Instante - Carlos Drummond de Andrade

Uma semente engravidava a tarde.
Era o dia nascendo, em vez da noite.
Perdia amor seu hálito covarde,
e a vida, corcel rubro, dava um coice,

mas tão delicioso, que a ferida
no peito transtornado, aceso em festa,
acordava, gravura enlouquecida,
sobre o tempo sem caule, uma promessa.

A manhã sempre-sempre, e dociastutos
eus caçadores a correr, e as presas
num feliz entregar-se, entre soluços.

E o que mais, vida eterna, me planejas ?
O que se desatou num só momento
não cabe no infinito, e é fuga e vento.

O bom pastor - Vinícius de Moraes

Amo andar pelas tardes sem som, brandas, maravilhosas
Com riscos de andorinhas pelo céu.
Amo ir solitário pelos caminhos
Olhando a tarde parada no tempo
Parada no céu como um pássaro em vôo
E que vem de asas largas se abatendo.
Amo desvendar a vaga penumbra que desce
Amo sentir o ar sem movimento, a luz sem vida
Tudo interiorizado, tudo paralisado na oração calma...

Amo andar nessas tardes...
Sinto-me penetrando o sereno vazio de tudo
Como um raio de luz.
Cresço, projeto-me ao infinito, agitando
Para consolar as árvores angustiadas
E acalmar os pinheiros moribundos.
Desço aos vales como uma sombra de montanha
Buscando poesia nos rios parados.
Sou como o bom-pastor da natureza
Que recolhe a alma do seu rebanho
No agasalho da sua alma...

E amo voltar
Quando tudo não é mais que uma saudade
Do momento suspenso que foi...
Amo voltar quando a noite palpita
Nas primeiras estrelas claras...
Amo vir com a aragem que começa a descer das montanhas
Trazendo cheiros agrestes de selva...
E pelos caminhos já percorridos, voltando com a noite
Amo sonhar...

O Rei do Mar - Cecília Meireles

Muitas velas. Muitos remos.
Âncora é outro falar...
Tempo que navegaremos
não se pode calcular:
Vimos as Plêiades.Vemos
agora a Estrela Polar.
Muitas velas.Muitos remos.
Curta Vida. Longo mar.


Por água brava ou serena
deixamos nosso cantar,
vendo a voz como é pequena
sobre o comprimento do ar.
Se alguém ouvir, temos pena:
só contamos para o mar...

Nem tormenta nem tormento
nos poderia parar.
[Muitas velas.Muitos remos.
Âncora é outro falar...]
Andamos entre água e vento
procurando o Rei do Mar.

Avesso - Roseana Murray


Atravessaria um rio grosso
no meio da noite
para decifrar tuas pegadas,
o rastro luminoso dos teus olhos.

Atravessaria a superfície
silenciosa dos espelhos
para ver o teu avesso.

Caminharia sobre água
e fogo
para soletrar teu corpo.

A casa do tempo perdido - Carlos Drummond de Andrade

Bati no portão do tempo perdido, ninguém atendeu.
Bati segunda vez e mais outra e mais outra.
Resposta nenhuma.
A casa do tempo perdido está coberta de hera
pela metade; a outra metade são cinzas.
Casa onde não mora ninguém, e eu batendo e chamando
pela dor de chamar e não ser escutado.
Simplesmente bater. O eco devolve
minha ânsia de entreabrir esses paços gelados.
A noite e o dia se confundem no esperar,
no bater e bater.

O tempo perdido certamente não existe.
É o casarão vazio e condenado.

Al perderte... - Ernesto Cardenal


Al perderte yo a ti,
tu y yo hemos perdido:
yo por que tu eres
lo que yo más amaba
y tú porque yo era
el que te amaba más.

Pero de nosotros dos,
tú pierdes más que yo:
porque yo podré amar a otras,
como te amaba a ti,
pero a ti no te amarám
como te amaba yo.


Tu e eu, ao perdermos
um ao outro,
ambos perdemos.
Eu, porque tu eras o que
eu mais amava,
tu, porque eu era quem
te amava mais.

Mas, entre nós dois,
tu perdes mais do que eu.
Porque eu poderei amar
a outras
como amei a ti.
Mas a ti nunca ninguém
jamais amará
como eu te amei.

Resposta - Fiama Hassa P. Brandão

Eu vinha para a vida, e deram-me dias
vivos com os seus lugares e espaço.

Ontem nasci sem fim, e alimentei-me
nesta mesa que em duas se reparte.
Uma aba no mar, vagante à toa,
trouxe os sabores de ondas, de orlas.
Outra aba na terra mostrou-me as pedras
polidas, úberes, gastas. Pedras
densas que me encheram o ventre
e me criaram similar à Terra.
No mar tive cristais quebrados, jóias;
na terra, tão nítida poeira branca
que fundi as formas das flores visíveis.

E hoje é este olhar profundo,
deriva das imagens pelo mundo.

