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Canção breve - Eugénio de Andrade


Tudo me prende à terra onde me dei:
o rio subitamente adolescente,
a luz tropeçando nas esquinas,
as areias onde ardi impaciente.

Tudo me prende do mesmo triste amor
que há em saber que a vida pouco dura,
e nela ponho a esperança e o calor
de uns dedos com restos de ternura.

Dizem que há outros céus e outras luas
e outros olhos densos de alegria,
mas eu sou destas casas, destas ruas,
deste amor a escorrer melancolia. 


Onde me levas, rio que cantei - Eugénio de Andrade


Onde me levas, rio que cantei,
esperança destes olhos que molhei
de pura solidão e desencanto?
Onde me leva?, que me custa tanto.

Não quero que conduzas ao silêncio
duma noite maior e mais completa.
com anjos tristes a medir os gestos
da hora mais contrária e mais secreta.

Deixa-me na terra de sabor amargo
como o coração dos frutos bravos.
pátria minha de fundos desenganos,
mas com sonhos, com prantos, com espasmos.

Canção, vai para além de quanto escrevo
e rasga esta sombra que me cerca.
Há outra fase na vida transbordante:
que seja nessa face que me perca.



Pequena elegia de Setembro - Eugénio de Andrade

Não sei como vieste,
mas deve haver um caminho
para regressar da morte.

Estás sentada no jardim,
as mãos no regaço cheias de doçura,
os olhos pousados nas últimas rosas
dos grandes e calmos dias de setembro.

Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?

Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.

Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?

Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim.



Casa na Chuva - Eugénio de Andrade


A chuva, outra vez sobre as oliveiras.
Não sei por que voltou esta tarde
Se minha mãe já se foi embora,
Já não vem à varanda para a ver cair,
Já não levanta os olhos da costura
Para perguntar: Ouves?
Oiço, mãe, é outra vez a chuva,
A chuva sobre o teu rosto.



Os Amigos - Eugénio de Andrade


Os amigos amei
despido de ternura
fatigada;
uns iam, outros vinham,
a nenhum perguntava
porque partia,
porque ficava;
era pouco o que tinha,
pouco o que dava,
mas também só queria
partilhar
a sede de alegria —
por mais amarga.


Os amantes sem dinheiro - Eugénio de Andrade


Tinham o rosto aberto a quem passava.
Tinham lendas e mitos
e frio no coração.
Tinham jardins onde a lua passeava
de mãos dadas com  a água
e um anjo de pedra por irmão.

Tinham como toda a gente
o milagre de cada dia
escorrendo pelos telhados;
e olhos de oiro
onde ardiam
os sonhos mais tresmalhados.

Tinham fome e sede como os bichos,
e silêncio
à roda dos seus passos.
Mas a cada gesto que faziam
um pássaro nascia dos seus dedos
e deslumbrado penetrava nos espaços.


             

Rumores - Eugénio de Andrade


Acorda-me
um rumor de ave.
Talvez seja a tarde
a querer voar

A levantar do chão
qualquer coisa que vive,
e é como um perdão
que não tive.

Talvez nada.
Ou só um olhar
que na tarde fechada
é ave.

Mas não pode voar.


Na varanda de Florbela - Eugénio de Andrade

Aqui cantaste nua.
Aqui bebeste a planície, a lua,
e ao vento deste os olhos a beber.
Aqui abandonaste as mãos
a tudo o que não chega a acontecer.

Aqui vieram bailar as estações
e com elas tu bailaste.
Aqui mordeste os seios por abrir,
fechaste o corpo à sede das searas
e no lume de ti própria te queimaste.



Lágrima - Eugénio de Andrade

Dos olhos me cais,
redonda formosura.
Quase fruto ou lua,
cais desamparada.
Regressas à água
mais pura do dia,
obscuro alimento
de altas açucenas.
Breve arquitectura
da melancolia.
Lágrima, apenas.


Até amanhã - Eugénio de Andrade

Sei agora como nasceu a alegria,
como nasce o vento entre barcos de papel,
como nasce a água ou o amor
quando a juventude não é uma lágrima.

É primeiro só um rumor de espuma
à roda do corpo que desperta,
sílaba espessa, beijo acumulado,
amanhecer de pássaros no sangue.

É subitamente um grito,
um grito apertado nos dentes,
galope de cavalos num horizonte
onde o mar é diurno e sem palavras.

Falei de tudo quanto amei.
De coisas que te dou para que tu as ames comigo:
a juventude, o vento e as areias. 


Se deste outono - Eugénio de Andrade

Se deste OUTONO uma folha,
apenas uma, se desprendesse
da sua cabeleira ruiva,
sonolenta,
e sobre ela a mão
com o azul do ar escrevesse
um nome, somente um nome,
seria o mais aéreo
de quantos tem a terra,
a terra quente e tão avara
de alegria.

Havia uma palavra - Eugênio de Andrade


Havia uma palavra
no escuro.
Minúscula. Ignorada.
Martelava no escuro.
Martelava
no chão da água.
Do fundo do tempo,
martelava.
contra o muro.
Uma palavra.
No escuro.
Que me chamava.


Folhas Breves - Eugénio de Andrade


Somos folhas breves onde dormem
aves de sombra e solidão.
Somos só folhas e o seu rumor.
Inseguros, incapazes de ser flor,
até a brisa nos perturba e faz tremer.
Por isso a cada gesto que fazemos
cada ave se transforma noutro ser.


É urgente o amor - Eugénio de Andrade


É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.


O silêncio - Eugénio de Andrade

Quando a ternura
parece já do seu ofício fatigada,
e o sono, a mais incerta barca,
inda demora,
quando azuis irrompem
os teus olhos
e procuram
nos meus navegação segura,
é que eu te falo das palavras
desamparadas e desertas,
pelo silêncio fascinadas.


A música - Eugénio de Andrade



Álamos.

Essa música
de matutina cal.

Doces vogais
de sombra e água
num verão de fulvos
lentos animais.

Calhandra matinal
na areia
branca de junho.

Acidulada música
de cardos
e navalhas.

Música do fogo
em redor dos lábios.

Desatada
à roda da cintura.

Entre as pernas
junta.

Música
das primeiras chuvas
sobre o feno.

Só aroma,
abelha de água.

Repouso e regaço
onde o lume breve
duma romã brilha.

Música, levai-me:

Onde estão as barcas?
Onde são as ilhas?

Faz de conta - Eugénio de Andrade

- Faz de conta que sou abelha.
- Eu serei a flor mais bela.

- Faz de conta que sou cardo.
- Eu serei somente orvalho.

- Faz de conta que sou potro.
- Eu serei sombra em agosto.

- Faz de conta que sou choupo.
- Eu serei pássaro louco, pássaro voando
e voando sobre ti vezes sem conta.

- Faz de conta, faz de conta.

Quase nada - Eugénio de Andrade



O amor
é uma ave a tremer
nas mãos de uma criança.
Serve-se de palavras
por ignorar
que as manhãs mais limpas
não têm voz.