A medida do abismo - Vinícius de Moraes

Não é o grito
A medida do abismo?
Por isso eu grito
Sempre que cismo
Sobre tua vida
Tão louca e errada...
– Que grito inútil!
– Que imenso nada!

Não - Coisa / Ferreira Gullar



O que o poeta quer dizer
no discurso não cabe
e se o diz é pra saber
o que ainda não sabe.

Uma fruta uma flor
um odor que relume…
Como dizer o sabor,
seu clarão seu perfume?

Como enfim traduzir
na lógica do ouvido
o que na coisa é coisa
e que não tem sentido?

A linguagem dispõe
de conceitos, de nomes
mas o gosto da fruta
só o sabes se a comes

só o sabes no corpo
o sabor que assimilas
e que na boca é festa
de saliva e papilas

invadindo-te inteiro
tal do mar o marulho
e que a fala submerge
e reduz a um barulho,

um tumulto de vozes
de gozos, de espasmos,
vertiginoso e pleno
como são os orgasmos

No entanto, o poeta
desafia o impossível
e tenta no poema
dizer o indizível:

subverte a sintaxe
implode a fala, ousa
incutir na linguagem
densidade de coisa

sem permitir, porém,
que perca a transparência
já que a coisa é fechada
à humana consciência.

O que o poeta faz
mais do que mencioná-la
é torná-la aparência
pura — e iluminá-la.

Toda coisa tem peso:
uma noite em seu centro.
O poema é uma coisa
que não tem nada dentro,

a não ser o ressoar
de uma imprecisa voz
que não quer se apagar
— essa voz somos nós.

Como a névoa não deixa cicatriz - Leonard Cohen

Como a névoa não deixa cicatriz
Nas colinas onde o verde mora,
Assim meu corpo não deixará cicatriz
No seu, nem nunca nem agora.

Quando vento e falcão se encontram,
O que conter depois que comece?
Assim como a gente se encontra,
E depois que se solta, adormece.

Como tantas coisas a acontecer
Sem lua, com as estrelas por um triz,
Assim a gente irá acontecer
Quando um de nós não mais se diz.

Dois - Pablo Neruda

Dois...
Apenas dois.
Dois seres...
Dois objetos patéticos.
Cursos paralelos
Frente a frente...
...Sempre...
...A se olharem...
Pensar talvez:
" Paralelos que se encontram no infinito...".
No entanto sós por enquanto.
Eternamente dois apenas.

Epitáfio Para Gorki - Bertolt Brecht

Aqui jaz
O enviado dos bairros da miséria
O que descreveu os atormentadores do povo
E aqueles que os combateram
O que foi educado nas ruas
O de baixa extração
Que ajudou a abolir o sistema de Alto a Baixo
O mestre do povo
Que aprendeu com o povo.

Quero apenas - Olga Savary

Além de mim, quero apenas
essa tranqüilidade de campos de flores
e este gesto impreciso
recompondo a infância.
Além de mim
– e entre mim e meu deserto –
quero apenas silêncio,
cúmplice absoluto do meu verso,
tecendo a teia do vestígio
com cuidado de aranha.

HAIKAI - Carlos Seabra


flor amarela,
no vaso, vê o mundo
pela janela

Murmúrios - Dora Ferreira da Silva



Pousa num ramo um sopro de agonia
dos que morrem (sem saber)
em nosso coração.
Suspira a noite no vento vadio.
Amados mortos: tentais dizer
o quanto amais ainda?

Paulinho da Viola - Sinal Fechado

Maquinomem - Helena Kolody

O homem esposou a máquina
e gerou um híbrido estranho:
um cronômetro no peito
e um dínamo no crânio.
As hemácias de seu sangue
são redondos algarismos.

Crescem cactos estatísticos
em seus abstratos jardins.

Exato planejamento,
a vida do maquinomem.
Trepidam as engrenagens
no esforço das realizações.

Em seu íntimo ignorado,
há uma estranha prisioneira,
cujos gritos estremecem
a metálica estrutura;
há reflexos flamejantes
de uma luz imponderável
que perturbam a frieza
do blindado maquinomem.

Primeira lição - Lêdo Ivo


Na escola primária
Ivo viu a uva
e aprendeu a ler.

Ao ficar rapaz
Ivo viu a Eva
e aprendeu a amar.


E sendo homem feito
Ivo viu o mundo,
seus comes e bebes.

Um dia num muro
Ivo soletrou
a lição da plebe.

E aprendeu a ver.
Ivo viu a ave?
Ivo viu o ovo?

Na nova cartilha
Ivo viu a greve
Ivo viu o povo.




Pousa um momento - Fernando Pessoa

Pousa um momento,
Um só momento em mim,
Não só o olhar, também o pensamento.
Que a vida tenha fim
Nesse momento!

No olhar a alma também
Olhando-me, e eu a ver
Tudo quanto de ti teu olhar tem.
A ver até esquecer
Que tu és tu também.

Só tua alma sem tu
Só o teu pensamento
E eu onde, alma sem eu. Tudo o que sou
Ficou com o momento
E o momento parou.

