Quem falou de primavera
sem ter visto o teu sorriso,
falou sem saber o que era.
Pus o meu lábio indeciso
na concha verde e espumosa
modelada ao vento liso:
tinha frescura de rosa,
aroma de viagem clara
e um som de prata gloriosa.
Mas desfez-se em coisa rara:
pérolas de sal tão finas
- nem a areia as igualara!
Tenho no meu lábio as ruínas
de arquiteturas de espuma
com paredes cristalinas ...
Voltei aos campos de bruma,
onde as árvores perdidas
não prometem sombra alguma.
As coisas acontecidas,
mesmo longe, ficam perto para
sempre e em muitas vidas:
mas quem falou do deserto
sem nunca ver os meus olhos ...
- falou, mas não estava certo.
Cantigas - Odylo Costa, Filho
Meu Deus, como é amarga esta paz,
paz de veias somadas, mas rompidas,
e em que o sangue se junta para chorar como outrora
se juntaram nossos corpos de marido e mulher.
Dai-nos, para consolo e esquecimento,
não alegrias quentes, exaltantes,
mas as ternuras do ressuscitar:
telhados velhos em cidades pobres,
cemitérios com poetas enterrados,
cadeiras de balanço em frente ao mar.
Livrai do incontido choro as nossas noites.
Meu Deus, livrai do incontido choro as nossas noites.
Dai-nos antes miúdas mãos, pés pequeninos
pisando flores no capim molhado,
nomes maternos na saudade densa,
cantigas, algumas cantigas.
Dai-nos cantigas descendo o rio
como canoas descendo o rio.
Cantigas de dor mansa, simples, humilde.
Tão mansa que não quer dizer nada.
Tão simples que não sabe dizer nada.
Tão humilde que nada ousa pedir a Deus.
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Filho,
Odylo Costa
Minha Mãe - Vinícius de Moraes
Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo
Tenho medo da vida, minha mãe.
Canta a doce cantiga que cantavas
Quando eu corria doido ao teu regaço
Com medo dos fantasmas do telhado.
Nina o meu sono cheio de inquietude
Batendo de levinho no meu braço
Que estou com muito medo, minha mãe.
Repousa a luz amiga dos teus olhos
Nos meus olhos sem luz e sem repouso
Dize à dor que me espera eternamente
Para ir embora. Expulsa a angústia imensa
Do meu ser que não quer e que não pode
Dá-me um beijo na fonte dolorida
Que ela arde de febre, minha mãe.
Aninha-me em teu colo como outrora
Dize-me bem baixo assim: — Filho, não temas
Dorme em sossego, que tua mãe não dorme.
Dorme. Os que de há muito te esperavam
Cansados já se foram para longe.
Perto de ti está tua mãezinha
Teu irmão. que o estudo adormeceu
Tuas irmãs pisando de levinho
Para não despertar o sono teu.
Dorme, meu filho, dorme no meu peito
Sonha a felicidade. Velo eu.
Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo
Me apavora a renúncia. Dize que eu fique
Afugenta este espaço que me prende
Afugenta o infinito que me chama
Que eu estou com muito medo, minha mãe.
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Vinícius de Moraes
Para sempre - Carlos Drummond de Andrade
Por que Deus permite
que as mães vão se embora?
Mãe não tem limite,
é tempo sem hora,
luz que não se apaga
quando sopra o vento
e chuva desaba,
veludo escondido
na pele enrugada,
água pura, ar puro,
puro pensamento.
Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestígio.
Mãe, na sua graça,
é eternidade.
Por que Deus se lembra
- mistério profundo -
de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho.
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Carlos Drummond de Andrade
Carlos Drummond de Andrade
O professor disserta sobre ponto difícil do programa.
Um aluno dorme,
Cansado das canseiras desta vida.
O professor vai sacudi-lo?
Vai repreendê-lo?
Não.
O professor baixa a voz,
Com medo de acordá-lo.
Um aluno dorme,
Cansado das canseiras desta vida.
O professor vai sacudi-lo?
Vai repreendê-lo?
Não.
O professor baixa a voz,
Com medo de acordá-lo.
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Manoel de Barros
Ontem passou por aqui um meu ancestral, que
solfejava Bach:
“Fique conosco, Senhor, que a noite chega.”
Ele cantava assim nas estradas mais sujas.
E aquelas borboletas sobre uns ramos de
tomilho cantavam com ele.
solfejava Bach:
“Fique conosco, Senhor, que a noite chega.”
