A tempestade - Lêdo Ivo



Para que os cajueiros possam florir caiu esta chuva
que apagou as estrelas e encharcou os caminhos.
Água e vento derrubaram as cancelas antigas,
quebraram telhas, vergaram árvores, suprimiram cercas,
desalojaram abelhas e marimbondos,
enxotaram os pássaros predatórios,
e o galinheiro é um cemitério de pintos amarelos.

Este é o regimento do mundo: relâmpagos e raios
antes da flor e do fruto.

Espumas do Mar - Joaquim Cardozo



Cavalos ligeiros
De eriçadas crinas
Por que sobre as ondas
Passais sem parar?
Vencendo procelas,
Ressacas em flor,
Num fulgor de estrelas
A poeira das águas
Fazeis levantar.

Espumas do mar.

Nas serenas curvas
Da carne marinha
Há sopros, há fugas
De véus a ondular;
Vestidos de rendas...
Vestidos, mortalhas
De noivas morenas
Que em noites de lua
Virão se afogar.

Virão se afogar.

Se há fomes noturnas
Mordendo e chorando,
Lívidas, remotas
Fúrias soltas no ar,
Que os lábios do vento
Se abrindo devorem
A flor de farinha
Que as vagas maiores
Irão derramar.

Espumas do mar.

Nesse fogo verde
De cinza tão branca
Que se apure um mel

De brilho sem par;
Turbinas, moendas
No giro girando
E o açúcar nascendo
Na folha das ondas
Constante a rolar.

Constante a rolar.

Sobre os seios mansos
Das baías claras
Em puro abandono
Não hei de ficar;
Saudades das ilhas,
Amor dos navios,
Segredo das águas
Nas barras dos rios
Irei desvendar.

Espumas do mar.

Em mares incertos
Irei navegar;
E direi louvores
Às velas latinas
Por bem velejar;
Louvores direi
Aos lírios de sal
E às vozes dos búzios
Que sabem cantar.

Que sabem cantar.

Teu rosto esqueci,
Teus olhos? Não sei...
Da face marcada
O espelho quebrei
De muito sonhar;
Nos laços retidos
Das águas profundas
Tesouros perdidos
Quem há de encontrar?
Espumas do mar.

Nádia Dantas

no farol da noite
olhinhos assustados
e infância esquecida

Camalotes - Raquel Naveira

Na cheia
Os camalotes bóiam,
Estufados corpos aquáticos
Que a correnteza leva;
Conjunto de leques duros,
Verdes,
Que se dissolvem no silêncio;
Aqui e ali um buquê de flores
Arrebenta lilás;
A malha fina de raízes
Apanha peixes,
Escamas,
Pés delicados de pássaros que pousam;
A canoa de folhas
Navega sem leme
Rumo à foz,
À pedra,
Ao mar que espreme
E espuma.

Myrra Malmberg - How Insensitive

Quando te vi amei-te já muito antes - Fernando Pessoa



Quando te vi amei-te já muito antes:
Tornei a achar-te quando te encontrei.
Nasci pra ti antes de haver o mundo.
Não há cousa feliz ou hora alegre
Que eu tenha tido pela vida fora,
Que o não fosse porque te previa,
Porque dormias nela tu futuro.

E eu soube-o só depois, quando te vi,
E tive para mim melhor sentido,
E o meu passado foi como uma 'strada
Iluminada pela frente, quando
O carro com lanternas vira a curva
Do caminho e já a noite é toda humana.

Quando eu era pequena, sinto que eu
Amava-te já longe, mas de longe...

Amor, diz qualquer cousa que eu te sinta!
— Compreendo-te tanto que não sinto,
Oh coração exterior ao meu!
Fatalidade, filha do destino
E das leis que há no fundo deste mundo!
Que és tu a mim que eu compreenda ao ponto
De o sentir...?

Evelyn - Cecília Meireles



Não te acabarás, Evelyn.

As rochas que te viram são negras, entre espumas finas;
sobre elas giram lisas gaivotas delicadas,
e ao longe as águas verdes revolvem seus jardins de vidro.

Não te acabarás, Evelyn.

Guardei o vento que tocava
a harpa dos teus cabelos verticais,
e teus olhos estão aqui, e são conchas brancas,
docemente fechados, como se vê nas estátuas.