Viração - Mário Quintana

Voa um par de andorinhas, fazendo verão.
E vem uma vontade de rasgar velhas cartas,
velhos poemas, velhas contas recebidas.
Vontade de mudar de camisa,
por fora e por dentro... vontade...
Para quê esse pudor de certas palavras?...
Vontade de amar, simplesmente.

Os dias felizes - Cecília Meireles

Os dias felizes estão entre as árvores,
como os pássaros:
viajam nas nuvens,
correm nas águas,
desmancham-se na areia.

Todas as palavras são inúteis,
desde que se olha para o céu.

A doçura maior da vida
flui na luz do sol,
quando se está em silêncio.

Até os urubus são belos,
no largo círculo dos dias sossegados.

Apenas entristece um pouco
este ovo azul que as crianças apedrejaram:

formigas ávidas devoram
a albumina do pássaro frustrado.

Caminhávamos devagar,
ao longo desses dias felizes,
pensando que a Inteligência
era uma sombra da Beleza.

Mãos feridas na porta dum silêncio - Natália Correia


Vida que às costas me levas
porque não dás um corpo às tuas trevas?

Porque não dás um som àquela voz
que quer rasgar o teu silêncio em nós?

Porque não dás à pálpebra que pede
aquele olhar que em ti se perde?

Porque não dás vestidos à nudez
que só tu vês?

Alice Ruiz

olhar o mesmo olho
com outros olhos

em outro olhar
o mesmo olho

nos mesmos olhos
o olhar do outro
de olho.

Yanni - One Man´s Dream

Humildade - Cecília Meireles

Tanto que fazer!
Livros que não se lêem, cartas que não se escrevem,
línguas que não se aprendem,
amor que não se dá,
tudo quanto se esquece.

Amigos entre adeuses,
crianças chorando na tempestade,
cidadãos assinando papéis, papéis, papéis...
até o fim do mundo assinando papéis.

E os pássaros detrás de grades de chuvas,
e os mortos em redoma de cânfora.

( E uma canção tão bela ! )

Tanto que fazer !
E nunca soubemos quem éramos
nem para quê.

O mar é longe, mas somos nós o vento - Pedro Tamen

O mar é longe, mas somos nós o vento;
e a lembrança que tira, até ser ele,
é doutro e mesmo, é ar da tua boca
onde o silêncio pasce e a noite aceita.
Donde estás, que névoa me perturba
mais que não ver os olhos da manhã
com que tu mesma a vês e te convém?
Cabelos, dedos, sal e a longa pele,
onde se escondem a tua vida os dá;
e é com mãos solenes, fugitivas,
que te recolho viva e me concedo
a hora em que as ondas se confundem
e nada é necessário ao pé do mar.

Manoel de Barros

A lua faz silêncio para os pássaros,
- eu escuto esse escândalo!
Um perfume vermelho me pensou.
(Eu contamino a luz do anoitecer?)
Esses vazios me restritam mais.
Alguns pedaços de mim já são desterro.
......................................
(É a sensatez que aumenta os absurdos?)
De noite bebo água de merenda.
Me mantimento de ventos.
Descomo sem opulências. . .
Desculpe a delicadeza.

Verdes reinos encantados - Cecília Meireles

Seremos ainda românticos
- e entraremos na densa mata,
em busca de flores de prata,
de aéreos, invisíveis cânticos.

Nas pedras, à sombra, sentados,
respiraremos a frescura
dos verdes reinos encantados
das lianas e da fonte pura.

E tão românticos seremos,
de tão magoado romantismo,
que as folhas dos galhos supremos
que se desprenderem no abismo

pousarão na nossa memória
- secas borboletas caídas -
e choraremos sua história,
resumo de todas as vidas.

Adriana Calcanhoto - Canção de novela

Apresentação - Cecília Meireles


Aqui está minha vida — esta areia tão clara
com desenhos de andar dedicados ao vento.

Aqui está minha voz — esta concha vazia,
sombra de som curtindo o seu próprio lamento.

Aqui está minha dor — este coral quebrado,
sobrevivendo ao seu patético momento.

Aqui está minha herança — este mar solitário,
que de um lado era amor e, do outro, esquecimento.

Espera - Roseana Murray

Pintura de Grace Patterson - A Espera

Ando na ponta dos pés
dentro de mim tudo dorme
um sono de areia

as palavras com que me untei
as casas suas paredes
de cal e esquecimento

dormem as pegadas
dos que me tocaram
com pensamentos e sinos

tudo dorme
um sono oblíquo
à espera de um poema.

Manoel de Barros

Bernardo é quase árvore.
Silêncio dele é tão alto que os passarinhos
ouvem de longe
E vêm pousar em seu ombro.
Seu olho renova as tardes.
Guarda num velho baú seus instrumentos de trabalho
1 abridor de amanhecer
1 prego que farfalha
1 encolhedor de rios - e
1 esticador de horizontes.
(Bernardo consegue esticar o horizonte usando 3
fios de teias de aranha. A coisa fica bem esticada.)
Bernardo desregula a natureza:
Seu olho aumenta o poente.
(Pode um homem enriquecer a natureza com a sua
incompletude?).