Epigrama do pássaro - Lêdo Ivo


"Precisamos deixar algo para a posteridade",
disse o poeta, contemplando o gari
que recolhia o lixo da cidade.
E o pássaro que não deixa nenhum canto após a morte
e se limita a ser vida no ar perene
que habita o instante
em silêncio pousou no ramo de uma árvore.


Oração - Guimarães Rosa

O louva-deus, ereto, num caule de junquilho,
reza , de mãos postas, com punhais cruzados,
como um bandido calabrês...

Poema de sete faces - Carlos Drummond de Andrade

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus,
pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

Ernesto Cortazar - Blue Water

Oswaldo Montenegro - Drops de hortelã

Canção em segredo - Lya Luft

Dentro desta mulher
um anjo menino
brinca de ciranda na calçada
e tem fome de futuro.
Dentro desta mulher
uma criança se debruça na janela
vendo chegar o amor
e se julga imortal.

Dentro desta mulher
uma guerreira constrói sua vida
depois de parir filhos para o mundo.
Dentro desta mulher
outra mulher enterra o seu amor perdido
e mesmo assim espera.

(Dentro desta mulher
o mistério das coisas
finge dormir.)

O convite - Oriah Mountain Dreamer

Não me interessa o que você faz da vida.
O que eu quero saber é pelo que você anseia
e se se atreve a sonhar com os desejos do seu coração.
Não me interessa saber que idade você tem.
Eu quero saber se você se arriscaria a parecer tolo por amor,
pelos seus sonhos, pela aventura de estar vivo.

Não me interessa saber que planetas fazem quadratura com a sua lua.
Quero saber se você tocou no âmago da sua própria dor
e se as traições da vida enriqueceram você
ou se você se fechou e retraiu com medo de sofrer mais.

Quero saber se você pode sentar-se com a dor, a minha e a sua,
sem um gesto para escondê-la, atenuá-la ou remediá-la.

Quero saber se você é capaz de viver plenamente a alegria,
a minha ou a sua, se pode dançar em total abandono
e deixar o êxtase penetrar seu corpo,
desde a ponta dos dedos, sem que você seja tentado
a nos aconselhar cautela ou a sermos realistas
ou sequer lembre das nossas limitações humanas.

Não me interessa se o que você me conta é verdade.
Quero saber se você correria o risco de desapontar alguém
para ser verdadeiro consigo mesmo.
Se aguentaria ser acusado de traição sem atraiçoar sua alma.
Se consegue ser infiel e, por isso, digno de confiança.

Quero saber se você consegue ver a Beleza
mesmo quando ela não é bela todos os dias.
E se consegue extrair sua própria vida dessa presença.

Quero saber se você consegue viver com o fracasso,
o seu e o meu, e ainda assim ficar de pé na margem do lago
e gritar para o reflexo prateado da Lua Cheia, 'sim!'.

Não quero saber onde você mora ou quanto você ganha.
Quero saber se consegue levantar-se
depois de uma noite inteira de tristeza e desespero,
exausto e ferido, e ainda assim,
fazer o que for preciso para alimentar seus filhos.

Não me interessa quem você conhece
ou como chegou até aqui.
Quero saber se você ficaria de pé
no centro do fogo comigo, sem recuar.

Não me interessa saber onde,
o que ou com quem você estudou.
Quero saber o que faz você permanecer inteiro
quando todo o resto desaba ao seu redor.

Quero saber se aguenta ficar sozinho consigo mesmo
e se ama verdadeiramente sua própria companhia
nos momentos de solidão.

Vivaldi

Lâmpada de Aladim - Helena Kolody

Palpitam em sua luz
Os desejos e os sonhos,
Lampeja o amanhã.

Resguardar dos ventos maus
A magia de seu lume.

Marcar
O ponto de fuga
Dos dias
Na linha iluminada do horizonte
Onde o infinito principia.

Quando tudo parecer
Perdido,
Escuro,
Avivar o fulgor da esperança
E acreditar:
Ainda vai ser!

Amém - Cecília Meireles



Hoje acabou-se-me a palavra,
e nenhuma lágrima vem.
Ai, se a vida se me acabara
também!

A profusão do mundo, imensa,
tem tudo, tudo – e nada tem.
Onde repousar a cabeça?
No além?

Fala-se com os homens, com os santos,
consigo, com Deus. . . E ninguém
entende o que se está contando
e a quem. . .

Mas terra e sol, luas e estrelas
giram de tal maneira bem
que a alma desanima de queixas.
Amém.

HAIKAI - Bashô


Quantas memórias
me trazem à mente
cerejeiras em flor

Canção do vento e da minha vida - Manuel Bandeira

O vento varria as folhas,
O vento varria os frutos,
O vento varria as flores...
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De frutos, de flores, de folhas.

O vento varria as luzes,
O vento varria as músicas,
O vento varria os aromas...
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De aromas, de estrelas, de cânticos.

O vento varria os sonhos
E varria as amizades...
O vento varria as mulheres.
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De afetos e de mulheres.

O vento varria os meses
E varria os teus sorrisos...
O vento varria tudo!
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De tudo.

Navegador - Flora Figueiredo



Desenhei um oceano
para ser calmo, claro e plano.
Ele começou a se insubordinar:
inventou um movimento
só pra molhar meu bom comportamento.
Tive que me acostumar às ondulações .
Outra de suas diversões
foi me fazer mergulhar
sempre mais fundo,
na intenção de me ver esfolar
no lodo que atapeta o chão do mundo.
Com o tempo,
perdeu o senso de todo,
escalpelou , cresceu,
engoliu o castelo de areia que era meu.
Como rebelião,
reforço o nó de marinheiro
e conduzo meu veleiro
ávido, contra a correnteza.
O oceano vai com certeza se irritar
e querer derrubar a embarcação.
Em vão, pois dessa vez ele perde.
Aprendi a nadar o suficiente
para emergir no exato lugar
onde a terra se faz quente,
onde o mar é verde.

As aquarelas - Odylo Costa, Filho


Não penso azul, nem verde, nem vermelho,
nenhuma cor vejo isoladamente:
quero a vida total, como um espelho
a que não falte flor, folha ou semente.

A natureza, neste abril redondo,
esconde formas, seres, linhas, cores,
aqui e ali bizarramente pondo
manchas involuntárias, multicores.

Recuso-me a adotar bandeira ou marca.
Nada escolho. O mistério natural
me envolve inteiro. Em tuas aquarelas
tudo renasce — como quem da barca
do dilúvio, depois do temporal,
visse de novo a terra das janelas...



Vinícius e Toquinho - AS CORES DE ABRIL

A lucidez perigosa - Clarice Lispector

Estou sentindo uma clareza tão grande
que me anula como pessoa atual e comum:
é uma lucidez vazia, como explicar?
assim como um cálculo matemático perfeito
do qual, no entanto, não se precise.

Estou por assim dizer
vendo claramente o vazio.
E nem entendo aquilo que entendo:
pois estou infinitamente maior que eu mesma,
e não me alcanço.
Além do que:
que faço dessa lucidez?
Sei também que esta minha lucidez
pode-se tornar o inferno humano
-- já me aconteceu antes.

Pois sei que
-- em termos de nossa diária
e permanente acomodação
resignada à irrealidade
-- essa clareza de realidade
é um risco.

Apagai, pois, minha flama, Deus,
porque ela não me serve
para viver os dias.
Ajudai-me a de novo consistir
dos modos possíveis.
Eu consisto,
eu consisto,
amém.