Chuva - Irene Lisboa



Chuva nos vidros.
Nada, chuva nos vidros!
Espaçadas, casuais, agudas, oblíquas agulhadas.
Chuva que se anuncia, que apenas se anuncia.
Pingas que vão secando. Se vão arredondando,
tornando imateriais e invisíveis.
Vagas coisas. Como quê?
Como as coisas da minha vida.
Nem já chuva nos vidros...
Já não se veem os sinais.

Rio vermelho - Cora Coralina

Água – pedra.
Eternidades irmanadas.
Tumulto – torrente.
Estática – silenciosa.
O paciente deslizar,
o chorinho a lacrimejar
sutil, dúctil
na pedra, na terra.
Duas perenidades –
sobreviventes
no tempo.
Lado a lado – conviventes,
diferentes, juntas, separadas.
Coniventes.
Meu Rio Vermelho.

Poema para Garrincha - Affonso Romano de Sant’Anna

Ave! Garrincha

Ave humana
lépida
discreta
pés de brisa
corpo dúbio
finta certa.

Garrincha é como a aragem
Garrincha é como o vento
Garrincha é como a brisa

Que ora avança
na cancha
com graça
e elegância
e rebate
o arremesso
e remata
no peito
e rechaça
a ameaça
da caça
que o caça
e enfim a embaraça
no drible-trapaça
que a prostra no chão
pés de brisa
corpo dúbio finta certa.

Garrincha é a ave
certa de seu voo
Garrincha é a seta
certa de seu alvo
Garrincha é o homem
certo de sua meta.

Tendo as pernas curvas
e uma candura esquiva
no teu silêncio puro
a tua alma asinha
sabe sofrer na neve
o frio da andorinha

Garrincha
ave incontida
e mal retida
nas gaiolas
do gramado.

Com endiabrados
dribles e disparos
com diabices raras
sobre a cancha

Avança
a dança
e pula
e aduba
e açula

a alma do infeliz
que o perseguiu:

parou
pisou
passou
voltou
driblou
chutou

- GOL DO BRASIL

pés de brisa
corpo dúbio
finta certa
Garrincha doravante
é ave nacional.

Tristeza - Guilherme de Almeida

Por que estás assim,
violeta? Que borboleta
morreu no jardim?

Unidade - Manuel Bandeira

Minh’alma estava naquele instante
Fora de mim longe muito longe

Chegaste
E desde logo foi verão
O verão com as suas palmas
os seus mormaços
os seus ventos de sôfrega mocidade
Debalde os teus afagos
insinuavam quebranto e molície
Era como uma seta de fogo

Foi então que minh’alma veio vindo
Veio vindo de muito longe
Veio vindo
Para de súbito entrar-me violenta
e sacudir-me todo
No momento fugaz da unidade.

Poesia - Carlos Drummond de Andrade



Gastei uma hora pensando em um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira.

OVNI - Ferreira Gullar

Sou uma coisa entre coisas
O espelho me reflete
Eu (meus
olhos)
reflito o espelho

Se me afasto um passo
o espelho me esquece:
– reflete a parede
a janela aberta

Eu guardo o espelho
o espelho não me guarda
(eu guardo o espelho
a janela a parede
rosa
eu guardo a mim mesmo
refletido nele):
sou possivelmente
uma coisa onde o tempo
deu defeito

O Mapa - Mário Quintana

Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo...

(E nem que fosse o meu corpo!)

Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei...

Há tanta esquina esquisita,
Tanta nuança de paredes,
Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(E ha uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei...)

Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso

Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)

E talvez de meu repouso...

Isaac Albéniz - Asturias

Caio F. Abreu

Meu Deus, não sou muito forte,
não tenho muito além de uma certa fé.
Preciso agora da tua mão sobre a minha cabeça.
Que eu não perca a capacidade de amar, de ver, de sentir.
Que eu continue alerta.
Que, se necessário,
eu possa ter novamente o impulso do voo no momento exato.
Que eu não me perca,
que eu não me fira,
que não me firam,
que eu não fira ninguém.
Livra-me dos poços e dos becos de mim, Senhor.
Que meus olhos saibam continuar se alargando sempre.

A noite e a casa - Sophia de Mello B. Andresen

A noite reúne a casa e o seu silêncio
Desde o alicerce desde o fundamento
Até a flor imóvel
Apenas se houve bater o relógio do tempo

A noite reúne a casa a seu destino

Nada agora se dispersa se divide
Tudo está como o cipreste atento

O vazio caminha em seus espaços vivos.