Guardei teu lábio de coral róseo
e teus dedos de coral branco.
E estás para sempre, como naquele dia,
comendo, vagarosa, fibras elásticas de crustáceos,
mirando a tarde e o silêncio
e a espuma que te orvalhava os pés.

Não te acabarás, Evelyn.

Eu te farei aparecer entre as escarpas,
sereia serena,
e os que te viram procurarão por ti
que eras tão bela e nem falaste.

Evelyn! – disseram-me,
apontando-te entre as barcas.
E eras igual a meu destino:

Evelyn – entre a água e o céu.
Evelyn – entre a água e a terra.
Evelyn – sozinha –
entre os homens e Deus.

Cessa o teu canto! Fernando Pessoa



Cessa o teu canto!
Cessa, que, enquanto
O ouvi, ouvia
Uma outra voz
Com que vindo
Nos interstícios
Do brando encanto
Com que o teu canto
Vinha até nós.

Ouvi-te e ouvi-a
No mesmo tempo
E diferentes
Juntas cantar.
E a melodia
Que não havia.
Se agora a lembro,
Faz-me chorar.

Foi tua voz
Encantamento
Que, sem querer,
Nesse momento,
Vago acordou
Um ser qualquer
Alheio a nós
Que nos falou?

Não sei. Não cantes!
Deixa-me ouvir
Qual o silêncio
Que há a seguir
A tu cantares!

Ah, nada, nada!
Só os pesares
De ter ouvido
De ter querido
Ouvir para além
Do que é o sentido
Que uma voz tem.

Que anjo, ao ergueres
A tua voz,
Sem o saberes
Veio baixar
Sobre esta terra
Onde a alma erra
E com as asas
Soprou as brasas
De ignoto lar?

Não cantes mais!
Quero o silêncio
Para dormir
Qualquer memória
Da voz ouvida,
Desentendida,
Que foi perdida
Por eu a ouvir...

H. Villa-Lobos - Bachiana Brasileira n°4 Prelude - Eduardo Lopes

Adeus! - Alfonsina Storni

As coisas que morrem jamais ressuscitam,
as coisas que morrem não voltam jamais.
Quebram-se os vasos e o vidro que resta
é pó para sempre e por sempre será!

Quando os botões despencam dos ramos
duas vezes seguidas não florecerão…
As flores mutiladas pelo vento ímpio
se esvaem para sempre, jamais voltarão!

Os dias acabados, os dias perdidos,
os dias inertes não mais tornarão!
Que tristes as horas que se debulharam
sob os ásperos golpes da solidão!

Que tristes as sombras, as sombras nefastas,
as sombras criadas por nossa maldade!
Oh, as coisas idas, as coisas murchadas,
as coisas celestes que nos abandonam!

Coração… silencia!… Cobre-te de chagas!…
De chagas infectas? Cobre-te de mal!…
Que tudo o que chegue faleça ao tocar-te,
coração maldito que inquietas minha ânsia!

Adeus para sempre, ó delícias todas!
Adeus alegria plena de bondade!
Oh, as coisas mortas, as coisas murchadas,
as coisas celestes que não voltam mais!...

HAIKAI - Alexandre Brito



voo de borboleta
do mundo das coisas
pro mundo das letras


Sol... e Chuva... J.G.de Araujo Jorge

Gosto desses dias molhados, de chuva miúda, de chuva fina
chuva boa,
de névoa, de garoa,
em que a gente não sente a obrigação de ser feliz,
e fica em si mesmo à-toa...

Basta a gente ficar onde está, nada mais, é tudo que se quer,
vendo a chuva cair, a chuva caindo,
ficar sentado, acomodado, num lugar qualquer
ouvindo o rumor da chuva, ouvindo.
ouvindo.

Dias que não pedem nada, que não exigem nada, que não incomodam,
em que a gente fica em casa, sem necessidade
de companhia, de ter alguém,
basta essa sensação que agora é minha...
Oh, a paz, essa felicidade impessoal, perfeita
que consegue ser feliz sozinha...

( Como doem certos dias de sol, de tanta alegria!)
Dias exigentes que gritam por felicidade, que reclamam vida e emoção
e que encontram às vezes a gente tão só
no meio de tanta gente,
tão só e desprevenido
sem saber que fazer - meu Deus! - do coração!

