Amai-vos... - Gibran Kahlil Gibran

Amai-vos um ao outro,
mas não façais do amor um grilhão.
Que haja, antes, um mar ondulante
entre as praias de vossa alma.
Enchei a taça um do outro,
mas não bebais da mesma taça.
Dai do vosso pão um ao outro,
mas não comais do mesmo pedaço.
Cantai e dançai juntos,
e sede alegres,
mas deixai
cada um de vós estar sozinho.
Assim como as cordas da lira
são separadas e,
no entanto,
vibram na mesma harmonia.
Dai vosso coração,
mas não o confieis à guarda um do outro.
Pois somente a mão da Vida
pode conter vosso coração.
E vivei juntos,
mas não vos aconchegueis demasiadamente.

Pois as colunas do templo
erguem-se separadamente.
E o carvalho e o cipreste
não crescem à sombra um do outro.

Nádia Dantas

Lembranças de minha infãncia
jabuticabas no pé
me lambuzavam de vida.

Ar de Noturno - Garcia Lorca

Tenho muito medo
das folhas mortas,
medo dos prados
cheios de orvalho.
eu vou dormir;
se não me despertas,
deixarei a teu lado meu coração frio.
O que é isso que soa
bem longe?
Amor. O vento nas vidraças,
amor meu!

Pus em ti colares
com gemas de aurora.
Por que me abandonas
neste caminho ?
Se vais muito longe,
meu pássaro chora
e a verde vinha
não dará seu vinho.
O que é isso que soa
bem longe?
Amor. O vento nas vidraças,
amor meu!
Nunca saberás,
esfinge de neve,
o muito que eu
haveria de te querer
essas madrugadas
quando chove
e no ramo seco
se desfaz o ninho.

O que é isso que soa
bem longe?
Amor. O vento nas vidraças,
amor meu!

Era - Ameno

Do vale à montanha - Fernando Pessoa

Do vale à montanha,
Da montanha ao monte, cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por casas, por prados,
Por Quinta e por fonte,
Caminhais aliados.
Do vale à montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por penhascos pretos,
Atrás e defronte,
Caminhais secretos.
Do vale à montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por quanto é sem fim,
Sem ninguém que o conte,
Caminhais em mim.

Judeu errante - Vinícius de Moraes

Hei de seguir eternamente a estrada
Que há tanto tempo venho já seguindo
Sem me importar com a noite que vem vindo
Como uma pavorosa alma penada
Sem fé na redenção, sem crença em nada
Fugitivo que a dor vem perseguindo
Busco eu também a paz onde, sorrindo
Será também minha alma uma alvorada
Onde é ela? Talvez nem mesmo exista...
Ninguém sabe onde fica... Certo, dista
Muitas e muitas léguas de caminho...
Não importa. O que importa é ir em fora
Pela ilusão de procurar a aurora
Sofrendo a dor de caminhar sozinho.

Canção tonta - Federico Garcia Lorca

Mama.
Eu quero ser de prata.
Filho,
Terás muito frio.
Mama,
eu quero ser de água.
Filho,
Terás muito frio.
Mama.
Borda-me em teu travesseiro.
Isso sim!
Agora mesmo!

Mostrador - Cassiano Ricardo

O ponteiro grande
dá volta ao mundo
de hora em hora;
já o pequeno, não.
Parece-nos parado.
Parado entre o futuro
e o tempo ido.
Irmãos do desencontro:
Um, o ponteiro
da esperança, o outro
o do olvido.

O ponteiro grande
gorjeia de hora em hora.
O pequeno é silente:
Todas as coisas
que caminham pra não
voltar, caminham
assim: Imóvelmente.

Horizonte. Atributo
do último minuto.

Os Relógios - Roseana Murray

Um amigo pode salvar o mundo
A rota perdida de um sonho
Com seus gestos bailarinos
Mãos de ungüento e unicórnio

Um amigo pode atravessar a pele
A dura estrada da pele
Dura como um carvalho
E tocar de leve na alma
Como se toca uma planta rara
Como se toca o inesperado
No meio do vale
Um amigo pode parar os relógios
Na hora do medo.

No mesmo dia de sempre - Geraldo Carneiro

No mesmo dia de sempre
a mesma hora marcada
do mesmo lado da rua
o cheiro da madrugada

eu vi a lua vazia
numa vitrine apagada
do outro lado da rua
sentado sobre a calçada

os bares quietos da vida
essa cidade cansada
e esse encontro perdido
essa tristeza danada

retomo o rumo de casa
na noite desconsolada
você não sabe de tudo
você não sabe de nada.