Ele cantava assim nas estradas mais sujas.
E aquelas borboletas sobre uns ramos de
tomilho cantavam com ele.
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Manoel de Barros
Blues - José Geraldo Neres
roçar arco-íris
com dedos cristalinos
sussurrar palavras extintas
no dicionário da floresta carnal
punhal aveludado
bálsamo em cicatriz azul
ingênuo instante
poema bilíngue
modela nuvens de algodão
com dedos cristalinos
sussurrar palavras extintas
no dicionário da floresta carnal
punhal aveludado
bálsamo em cicatriz azul
ingênuo instante
poema bilíngue
modela nuvens de algodão
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Tentativa - Cecília Meireles
Andei pelo mundo no meio dos homens:
uns compravam jóias, uns compravam pão.
Não houve mercado nem mercadoria
que seduzisse a minha vaga mão.
Calado, Calado, me diga, Calado
por onde se encontra minha sedução.
Alguns sorriram, muitos, soluçaram,
uns, porque tiveram, outros, porque não.
Calado, Calado, eu, que não quis nada,
por que ando com pena no meu coração?
Se não vou ser santa, Calado, Calado,
os sonhos de todos por que não me dão?
Calado, Calado, perderam meus dias?
ou gastei-os todos, só por distração?
Não sou dos que levam: sou coisa levada...
E nem sei daqueles que me levarão...
Calado, me diga se devo ir-me embora,
para que outro mundo e em que embarcação?
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Cecília Meireles
HAI KAI - Matsuo Bashô
Doente da viagem,
Meus sonhos perambulam
Pelo campo seco.
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Matsuo Bashô
Contemplo o que não vejo - Fernando Pessoa
Contemplo o que não vejo.
É tarde, é quase escuro.
E quanto em mim desejo
Está parado ante o muro.
Por cima o céu é grande;
Sinto árvores além;
Embora o vento abrande,
Há folhas em vaivém.
Tudo é do outro lado,
No que há e no que penso.
Nem há ramo agitado
Que o céu não seja imenso.
Confunde-se o que existe
Com o que durmo e sou.
Não sinto, não sou triste.
Mas triste é o que estou.
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Fernando Pessoa
O gato e o pássaro - Jacques Prévert
Uma cidade escuta desolada
O canto de um pássaro ferido
É o único pássaro da cidade
E foi o único gato da cidade
Que o devorou pela metade
E o pássaro pára de cantar
O gato pára de ronronar
E de lamber o focinho
E a cidade prepara para o pássaro
Maravilhosos funerais
E o gato que foi convidado
Segue o caixãozinho de palha
Em que deitado está o pássaro morto
Levado por uma menina
Que não pára de chorar
Se soubesse que você ia sofrer tanto
Lhe diz o gato
Teria comido ele todinho
E depois teria te dito
Que tinha visto ele voar
Voar até o fim do mundo
Lá onde o longe é tão longe
Que de lá não se volta mais
Que você teria sofrido menos
Sentiria apenas tristeza e saudades
Não se deve deixar as coisas pela metade.
O canto de um pássaro ferido
É o único pássaro da cidade
E foi o único gato da cidade
Que o devorou pela metade
E o pássaro pára de cantar
O gato pára de ronronar
E de lamber o focinho
E a cidade prepara para o pássaro
Maravilhosos funerais
E o gato que foi convidado
Segue o caixãozinho de palha
Em que deitado está o pássaro morto
Levado por uma menina
Que não pára de chorar
Se soubesse que você ia sofrer tanto
Lhe diz o gato
Teria comido ele todinho
E depois teria te dito
Que tinha visto ele voar
Voar até o fim do mundo
Lá onde o longe é tão longe
Que de lá não se volta mais
Que você teria sofrido menos
Sentiria apenas tristeza e saudades
Não se deve deixar as coisas pela metade.
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Confusão - Garcia Lorca
Meu coração
é teu coração?
Quem me reflexa pensamentos?
Quem me presta
esta paixão
sem raízes?
Por que muda meu traje
de cores?
Tudo é encruzilhada!
Por que vês no céu
tanta estrela?
Irmão, és tu
ou sou eu?
E estas mãos tão frias
são daquele?
Vejo-me pelos ocasos,
e um formigueiro de gente
anda por meu coração.
