eu só
a me percorrer e nele me vejo e sinto,
como de dois corpos iguais matéria viva,
e me faço e refaço e me desfaço sempre
e recomeço e junto a mim eu mesmo, gêmeo,
nada acabo e tudo abandono, dividido
entre mim e mim na batalha interminável...

O verbo - Fernando Py


o verbo
preexiste
às areias do tempo

o verbo
perfaz o mundo
em seus números

o verbo
no espaço da frase
conjuga
seu traço múltiplo

o verbo
molda-se em carne
no disfarce
da palavra

o verbo
se apessoa
aos enxertos
da voz

o verbo
mal se conquista
- a doma é acerba

o verbo
se averba


Considerações sobre o tempo - Fernando Py



Existe o tempo em nós
ou nós é que o marcamos
para captar-lhe a foz
insensível às horas
e ao vento que nos ramos
se espalha e do invisível
extrai sua ração
de fome, de acendalha,
enquanto o corpo vai
durando e se acabando
e a morte em nós ou fora
agindo como câncer
desfaz toda a certeza
de amor e na falaz
carícia do momento
ao sol, à ventania,
deságua como chuva
nessa angústia sem termo
da lassidão do tempo
sem dono e sem crepúsculo,
sem regra, imagem, música.

Crepuscular - Fernando Py

O vento frio
de beira-mar
me envolve qual
diáfano abraço
e no arrepio
sinto meu corpo
todo encolher-se
aos grãos de sal
de úmido gosto
e já se esvai
de mim o dentro
e os lábios sinto
secos ao ar
e me estremeço
à aura marinha
e me reduzo
à só matéria
e denso desço
à noite em mim
enrodilhado
na areia inerte
e já me aqueço
volvido ao centro
branco do Nada.


Sorria - Fernando Py

Sorria.
Você está sendo roubado
todo santo dia.

Não chore.
Haverá sempre alguém
que o explore.

A vida causa transtornos?
Não se importe.
Você desliza suavemente
Para a morte.
 

Nevoeiro - Fernando Py

O verso agoniza
na folha.
Luz verdevermelha
continuamente.
A noite apodrece
em música.
Todos na sala
esperam.
A aurora há de vir.
Sem consolo.
Onde se (des) faz o amor
antigo?
Tudo foge. tudo é
deserto.

Sextina 2 - Fernando Py

A vida me anoitece
de sofrê-la no açoite
e vivê-la vazio
da beleza que a tece
— mudo me faço e noite
cego surdo e sombrio.

O futuro é sombrio
quando a alma anoitece
e me engolfo na noite
e me entrego ao açoite
— voltas que a vida tece
nesse abismo vazio.

De coração vazio
escondo-me em sombrio
casulo que me tece
a vida que anoitece
a alma ao pleno açoite
que me oferece a noite.

Faço-me a própria noite
e em minh'alma o vazio
silêncio lembra o açoite
latejante sombrio
da idade que anoitece
— fiação que me tece.

Pois tudo que me tece
lembra a pedra da noite
no peito que anoitece
— a alma sente o vazio
desse peso sombrio
à maneira de açoite.

Claro nítido açoite
é o que a vida me tece
extraindo o sombrio
refugo dessa noite
— deixa na alma o vazio
do corpo que anoitece.

Este açoite anoitece
e me tece vazio
no sombrio da noite.

Indagações - Fernando Py

De argila e de sangue
somos feitos. Não mais
que a imponderável ânsia
de ascender ao divino
transportando conosco
este fardo humano
de organismo imperfeito.

De suor e de lágrimas
nos tornamos. Quanto
esperamos saber
em nossa ignorância
no intuito de voar
à excelsa plenitude
do espírito supremo?

Quem nos formou? Quem
imaginou e fez
energia e matéria,
todo o Universo
que vemos e sabemos
e os demais mundos todos
que jamais saberemos?

Deixamos o que sabemos
— e o mais que desconhecemos —
aos que depois a terra
habitarem: esses homens
futuros que ignoramos
e mal podemos pressentir
pelo que hoje apresentamos.

Aonde vamos? Aonde
repousará nossa alma
a contínua indagação
que nos eleva além
de simples animais?

Em que páramos finais
existe nossa redenção?

Fui eu - Fernando Py

Fui eu esse menino que me espia
- melancólico olhar, sereno rosto,
postura fixa e o todo bem composto -
no retrato que o tempo desafia.

Fui eu na minha infância fugidia
de prazeres ingênuos, e o desgosto
de sentir tão efêmera a alegria
bem depressa trocada em seu oposto.

Fui eu, sim; mas o tempo que perpassa
e tudo altera nem sequer deixou
um grão de infância feito esmola escassa.

Fui eu: e na figura só ficou
o olhar desenganado, na fumaça
em que a criança inteira se mudou.