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Aquela madrugada - Manoel de Barros

Aquela madrugada
vinham cheiros em minha boca.
De longe
de todos os matos
vinham cheiros de frutas
que ela vinha.
Vinha o que de noite
os pássaros estavam dormindo
o que os regos
estavam murmurando
e o que as árvores
falam pros joão-pintos...
Vinham também
esses começos de coisas
indistintas:
o que a gente esperou dos sonhos
os cheiros do capim
e o berro dos bezerros
sujos a escamas cruas...

Os caramujos - Manoel de Barros

Há um comportamento de eternidade nos caramujos.
Para subir os barrancos de um rio, eles percorrem um
dia inteiro até chegar amanhã.
O próprio anoitecer faz parte de haver beleza nos
caramujos.
Eles carregam com paciência o início do mundo.
No geral os caramujos têm uma voz desconformada
por dentro.
Talvez porque tenham a boca trôpega.
Suas verdades podem não ser.
Desde quando a infância nos praticava na beira do rio
Nunca mais deixei de saber que esses pequenos
moluscos
Ajudam as árvores a crescer.
E achei que esta história só caberia no impossível.
Mas não; ela cabe aqui também.

Tributo a A J. G. ROSA - Manoel de Barros

Passarinho parou de cantar.
Essa é apenas uma informação.
Passarinho desapareceu de cantar.
Esse é um verso de J. G. Rosa.
Desapareceu de cantar é uma graça verbal.
Poesia é uma graça verbal.

Gorjeios - Manoel de Barros

Gorjeio é mais bonito do que canto porque nele se
inclui a sedução.
É quando a pássara está namorada que ela gorjeia.
Ela se enfeita e bota novos meneios na voz.
Seria como perfumar-se a moça para ver o namorado.
É por isso que as árvores ficam loucas se estão gorjeadas.
É por isso que as árvores deliram.
Sob o efeito da sedução da pássara as árvores deliram.
E se orgulham de terem sido escolhidas para o concerto.
As flores dessas árvores depois nascerão mais perfumadas.

O lápis - Manoel de Barros

É por demais de grande a natureza de Deus.
Eu queria fazer para mim uma naturezinha
particular.
Tão pequena que coubesse na ponta do meu
lápis.
Fosse ela, quem me dera, só do tamanho do
meu quintal.
No quintal ia nascer um pé de tamarino apenas
para uso dos passarinhos.
E que as manhãs elaborassem outras aves para
compor o azul do céu.
E se não fosse pedir demais eu queria que no
fundo corresse um rio.
Na verdade na verdade a coisa mais importante
que eu desejava era o rio.
No rio eu e a nossa turma, a gente iria todo
dia jogar cangapé nas águas correntes.
Essa, eu penso, é que seria a minha naturezinha
particular:
Até onde o meu pequeno lápis poderia alcançar.

Peraltagem - Manoel de Barros

O canto distante da sariema encompridava a tarde.
E porque a tarde ficasse mais comprida a gente sumia dentro dela.
E quando o grito da mãe nos alcançava
a gente já estava do outro lado do rio.
O pai nos chamou pelo berrante.

Na volta fomos encostando pelas paredes da casa pé ante pé.
Com receio de um carão do pai.
Logo a tosse do avô acordou o silêncio da casa.
Mas não apanhamos nem.
E nem levamos carão nem.
A mãe só falou que eu iria viver leso fazendo só essas coisas.
O pai completou: ele precisava ver outras coisas
além de ficar ouvindo só o canto dos pássaros.
E a mãe disse mais: esse menino vai passar a vida
enfiando água no espeto!
Foi quase.

Manoel de Barros

Ontem passou por aqui um meu ancestral, que
solfejava Bach:
“Fique conosco, Senhor, que a noite chega.”
Ele cantava assim nas estradas mais sujas.
E aquelas borboletas sobre uns ramos de
tomilho cantavam com ele.

Poema - Manoel de barros


A poesia está guardada nas palavras
- é tudo o que eu sei.
Meu fado é de não entender quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não cultivo conexões com o real.
Para mim poderoso não é aquele
que descobre ouro.
Poderoso para mim é aquele que
descobre as insignificâncias: do mundo e as nossas.
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado e chorei.
Sou fraco para elogios.

Manoel de Barros

A lua faz silêncio para os pássaros,
- eu escuto esse escândalo!
Um perfume vermelho me pensou.
(Eu contamino a luz do anoitecer?)
Esses vazios me restritam mais.
Alguns pedaços de mim já são desterro.
......................................
(É a sensatez que aumenta os absurdos?)
De noite bebo água de merenda.
Me mantimento de ventos.
Descomo sem opulências. . .
Desculpe a delicadeza.

Manoel de Barros

Bernardo é quase árvore.
Silêncio dele é tão alto que os passarinhos
ouvem de longe
E vêm pousar em seu ombro.
Seu olho renova as tardes.
Guarda num velho baú seus instrumentos de trabalho
1 abridor de amanhecer
1 prego que farfalha
1 encolhedor de rios - e
1 esticador de horizontes.
(Bernardo consegue esticar o horizonte usando 3
fios de teias de aranha. A coisa fica bem esticada.)
Bernardo desregula a natureza:
Seu olho aumenta o poente.
(Pode um homem enriquecer a natureza com a sua
incompletude?).

