Murilo menino - Murilo Mendes

Eu quero montar o vento em pêlo,
Força do céu, cavalo poderoso
Que viaja quando entende, noite e dia.

Quero ouvir a flauta sem fim do Isidoro da flauta,
Quero que o preto velho Isidoro
Dê um concerto com minhas primas ao piano,
Lá no salão azul da baronesa.

Quero conhecer a mãe-d'água
Que no claro do rio penteia os cabelos
Com um pente de sete cores.

Salve, salve minha rainha,
Ó clemente ó piedosa ó doce Virgem Maria,
? Como pode uma rainha ser também advogada.

Esta é a graça - Henriqueta Lisboa

Esta é a graça dos pássaros:
cantam enquanto esperam.
E nem ao menos sabem o que esperam.

Será porventura a morte, o amor?
Talvez a noite com nova estrela,
a pátina de ouro do tempo,
alguma cousa de precário
assim como para o soldado a paz?

Com grave mistério de reposteiros
um augúrio dimana, incessante,
do marulho das fontes sob pedras,
do bulício das samambaias no horto.

No ladrido dos cães à vista da lua,
acima do desejo e da fome,
pervaga um longo desespero
em busca de tangente inefável.

O mesmo silencio da madrugada
prenuncia, sem dúvida, um evento
que já não é o grito da aurora
ao macular de sangue a túnica.

E minha voz perdura neste concerto
com a vibração e o temor de um violino
pronto a estalar em holocausto
as próprias cordas demasiado tensas.

Canção 56 - Carlos Nejar

Não tiro de minhas retinas,
todos os povos vencidos.
Não tiro nenhuma lágrima,
nenhuma dor, nenhum símbolo.
Toda a fadiga dos mitos
se cristaliza no medo.
Não, não tiro das retinas
o meu povo tão calado.
Nem tiro sequer das gotas
destas pálpebras, o peso.

Esta estrada onde moro - Manuel Bandeira

Esta estrada onde moro, entre duas voltas do caminho,
Interessa mais que uma avenida urbana.
Nas cidades todas as pessoas se parecem.
Todo o mundo é igual. Todo o mundo é toda a gente.
Aqui, não: sente-se bem que cada um traz a sua alma.

Cada criatura é única.
Até os cães.
Estes cães da roça parecem homens de negócios:
Andam sempre preocupados.
E quanta gente vem e vai!
E tudo tem aquele caráter impressivo que faz meditar:
Enterro a pé ou a carrocinha de leite
puxada por um bodezinho manhoso.

Nem falta o murmúrio da água,
para sugerir, pela voz dos símbolos,
Que a vida passa! que a vida passa!
E que a mocidade vai acabar.

Sem sombra e água fresca - Leila Míccolis

O homem mata a mata,
violenta a flora,
polui as fontes,
devasta, agride-as,
e, segundo a mídia,
cria este calor de estufa.
Sem ser orquídea.

As rosas - Sophia de Mello B. Andresen

Quando à noite desfolho e trinco as rosas
É como se prendesse entre os meus dentes
Todo o luar das noites transparentes,
Todo o fulgor das tardes luminosas,
O vento bailador das primaveras,
A doçura amarga dos poentes,
E a exaltação de todas as esperas.

Emily Dickinson

Primeiro Ato é achar,
Perder é o segundo Ato,
Terceiro, a Viagem em busca
Do “Velocino Dourado”

Quarto, não há Descoberta —
Quinta, nem Tripulação —
Por fim, não há Velocino —
Falso — também — Jasão.

Retrato do poeta quando jovem - José Saramago

Há na memória um rio onde navegam
Os barcos da infância, em arcadas
De ramos inquietos que despregam
Sobre as águas as folhas recurvadas.

Há um bater de remos compassado
No silêncio da lisa madrugada,
Ondas brancas se afastam para o lado
Com o rumor da seda amarrotada.

Há um nascer do sol no sítio exacto,
À hora que mais conta duma vida,
Um acordar dos olhos e do tacto,
Um ansiar de sede inextinguida.

Há um retrato de água e de quebranto
Que do fundo rompeu desta memória,
E tudo quanto é rio abre no canto
Que conta do retrato a velha história

Antes - Helena Kolody

Antes que desça a noite,
imprimir na retina
os rostos amados,
o sol,
as cores,
o céu de outono
e os jardins da primavera.