Administério - Paulo Leminsk

Quando o mistério chegar,
já vai me encontrar dormindo,
metade dando pro sábado,
outra metade, domingo.
Não haja som nem silêncio,
quando o mistério aumentar.
Silêncio é coisa sem senso,
não cesso de observar.
Mistério, algo que, penso,
mais tempo, menos lugar.
Quando o mistério voltar,
meu sono esteja tão solto,
nem haja susto no mundo
que possa me sustentar.

Meia-noite, livro aberto.
Mariposas e mosquitos
pousam no texto incerto.
Seria o branco da folha,
luz que parece objeto?
Quem sabe o cheiro do preto,
que cai ali como um resto?
Ou seria que os insetos
descobriram parentesco
com as letras do alfabeto?

Mar! - Miguel Torga



Mar!
Engenhosa sereia rouca e triste!
Foste tu quem nos veio namorar,
E foste tu depois que nos traíste!
Mar!
E quando terá fim o sofrimento!
E quando deixará de nos tentar
O teu encantamento!

Noturno - José Paulo Paes



O apito do trem perfura a noite.
As paredes do quarto se encolhem.
O mundo fica mais vasto.

Tantos livros para ler
tantas ruas por andar
tantas mulheres a possuir…

Quando chega a madrugada
o adolescente adormece por fim
certo de que o dia vai nascer especialmente para ele.

Loreena McKennitt - Cymbeline

HAIKAI - Paulo Franchetti

O sol se põe
Sobre o riozinho sujo -
Ah, infância!

Procelária - Sophia de Mello B. Andresen

É vista quando há vento e grande vaga
Ela faz o ninho no rolar da fúria
E voa firme e certa como bala

As suas asas empresta à tempestade
Quando os leões do mar rugem nas grutas
Sobre os abismos passa e vai em frente

Ela não busca a rocha o cabo o cais
Mas faz da insegurança a sua força
E do risco de morrer seu alimento

Por isso me parece a imagem justa
Para quem vive e canta no mau tempo.

O amor é o amor - Alexandre O'Neill

O amor é o amor - e depois?!
Vamos ficar os dois
a imaginar, a imaginar?..

O meu peito contra o teu peito,
cortando o mar, cortando o ar.
Num leito
há todo o espaço para amar!

Na nossa carne estamos
sem destino, sem medo, sem pudor,
e trocamos - somos um? somos dois? -
espírito e calor!
O amor é o amor - e depois?!

Sou professor - John W. Schlatter



Nasci no momento exato em que uma pergunta
saltou da boca de uma criança.

Fui muitas pessoas em muitos lugares.

Sou Sócrates, estimulando a juventude de Atenas a
descobrir novas idéias através de perguntas.
Sou Anne Sullivan, extraindo os segredos do universo
da mão estendida de Helen Keller.
Sou Esopo e Hans Christian Andersen, revelando a
verdade através de inúmeras histórias.

Sou Marva Collins, lutando pelo direito de
toda a criança à Educação.
Sou Mary McCloud Bethune, construindo uma
grande universidade para meu povo, utilizando
caixotes de laranja como escrivaninhas.
Sou Bel Kauffman, lutando para colocar em
prática o Up Down Staircase.

Os nomes daqueles que praticaram minha profissão
soam como um corredor da fama para a humanidade...
Booker T. Washington, Buda, Confúcio,
Ralph Waldo Emerson, Leo Buscaglia, Moisés e Jesus.

Sou também aqueles cujos nomes foram há muito
esquecidos, mas cujas lições e o caráter serão sempre
lembrados nas realizações de seus alunos.

Ao longo de cada dia tenho sido solicitado como ator,
amigo, enfermeiro e médico, treinador, descobridor
de artigos perdidos, psicólogo, pai substituto,
vendedor, político e mantenedor da fé.

A despeito de mapas, gráficos, fórmulas, verbos,
histórias e livros, não tenho tido, na verdade,
nada o que ensinar, pois meus alunos têm apenas a si
próprios para aprender, e eu sei que é preciso o mundo
inteiro para dizer a alguém quem ele é.

Sou um paradoxo.
É quando falo alto que escuto mais.

Sou um caçador de tesouros em tempo integral,
em minha busca de novas oportunidades para que
meus alunos usem seus talentos e em minha procura
constante desses talentos que, às vezes,
permanecem encobertos pela auto-derrota.

Sou o mais afortunado entre todos os que labutam.

A um médico é permitido conduzir a vida num
mágico momento.
A mim, é permitido ver que a vida renasce a cada
dia com novas perguntas, ideias e amizades.

Um arquiteto sabe que, se construir com cuidado,
sua estrutura poderá permanecer por séculos.
Um professor sabe que, se construir com amor e verdade,
o que construir durará para sempre.

Sou um guerreiro, batalhando diariamente contra a
pressão dos colegas, o negativismo, o medo, o conformismo,
o preconceito, a ignorância e a apatia.
Mas tenho grandes aliados: Inteligência, Curiosidade,
Individualidade, Criatividade, Fé, Amor e Riso,
todos correm a tomar meu partido com apoio indômito.

E assim, tenho um passado rico em memórias.
Tenho um presente de desafios, aventuras e divertimento,
porque a mim é permitido passar meus dias com o futuro.

Sou professor... e agradeço a Deus por isso todos os dias.