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Garcia Lorca
O vento - Cecília Meireles
O cipreste inclina-se em fina reverência
e as margaridas estremecem, sobressaltadas.
A grande amendoeira consente que balancem
suas largas folhas transparentes ao sol.
Misturam-se uns aos outros, rápidos e frágeis,
os longos fios da relva, lustrosos, lisos cílios verdes.
Frondes rendadas de acácias palpitam inquietantemente
com o mesmo tremor das samambaias
debruçadas nos vasos.
Fremem os bambus sem sossego,
num insistente ritmo breve.
O vento é o mesmo:
mas sua resposta é diferente, em cada folha.
Somente a árvore seca fica imóvel,
entre borboletas e pássaros.
Como a escada e as colunas de pedra,
ela pertence agora a outro reino.
Se movimento secou também, num desenho inerte.
Jaz perfeita, em sua escultura de cinza densa.
O vento que percorre o jardim
pode subir e descer por seus galhos inúmeros:
ela não responderá mais nada,
hirta e surda, naquele verde mundo sussurrante.
e as margaridas estremecem, sobressaltadas.
A grande amendoeira consente que balancem
suas largas folhas transparentes ao sol.
Misturam-se uns aos outros, rápidos e frágeis,
os longos fios da relva, lustrosos, lisos cílios verdes.
Frondes rendadas de acácias palpitam inquietantemente
com o mesmo tremor das samambaias
debruçadas nos vasos.
Fremem os bambus sem sossego,
num insistente ritmo breve.
O vento é o mesmo:
mas sua resposta é diferente, em cada folha.
Somente a árvore seca fica imóvel,
entre borboletas e pássaros.
Como a escada e as colunas de pedra,
ela pertence agora a outro reino.
Se movimento secou também, num desenho inerte.
Jaz perfeita, em sua escultura de cinza densa.
O vento que percorre o jardim
pode subir e descer por seus galhos inúmeros:
ela não responderá mais nada,
hirta e surda, naquele verde mundo sussurrante.
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Anfiguri - Vinícius de Moraes
Aquilo que eu ouso
Não é o que quero
Eu quero o repouso
Do que não espero.
Não quero o que tenho
Pelo que custou
Não sei de onde venho
Sei para onde vou.
Homem, sou fera
Poeta, sou um louco
Amante, sou pai.
Vida, quem me dera...
Amor, dura pouco...
Poesia,ai!...
Não é o que quero
Eu quero o repouso
Do que não espero.
Não quero o que tenho
Pelo que custou
Não sei de onde venho
Sei para onde vou.
Homem, sou fera
Poeta, sou um louco
Amante, sou pai.
Vida, quem me dera...
Amor, dura pouco...
Poesia,ai!...
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Última página - Flora Figueiredo
Mais uma vez o tempo me assusta.
Passa afobado pelo meu dia,
atropela minha hora,
despreza minha agenda.
Corre prepotente
a disputar lugar com a ventania.
O tempo envelhece e não se emenda.
Deveria haver algum decreto
que obrigasse o tempo a desacelerar
e a respeitar meu projeto.
Só assim, eu daria conta
dos livros que vão se empilhando,
das melodias que estão me aguardando,
das saudades que venho sentindo,
das verdades que eu ando mentindo,
das promessas que venho esquecendo,
dos impulsos que sigo contendo,
dos prazeres que chegam partindo,
dos receios que partem, voltando.
Agora, que redijo a página final,
percebo o tanto de caminho percorrido
ao impulso da hora que vai me acelerando.
Apesar do tempo e sua pressa desleal,
agradeço a Deus por ter vivido,
amanhecer e continuar teimando.
Passa afobado pelo meu dia,
atropela minha hora,
despreza minha agenda.
Corre prepotente
a disputar lugar com a ventania.
O tempo envelhece e não se emenda.
Deveria haver algum decreto
que obrigasse o tempo a desacelerar
e a respeitar meu projeto.
Só assim, eu daria conta
dos livros que vão se empilhando,
das melodias que estão me aguardando,
das saudades que venho sentindo,
das verdades que eu ando mentindo,
das promessas que venho esquecendo,
dos impulsos que sigo contendo,
dos prazeres que chegam partindo,
dos receios que partem, voltando.
Agora, que redijo a página final,
percebo o tanto de caminho percorrido
ao impulso da hora que vai me acelerando.
Apesar do tempo e sua pressa desleal,
agradeço a Deus por ter vivido,
amanhecer e continuar teimando.
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