O Olhar - Manoel de Barros

Ele era um andarilho.
Ele tinha um olhar cheio de sol
de águas
de árvores
de aves.
Ao passar pela Aldeia
Ele sempre me pareceu a liberdade em trapos.
O silêncio honrava a sua vida.

O livro sobre nada - Manoel de Barros


Com pedaços de mim eu monto um ser atônito.
Tudo que não invento é falso.
Há muitas maneiras sérias de não dizer nada,
mas só a poesia é verdadeira.
Não pode haver ausência de boca nas palavras:
nenhuma fique desamparada do ser que a revelou.
É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez.
Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada;
mas se não desejo contar nada, faço poesia.
Melhor jeito que achei para me conhecer foi fazendo o contrário.
A inércia é o meu ato principal.
Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas.
O artista é um erro da natureza. Beethoven foi um erro perfeito.
A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto
que ela expresse nossos mais fundos desejos.
Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos.
Por pudor sou impuro.
Não preciso do fim para chegar.
De tudo haveria de ficar para nós um sentimento longínquo
de coisa esquecida na terra — Como um lápis numa península.
Do lugar onde estou já fui embora.

ÁRVORE - Manoel de Barros

Um passarinho pediu a meu irmão para ser sua árvore.
Meu irmão aceitou de ser a árvore daquele passarinho.
No estágio de ser essa árvore,
meu irmão aprendeu de sol,
de céu e de lua mais do que na escola.
No estágio de ser árvore meu irmão aprendeu para santo
mais do que os padres lhes ensinavam no internato.
Aprendeu com a natureza o perfume de Deus
Seu olho no estágio de ser árvore
aprendeu melhor o azul
E descobriu que uma casa vazia de cigarra esquecida
no tronco das árvores só serve pra poesia.
No estágio de ser árvore
meu irmão descobriu que as árvores são vaidosas.
Que justamente aquela árvore na qual meu irmão se transformara,
envaidecia-se quando era nomeada para o entardecer dos pássaros
e tinha ciúmes da brancura que os lírios deixavam nos brejos.
Meu irmão agradecia a Deus aquela permanência em árvore
porque fez amizade com muitas borboletas.

SONATA AO LUAR - Manoel de Barros


Sombra boa não tinha e-mail.
Escreveu um bilhete:
Maria me espera debaixo do ingazeiro
quando a lua tiver arta.
Amarrou o bilhete no pescoço do cachorro
e atiçou:
Vai, Ramela, passa!
Ramela alcançou a cozinha num átimo.
Maria leu e sorriu.
Quando a lua ficou arta Maria estava.
E o amor se fez
Sob um luar sem defeito de abril.

Deus disse - Manoel de Barros


Deus disse: Vou ajeitar a você um dom:
Vou pertencer você para uma árvore.
E pertenceu-me.
Escuto o perfume dos rios.
Sei que a voz das águas tem sotaque azul.
Sei botar cílio nos silêncios.
Para encontrar o azul eu uso pássaros.
Só não desejo cair em sensatez.
Não quero a boa razão das coisas.
Quero o feitiço das palavras.

A Poesia - Manoel de Barros


A poesia está guardada nas palavras - é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não entender quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não cultivo conexões com o real.
Para mim, poderoso não é aquele que descobre ouro,
Poderoso para mim é aquele que descobre
as insignificâncias: (do mundo e nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei muito emocionado e chorei.
Sou fraco para elogios.

Manoel de Barros

Queria transformar o vento.
Dar ao vento uma forma concreta e apta a foto.
Eu precisava pelo menos de enxergar uma parte física
do vento: uma costela, o olho...
Mas a forma do vento me fugia que nem as formas
de uma voz.
Quando se disse que o vento empurrava a canoa do
índio para o barranco
Imaginei um vento pintado de urucum a empurrar a
canoa do índio para o barranco.
Mas essa imagem me pareceu imprecisa ainda.
Estava quase a desistir quando me lembrei do menino
montado no cavalo do vento - que lera em
Shakespeare.
Imaginei as crinas soltas do vento a disparar pelos
prados com o menino.
Fotografei aquele vento de crinas soltas.

O Menino que Carregava Água na Peneira - Manoel de Barros

Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.

A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e sair
correndo com ele para mostrar aos irmãos.

A mãe disse que era o mesmo que
catar espinhos na água
O mesmo que criar peixes no bolso.

O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.

A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio
do que do cheio.
Falava que os vazios são maiores
e até infinitos.

Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito
porque gostava de carregar água na peneira

Com o tempo descobriu que escrever seria
o mesmo que carregar água na peneira.

No escrever o menino viu
que era capaz de ser
noviça, monge ou mendigo
ao mesmo tempo.

O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.

Foi capaz de interromper o voo de um pássaro
botando ponto final na frase.

Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.

O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor!
A mãe reparava o menino com ternura.

A mãe falou:
Meu filho você vai ser poeta.

Você vai carregar água na peneira a vida toda.

Você vai encher os
vazios com as suas
peraltagens
e algumas pessoas
vão te amar por seus
despropósitos.

O Apanhador de Desperdícios - Manoel de Barros


Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água, pedra, sapo.

Entendo bem o sotaque das águas.
Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim esse atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.

Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos,
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.