Là-bas, je ne sais où - Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)

Véspera de viagem, campainha...
Não me sobreavisem estridentemente!

Quero gozar o repouso da gare da alma que tenho
Antes de ver avançar para mim a chegada de ferro
Do comboio definitivo,
Antes de sentir a partida verdadeira nas goelas do estômago,
Antes de pôr no estribo um pé
Que nunca aprendeu a não ter emoção sempre que teve que partir.
Quero, neste momento, fumando no apeadeiro de hoje,
Estar ainda um bocado agarrado à velha vida.
Vida inútil, que era melhor deixar, que é uma cela?
Que importa?
Todo o Universo é uma cela,
e o estar preso não tem que ver com o tamanho da cela.

Sabe-me a náusea próxima o cigarro.
O comboio já partiu da outra estação...
Adeus, adeus, adeus, toda a gente que não veio despedir-se de mim,
Minha família abstrata e impossível...
Adeus dia de hoje, adeus apeadeiro de hoje, adeus vida, adeus vida!
Ficar como um volume rotulado esquecido,
Ao canto do resguardo de passageiros do outro lado da linha.
Ser encontrado pelo guarda casual depois da partida -
«E esta? Então não houve um tipo que deixou isto aqui?» -
Ficar só a pensar em partir,
Ficar e ter razão,
Ficar e morrer menos ...

Vou para o futuro como para um exame difícil.
Se o comboio nunca chegasse e Deus tivesse pena de mim?

Já me vejo na estação até aqui simples metáfora.
Sou uma pessoa perfeitamente apresentável.
Vê-se -dizem- que tenho vivido no estrangeiro.

Os meus modos são de homem educado, evidentemente.
Pego na mala, rejeitando o moço, como a um vício vil.
E a mão com que pego na mala treme-me e a ela.

Partir!
Nunca voltarei,
Nunca voltarei porque nunca se volta.
O lugar a que se volta é sempre outro,
A gare a que se volta é outra.
Já não está a mesma gente, nem a mesma luz, nem a mesma filosofia.

Partir! Meu Deus, partir! Tenho medo de partir!...

Anoitecer - Helena Kolody

Amiúdam-se as partidas...
Também morremos um pouco
no amargor das despedidas.

Cais deserto, anoitecemos
enluarados de ausência.

Do meu amor perfeito - David Mourão-Ferreira


Do meu amor perfeito, flor ausente,
não lembro o rosto nem a voz:

lembro a fadiga sorridente
que havia, ao fim, em cada um de nós.

Sesta Antiga - Mário Quintana

A ruazinha lagarteando ao sol.
O coreto de música deserto
Aumenta ainda mais o silêncio.
Nem um cachorro.
Este poeminho,
Brotando áspero e quebradiço
é a única coisa do mundo.

Paulo Leminski

aqui

nesta pedra

alguém sentou
olhando o mar

o mar
não parou
pra ser olhado

foi mar
pra tudo quanto é lado

Caminhos - Francisco Bugalho

Para quê, caminhos do mundo,
Me atraís? — Se eu sei bem já
Que voltarei donde parto,
Por qualquer lado que vá.

Pra quê? — Se a Terra é redonda;
E, sempre, tem de cumprir-se
A sina daquela onda
Que parece vai sumir-se,

Mas que volta, bem mais débil,
Ao meio do lago, onde
A mãe, gota d'água flébil,
Há muito tempo se esconde.

Pra quê? — Se a folha viçosa
Na Primavera, feliz,
Amanhã será, gostosa,
Alimento da raiz.

Pra quê, caminhos do mundo?
Pra quê, andanças sem Fim?
Se todo o sonho profundo
Deste Mundo e do Outro-Mundo,
Não 'stá neles, mas em mim.

Amanhecer - Guimarães Rosa



Floresce, na orilha da campina,
esguio ipê
de copa metálica e esterlina.

Das mil corolas,
saem vespas,abelhas e besouros,
polvilhados de ouro,
a enxamear no leste,onde vão pousando
nas piritas que piscam nas ladeiras,
e no riso das acácias amarelas.

Dos charcos frios
sobem a caçá-los redes longas,
lentas e rasgadas de neblina.
Nuvens deslizam,despetaladas,
e altas, altas,
garças brancas planam.

Dançam fadas alvas,
cantam almas aladas,
na taça ampla,
na prata lavada,
na jarra clara da manhã...