Enya - In the rain

Parolagem da Vida - Carlos Drummond Andrade


Como a vida muda.
Como a vida é muda.
Como a vida é nula.
Como a vida é nada.
Como a vida é tudo.
Tudo que se perde
mesmo sem ter ganho.


Como a vida é senha
de outra vida nova
que envelhece antes
de romper o novo.
Como a vida é outra
sempre outra, outra
não a que é vivida.
Como a vida é vida
ainda quando morte
esculpida em vida.


Como a vida é forte
em suas algemas.
Como dói a vida
quando tira a veste
de prata celeste.
Como a vida é isto
misturado àquilo.

Como a vida é bela
sendo uma pantera
de garra quebrada.
Como a vida é louca
estúpida, mouca
e no entanto chama
a torrar-se em chama.


Como a vida chora
de saber que é vida
e nunca nunca nunca
leva a sério o homem,
esse lobisomem.
Como a vida ri
a cada manhã
de seu próprio absurdo
e a cada momento
dá de novo a todos
uma prenda estranha.


Como a vida joga
de paz e de guerra
povoando a terra
de leis e fantasmas.
Como a vida toca
seu gasto realejo
fazendo da valsa
um puro Vivaldi.
Como a vida vale
mais que a própria vida
sempre renascida
em flor e formiga
em seixo rolado
peito desolado
coração amante.

E como se salva
a uma só palavra
escrita no sangue
desde o nascimento:
amor, vidamor!


Convite - Lya Luft

Não sou a areia
onde se desenha um par de asas
ou grades diante de uma janela.
Não sou apenas a pedra que rola
nas marés do mundo,
em cada praia renascendo outra.
Sou a orelha encostada na concha
da vida, sou construção e desmoronamento,
servo e senhor, e sou
mistério.

A quatro mãos escrevemos este roteiro
para o palco de meu tempo:
o meu destino e eu.
Nem sempre estamos afinados,
nem sempre nos levamos
a sério.

Venham enfim - José Saramago

Venham enfim as altas alegrias,
As ardentes auroras, as noites calmas,
Venha a paz desejada, as harmonias,
E o resgate do fruto, e a flor das almas.
Que venham, meu amor, porque estes dias
São de morte cansada,
De raiva e agonias
E nada.

Que nenhuma estrela - Sophia de Mello B. Andresen


Que nenhuma estrela queime o teu perfil
Que nenhum deus se lembre do teu nome
Que nem o vento passe onde tu passas.

Para ti criarei um dia puro
Livre como o vento e repetido
Como o florir das ondas ordenadas.

Epigrama nº 4 - Cecília Meireles

O choro vem perto dos olhos
para que a dor transborde e caia.
O choro vem quase chorando
como a onda que toca na praia.

Descem dos céus ordens augustas
e o mar chama a onda para o centro.
O choro foge sem vestígios,
mas levando náufragos dentro.

O vento na ilha - Pablo Neruda

O vento é um cavalo
Ouça como ele corre, pelo mar, pelo céu.

Quer levar-me.

Escuta como percorre o mundo para me levar bem longe.

Esconde-me em teus braços por esta noite só,
enquanto a chuva abre contra o mar e a terra suas incontáveis bocas.

Escuta como o vento me chama galopando para me levar bem longe

Com teu peito em meu peito,
com tua boca em minha boca,
nossos corpos atados ao amor que nos queima.

Deixa que o vento passe sem que possa levar-me.

Deixa que o vento corra coroado de espuma,
que me chame e me busque, galopando nas sombras
enquanto eu, submerso, debaixo de teus grandes olhos,
por esta noite só, descansarei meu amor.

Meu Deus, me dê a coragem - Clarice Lispector

Meu Deus, me dê a coragem
de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites,
todos vazios de Tua presença.
Me dê a coragem de considerar esse vazio
como uma plenitude.
Faça com que eu seja a Tua amante humilde,
entrelaçada a Ti em êxtase.
Faça com que eu possa falar
com este vazio tremendo
e receber como resposta
o amor materno que nutre e embala.
Faça com que eu tenha a coragem de Te amar,
sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo.
Faça com que a solidão não me destrua.
Faça com que minha solidão me sirva de companhia.
Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar.
Faça com que eu saiba ficar com o nada
e mesmo assim me sentir
como se estivesse plena de tudo.
Receba em teus braços
o meu pecado de pensar.