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Nossa sabedoria é a dos rios - Carlos Nejar

Nossa sabedoria é a dos rios.
Não temos outra.
Persistir. Ir com os rios,
onda a onda.

Os peixes cruzarão nossos rostos vazios.
Intactos passaremos sob a correnteza
feita por nós e o nosso desespero.
Passaremos límpidos.

E nos moveremos,
rio dentro do rio,
corpo dentro do corpo,
como antigos veleiros.


Contra a esperança - Carlos Nejar


É preciso esperar contra a esperança.
Esperar, amar, criar
contra a esperança
e depois desesperar a esperança
mas esperar,
enquanto um fio de água, um remo,
peixes
existem e sobrevivem
no meio dos litígios;
enquanto bater a máquina de coser
e o dia dali sair
como um colete novo.

É preciso esperar
por um pouco de vento,
um toque de manhãs.
E não se espera muito.
Só um curto-circuito
na lembrança. Os cabelos,
ninhos de andorinhas
e chuvas. A esperança,
cachorro
a correr sobre o campo
e uma pequena lebre
que a noite em vão esconde.

O universo é um telhado
com sua calha tão baixo
e as estrelas, enxame
de abelhas na ponta.

É preciso esperar contra a esperança
e ser a mão pousada
no leme de sua lança.

E o peito da esperança
é não chegar;
seu rosto é sempre mais.
É preciso desesperar
a esperança
como um balde no mar.

Um balde a mais
na esperança.

Um balde a mais
contra a esperança

e sobre nós.


O homem sempre é mais forte - Carlos Nejar


O vento faz seu caminho
onde o sol desemboca o mar,
onde a terra tarja o vinho,
onde a noite é seu lagar.

O vento faz seu caminho
onde os mortos vão deitar
e a noite move moinho,
move outra noite no mar.

 O vento faz seu caminho
e pássaros vão pousar
na floração dos moinhos
que amadurecem o mar.

 O vento faz seu caminho
onde há sede de plantar,
onde a semente é destino
que um sulco não pode dar.
  
  

O homem sempre é mais forte
se a outro homem se aliar;
o arado faz caminho
no seu tempo de cavar.

 No mesmo mar que nos leva,
o vento nos quer buscar;
o que é da terra é do homem,
onde o arado vai brotar.
  
Por mais que a morte desfaça,
há um homem sempre a lutar;
o vento faz seu caminho
por dentro, no seu pomar.

Antielegia Etérea - Carlos Nejar


Na medida em que caem
os frutos, caem os homens,
caem as folhas, o sol cai
para o alto com as estrelas.
E eu, como um tronco
envelhecendo, vou ficando
oco por dentro e começo
a ser ocupado pelos passarinhos.
Começo a ser passarinho
no tronco. Até que o musgo
no céu me torne eterno.


Poema da devastação - Carlos Nejar

Há uma devastação
nas coisas e nos seres,
como se algum vulcão
abrisse as sobrancelhas
e ali, sobre esse chão,
pousassem as inteiras
angústias, solidões,
passados desesperos
e toda a condição
de homem sem soleira,
ventura tão curta,
punição extrema.

Há uma devastação
nas águas e nos seres;
os peixes, com seus viços,
revolvem-se no umbigo
deste vulcão de escamas.

Há uma devastação
nas plantas e nos seres;
o homem recurvado
com a pálpebra nos joelhos.
As lavas soprarão,
enquanto nós vivermos.



Purificação - Carlos Nejar



Coarar as emoções,
junto às camisas e lenços,
secando tudo isto,
para os poder usar
no serviço.

Coarar as emoções
febris e as elevadas
na grama ou laje de viver,
no quintal,
lavando estas peças
do bem e do mal,
amontoando-as
na bacia, ao fundo.

Talvez o sol.
Antes que tal suceda,
que as paixões sequem
e o medo e os pressentimentos
vindos, amiúde,
no tecido que fomos e somos,
as Parcas entrarão
para dentro do inverno
e nós esperaremos,
a depender do tempo,
do barro, dos elementos,
a depender de fios, atavios,
céu, inferno,
a depender da sorte
que nos recolhe
ao balde.