Inundar de sons
de vozes
e de música eterna
os ouvidos,
antes que os atinja
a maré do silêncio.

Conquistar
os pontos culminantes
da vida,
antes que se esgote
o prazo da permanência
em seu território sagrado.

A passagem - Lêdo Ivo


Que me deixem passar - eis o que peço
diante da porta ou diante do caminho.
E que ninguém me siga na passagem.
Não tenho companheiros de viagem
nem quero que ninguém fique ao meu lado.
Para passar, exijo estar sozinho,
somente de mim mesmo acompanhado.
Mas caso me proíbam de passar
por ser eu diferente ou indesejado
mesmo assim passarei.
Inventarei a porta e o caminho.
E passarei sozinho.


Tchaikovsky - Symphony No. 4

Oriente - Caio Fernando Abreu


Manda-me verbena ou benjoim no próximo crescente
e um retalho roxo de seda alucinante
e mãos de prata ainda (se puderes)
e se puderes mais, manda violetas
(margaridas talvez, caso quiseres)

manda-me osíris no próximo crescente
e um olho escancarado de loucura
(em pentagrama, asas transparentes)

manda-me tudo pelo vento:
envolto em nuvens, selado com estrelas
tingido de arco-íris, molhado de infinito
(lacrado de oriente, se encontrares).

A Verdade - Thiago de Mello

A verdade é a luz pequena
ardendo na escuridão.
Da terra, ela nasce e cresce
de vida, na tua mão.
Quem a encontra, gasta um rio
de palavras, inaugura
braços e barcos, mostrando.
Ninguém a vê. De repente,
é um sol imenso no peito
da multidão: é a verdade
no centro do seu poder.
Mas ela também se acaba.
E quando se acaba
é uma brasa oca, faminta,
devorando o coração.

Improviso à janela - Cecília Meireles

Este é o começo do dia,
como o começo e o fim do mundo:
as nuvens aprendem a voar,
os campos vão sonhando nuvens,
o vento vai sonhando o pó
onde tristemente o amor palpitará.

Este é o começo do dia.
Vemos tudo o que já foi visto,
alguma coisa não mais se verá.

Nem sempre olhamos o dia
tão face a face e tão docemente.
Nem sempre sentimos esta saudade,
ainda ausente, ainda futura,
do que há e do que não há.

Este é o começo do dia:
- do céu, da luz, da terra, dos homens,
que acontecerá?

Acqua Marcia - Marina Colasanti

Em todo lugar sou estrangeira
Menos na minha casa
E mesmo na minha casa
Nenhum habitante sabe
Que o gosto justo da água
É aquele daquela água
Que em minha terra se bebe.

Chuva - Cecília Meireles


Sobre as casas fechadas, a chuva.
Sobre o sono dos homens, a chuva.
Sobre os mortos inúmeros, a chuva.

A chuva noturna sobre as árvores.
A chuva noturna sobre os templos
A chuva noturna sobre o mar.


Sobre a solidão deste mundo, a chuva.
A solidão da chuva, na solidão.

Gal Costa - Coração Vagabundo

Noturno - Helena Kolody

Dormem as papoulas.
A lua sonha no céu.
Vigiam os grilos.

Mar - Vinícius de Moraes

Na melancolia de teus olhos
Eu sinto a noite se inclinar
E ouço as cantigas antigas
Do mar.

Nos frios espaços de teus braços
Eu me perco em carícias de água
E durmo escutando em vão
O silêncio.

E anseio em teu misterioso seio
Na atonia das ondas redondas
Náufrago entregue ao fluxo forte
Da morte.

Desvios da estrada - Paulino Vergetti Neto

O último grito ouvi de mim
antes de arredar-se a coragem
e meus olhos irem-se
desbravando a fuga
e tecendo o desespero.
Voltar não rimava com nada
e vagueei por estradas
sem nortes de idas,
sem vindas avistadas.

Ir-me era melhor do que ficar
e fui!
Hoje chego-me cedo do que tardeei
e apenas porque cheguei
acho de voltar-me.

Não gritarei mais.
E o silêncio, a arma,
devo entregar às estradas deixadas

por onde nunca cruzei.