As águas - Lya Luft


Quando pensei que tinha chegado
era outra surpresa,
era mais uma curva no rio.

Quando calculei que tudo estava pago
havia ainda os juros
do tempo do esforço
do amor.

Quando achei que estava acabado
os caminhos se espalmaram
como dedos da mão
de um deus,
na torrente no vento
no sopro do universo.

Khalil Gibran


Quando os pássaros cantam,
estarão chamando as flores nos campos,
ou estão falando às árvores,
ou apenas fazem eco ao murmúrio dos riachos?

Pois o Homem, mesmo com seus conhecimentos,
não consegue saber o que canta o pássaro,
nem o que murmura o riacho,
nem o que sussurram as ondas
quando tocam as praias vagarosa e suavemente.

Mesmo com sua percepção,
o homem não pode entender o que diz a chuva
quando cai sobre as folhas das árvores,
ou quando bate lentamente nos vidros das janelas.
Ele não pode saber o que a brisa segreda às flores nos campos.

Sunrise - Ravi Shankar e Jean Pierre Rampal

Duas Flautas - Li Po

Uma noite em que eu respirava o perfume das flores
à beira do rio,
o vento trouxe-me a canção de uma flauta distante.
Para responder-lhe, cortei um ramo de salgueiro
e a canção da minha flauta embalou a noite encantada.

Desde então, todos os dias,
à hora em que o campo adormece,
os pássaros ouvem a conversa
de dois pássaros desconhecidos,
cuja linguagem, no entanto, compreendem.

Silêncio - Renata Pallottini

Por que não és, apenas, se assim me bastas?
Tens a grande virtude de existir, o que é tudo.
Por que dizer? São tantas e tão vastas
Todas as palavras! Melhor que dizê-las, pobre é ser mudo.

Nossas mãos também foram feitas para dormir.
Mesmo o amor deve ter seus segredos.
Ninguém pode estar contigo quando queres apenas existir,
Há sempre algo em ti que não escapa à prisão dos teus dedos.

O agudo silêncio não fere ao que o respeita.
O ser, somente, tem a mesma calma de alguma antiga cabana.
Sejamos silenciosos como um anjo que se deita,
Como a queda de uma bênção sobre a alma humana.

Cessa o teu canto! - Fernando Pessoa



Cessa o teu canto!
Cessa, que, enquanto
O ouvi, ouvia
Uma outra voz
Com que vindo
Nos interstícios
Do brando encanto
Com que o teu canto
Vinha até nós.
Ouvi-te e ouvi-a
No mesmo tempo
E diferentes
Juntas cantar.
E a melodia
Que não havia.
Se agora a lembro,
Faz-me chorar.

O dom de sonhar - Helena Kolody


A esperança engana
Mente o sonho
Eu sei
Que mentiras lindas
eu mesma inventei
e contei para mim...

Valsa do adeus - Hélio Pelllegrino



Tudo é partida de navio, velas
ao vento, coisas desancoradas
que se desgarram. Este copo, esta pedra
que pronuncio não são palavras, nem
versos de amor, nem o sopro
vivificante do espírito. São barcos
arrastados pelo tempo, cascas
de fruta na enxurrada, lenços
de adeus, enquanto o vapor se afasta,
e de longe ilumina essa ausência que somos.


Solidão - Pedro Homem de Mello

Ó solidão! À noite, quando, estranho,
Vagueio sem destino, pelas ruas,
O mar todo é de pedra... E continuas.
Todo o vento é poeira... E continuas.
A Lua, fria, pesa... E continuas.
Uma hora passa e outra... E continuas.
Nas minhas mãos vazias continuas,
No meu sexo indomável continuas,
Na minha branca insônia continuas,
Paro como quem foge. E continuas.
Chamo por toda a gente. E continuas.
Ninguém me ouve. Ninguém! E continuas.
Invento um verso... E rasgo-o. E continuas.
Eterna, continuas... Mas sei por fim que sou do teu tamanho!