A alma! Que ferro de engomar
a desenrugue dos erros
e ela se limpe, ao menos!

Que o ferro alise
suas ênfases, tropeços.
E trace as imagens
nas emoções mais velhas,
nas que foram pisadas.
Esquecê-las!

O ferro de passar
no mundo inapreendido.
Depois,
coser botões caídos
ou quem sabe,
coser os símbolos
e a jubilação do dia.

Que a alma, ao menos,
saia sem vincos!



Ciclo - Carlos Nejar

O mundo recomeça
no quintal do ombro,
no convênio do ombro,
no pampa do ombro,
na janela do ombro,
nas cancelas do ombro,
na porteira do ombro,
nos jorros do ombro,

na ombridade do ombro.


De como a terra e o homem se unem - Carlos Nejar

Fica a terra, passa o arado,
mas o homem se desgasta;
sangra o campo, pasce o gado,
brota o vento de outro lado
e a semente também brota.
Fica a terra, passa o arado
e o trabalho é o que nos passa,
como nome, como herança;
fica a terra, a noite passa. 

A semente nos consome,
mas a terra se desgasta.

Que será do novo homem
sobre a terra que vergasta?
Sangra a terra, pasce o gado
e o trabalho é o que nos passa.

Vem o sol e cava a terra;
a semente é como espada.
Há uma noite que nos gera
quando a noite é dissipada.

Vem a noite e cava a terra;
vem a noite, é madrugada.

O homem se desgasta,
sopro misturado
ao sopro rijo do arado.
Vai cavando.

Madrugada sai da terra,
como um corpo se entreabre
para o orvalho e para o trigo.

O homem vai cavando,
vai cavando a madrugada.

Redondel - Carlos Nejar

O coração se acrescenta
ao coração se acrescenta
a outro e senta sob a árvore
- tudo tão nuvem entre
um coração e outro -
redondos os sins, os vãos,
a noite na concha
do coração, o pampa
e os corações sentados
e um coração voando.

Mudando, tudo é possível
recomeçar.

Metafísica - Carlos Nejar

Não busco a hierarquia
entre a terra e o húmus:
prefiro a transcendência
do vento,
cumprindo-se apenas,
sem dividendos
no pensamento.

Para mim
floresce
a teoria de viver.
Os momentos são inteiros
na casa dos arreios.

O tempo, Deus, a alma
couberam
nos meus cadernos de escola.
Cresci
e Deus se transformou
na religião de estar aqui,
na relação
há muito consentida
de andar rente ao chão
junto às árvores, o ar,
sem alvará
para morar na vida.

Canção 56 - Carlos Nejar

Não tiro de minhas retinas,
todos os povos vencidos.
Não tiro nenhuma lágrima,
nenhuma dor, nenhum símbolo.
Toda a fadiga dos mitos
se cristaliza no medo.
Não, não tiro das retinas
o meu povo tão calado.
Nem tiro sequer das gotas
destas pálpebras, o peso.

A Idade - Carlos Nejar

Falou e disse um pássaro,
dois sóis, uma pequena estrela.
Falou para que calássemos
e disse amor, penúria, brevidade.
E disse disse disse
a idade da eternidade.

Biografia - Carlos Nejar


Não tive biografia
mas metáforas.
Manga na praça
foi a infância.

A alma dividida
de nascença.
Com ela o mundo
arfava em cada coisa.

O amor inchava
o sol de maresia.
Inchava na palavra
e as velas iam.

Vivi sofri - eis tudo
e o vivido
arrasta o barco
pelo mar que é findo.

Abandonei-me ao Vento - Carlos Nejar

Abandonei-me ao vento. Quem sou, pode
explicar-te o vento que me invade.
E já perdi o nome ao som da morte,
ganhei um outro livre, que me sabe

quando me levantar e o corpo solte
o meu despojo vão. Em toda parte
o vento há-de soprar, onde não cabe
a morte mais. A morte a morte explode.

E os seus fragmentos caem na viração
e o que ela foi na pedra se consome.
Abandonei-me ao vento como um grão.

Sem a opressão dos ganhos, utensílio,
abandonei-me. E assim fiquei conciso,
eterno. Mas o amor guardou meu nome.