Canto e Palavra - Affonso Romano de Sant’Anna



1. 

Todo homem é vário. 
Vário e múltiplo. Eu sou 
menos: sou um duplo 
e me contento com o que sou. 

Fosse meu nome legião, 
meu destino talvez fosse 
a fossa e o abismo onde 
a vara de porcos me emborcou. 

Não sou tantos, repito, 
sou um duplo 
e me contento com o que sou. 

2. 

Sou primeiro o canto 
e o que cantou 
e só depois – palavra 
e o que falou. 

Meu corpo testifica este conflito 
quando entre palavras e canto 
não se perde ou se dissipa, 
mas se afirma 
e me redime. 

O homem primeiro é o canto. 
só depois se organiza, 
se acrescenta 
se articula, 
se clareia de palavras 
e dissipa o que são brumas. 

Se o canto é o eu fluindo, 
a palavra é o eu pensado. 
na palavra eu sempre guio, 
mas no canto eu sou guiado. 

O canto é o que atinjo 
(ocultamente) sem me oferecer, 
e quando, de repente, 
eu me descubro 
– sem querer. 

A palavra, ao contrário, 
é o ato claro, 
o talho e o atalho 
– no objeto, 

embora seja como o corpo 
um ser concreto 
e como o mito 
– um ser incerto. 

3. 

Quereis saber 
como eu faço 
ou de mim como eu quero? 
É fácil: 
Cultivo em mim os meus contrários 
e a síntese dos termos cultivo, 
sabendo que o canto é quando 
e a palavra é onde , 
e que ela o ultrapassa 
mais que o complementa . 
E certo que o homem 
embora sinta e pense, 
cante e fale 
seus conflitos nunca vence, 
é que eu tranqüilo me exponho, 
em fala me traduzo, 
em canto me componho: 
pois um homem somente se organiza 
e completo se apresenta 
quando com seus contrários se acrescenta. 

4. 

Difícil é demarcar 
o limite, o dia, o instante 
em que o homem 
de seu canto se destaca. 
O limite, o dia, o instante 
em que o homem se desfaz 
da imponderável música-novelo-e-ovo 
e configura-se no gesso, 
e do que era um homem-canto 
emerge um homem-texto. 

Difícil é dizer como e onde, 
não o porque, 
um dia a gente se observa, 
Se admira, 
Mais que isto: 
um dia o ser do homem todo denuncia: 
já não se flui 
como fluía, 
nem se esvai 
como esvaía, 
e do organismo informe e vago 
emerge a vida organizada. 

Nada se perdeu 
nem jamais se perderia 
neste homem que de novo se formou. 
Algo duro nele se passa 
e em seu trajeto se passou, 
quando indo do canto à palavra 
a si mesmo ultrapassou. 



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