Tchaikovsky - Violin Concerto 1st mvt. Part1

HAIKAI - A. A. de Assis


A roda-gigante
roda, roda, roda, roda.
Me refaz infante.

Bucólica - Ronald de Carvalho

A manhã parece que nasceu do teu riso,
do teu riso de pássaro ou de fonte.

Vibram na tua voz trilhos d’água fresca,
d’água que escorre por entre avencas e samambaias.

E as tuas mãos são duas borboletas brancas
voando sobre papoulas e tinhorões,
Voando na luz da manhã...

Grão de Chão - Thiago de Mello


Folha, mas viva na árvore,
fazendo parte do verde.
Não a folha solta,
bailando no vento
a canção da agonia.


Grão de areia, quase nada,
Inútil quando sozinho.
Mas que é terra,
a terra,
quando é grão
fazendo parte do chão,
esta coisa firme
por onde o homem caminha.

HaiKai - Matsuo Bashô


Como que levada
pela brisa, a borboleta
vai de ramo em ramo.

As gardênias, ah! - Marina Colasanti


Branca é a gardênia
como a garça.
E como a garça guarda
entre toques de leite
sombras quase de poço
esverdeadas.

As pétalas da flor
iguais às plumas
têm um mover-se imóvel
um volteio
como se vento houvesse
ou sopro
sempre.

As garças voam.
Mas as gardênias,
ah! as gardênias
evolam pelo ar
o seu perfume.

Biografia - Carlos Nejar


Não tive biografia
mas metáforas.
Manga na praça
foi a infância.

A alma dividida
de nascença.
Com ela o mundo
arfava em cada coisa.

O amor inchava
o sol de maresia.
Inchava na palavra
e as velas iam.

Vivi sofri - eis tudo
e o vivido
arrasta o barco
pelo mar que é findo.

Paulo Autran - Quero (C.D.Andrade)

Do Medo - Luis Filipe C. Mendes

Não pode o poema
circunscrever o medo,
dar-lhe o rosto glorioso
de uma fábula
ou crer intensamente na sua aura.
Nós permanecemos, quando
escurece à nossa volta o frio
do esquecimento
e dura o vento e uma nuvem leve
a separar-se das brumas
nos começa a noite.

Não pode o poema
quase nada. A alguns inspira
uma discreta repugnância.
Outras vezes inclinamo-nos, reverentes, ante os epitáfios
ou demoramo-nos a escutar as grandes chuvas
sobre a terra.
Quem reconhece a poesia, esse frio
intermitente, essa
persistência através da corrupção?
Quase sempre a angústia
instaura a luz por dentro das palavras
e lhes rouba os sentidos.
Quase sempre é o medo
que nos conduz à poesia.

Voltando ao medo: as asas
prendem mais do que libertam;
os pássaros percorrem necessariamente
os mesmos caminhos no espaço,
sem possibilidades de variação
que não estejam certas com esse mesmo voo
que sempre descrevem.
Voltando ao medo: o poema

desenha uma elipse em redor da tua voz
e cerca-se de angústia
e ervas bravias — nada mais
pode fazer.

Dia - Octavio Paz


De que céu caído,
oh insólito,
imóvel solitário na onda do tempo?
És a duração,
o tempo que amadurece
num instante enorme, diáfano:
flecha no ar,
branco embelezado
e espaço já sem memória de flecha.
Dia feito de tempo e de vazio:
desabitas-me, apagas
meu nome e o que sou,
enchendo-me de ti: luz, nada.

E flutuo, já sem mim, pura existência.

Dei de comer aos pássaros - Cecília Meireles


Dei de comer aos pássaros,
dei de beber à terra.
Procurei os trabalhos do mundo:
não conduzem a nada.
Ninguém é feliz à custa de outrem.
O próximo fica muito distante
e alheio ao nosso amor.
Os pássaros comeram
e a terra bebeu pelas minhas mãos.
Mas os homens ouviram meu pensamento
e gostaram apenas das minhas palavras,
sem fome nem sede.