Dias de sol que derrubam a gente,
que maltratam a gente, passam por cima,
da gente
sem piedade,
tontos, deslumbrados,
e se vão a cantar uma felicidade
por todos os lados,
uma felicidade de bola de cristal, inexistente,
sem ver que ficamos no chão, como indigentes
abandonados...

Ah! gosto desses dias assim, de olhos embaciados, cinzentos,
de chuvinha mansa, de chuvinha boa,
que não perturbam o coração
que descansam a vista;
que, no máximo, esperam que a gente se sinta bem,
e nos deixam em paz, sem nada, nem ninguém,
- só isto!

Nesses dias, humilde e só, um pouco egoísta
talvez,
- existo...


Filosofia - Guilherme de Almeida

Lutar? Para quê?
De que vive a rosa? Em que
Pensa? Faz o quê?

Chamar Pássaros - Dora Ferreira da Silva



Chamar pássaros com o alpiste
de amá-los. Eles pousam nos parapeitos. Nem
sombra de medo nessa aproximação.
Quase me sinto gêmea do que são parados
à beira da janela ou saltando no telhado
recém-chegados.
A cordialidade dos pássaros é
sutil:
afloram o coração de quem os ama.

Europa, França e Bahia - Carlos Drummond de Andrade

Meus olhos brasileiros sonhando exotismos.
Paris. A torre Eiffel alastrada de antenas como um caranguejo.
Os cais bolorentos de livros judeus
e a água suja do Sena escorrendo sabedoria.

O pulo da Mancha num segundo.
Meus olhos espiam olhos ingleses vigilantes nas docas.
Tarifas bancos fábricas trustes craques.
Milhões de dorsos agachados em colônias longínquas formam um tapete
para Sua Graciosa Majestade Britânica pisar.
E a lua de Londres como um remorso.

Submarinos inúteis retalham mares vencidos.
O navio alemão cauteloso exporta dolicocéfalos arruinados.
Hamburgo, embigo do mundo.
Homens de cabeça rachada cismam em rachar a cabeça dos outros
dentro de alguns anos.
A Itália explora conscientemente vulcões apagados,
vulcões que nunca estiveram acesos
a não ser na cabeça de Mussolini.
E a Suiça cândida se oferece
numa coleção de postais de altitudes altíssimas.

Meus olhos brasileiros se enjoam da Europa.

Não há mais Turquia.
O impossível dos serralhos esfacela erotismos prestes a declanchar.
Mas a Rússia tem as cores da vida.
A Rússia é vermelha e branca.
Sujeitos com um brilho esquisito nos olhos criam o filme bolchevista
e no túmulo de Lenin em Moscou parece que um coração enorme
está batendo, batendo mas não bate igual ao da gente...

Chega!
Meus olhos brasileiros se fecham saudosos.
Minha boca procura a "Canção do exílio".
Como era mesmo a "Canção do exílio"?
Eu tão esquecido de minha terra...
Ai terra que tem palmeiras
onde canta o sabiá.

Cotovia - Manuel Bandeira

— Alô, cotovia!
Aonde voaste,
Por onde andaste,
Que saudades me deixaste?

— Andei onde deu o vento.
Onde foi meu pensamento
Em sítios, que nunca viste,
De um país que não existe . . .
Voltei, te trouxe a alegria.

— Muito contas, cotovia!
E que outras terras distantes
Visitaste? Dize ao triste.

— Líbia ardente, Cítia fria,
Europa, França, Bahia . . .

— E esqueceste Pernambuco,
Distraída?

— Voei ao Recife, no Cais
Pousei na Rua da Aurora.

— Aurora da minha vida
Que os anos não trazem mais!

— Os anos não, nem os dias,
Que isso cabe às cotovias.
Meu bico é bem pequenino
Para o bem que é deste mundo:
Se enche com uma gota de água.
Mas sei torcer o destino,
Sei no espaço de um segundo
Limpar o pesar mais fundo.
Voei ao Recife, e dos longes
Das distâncias, aonde alcança
Só a asa da cotovia,
— Do mais remoto e perempto
Dos teus dias de criança
Te trouxe a extinta esperança,
Trouxe a perdida alegria.

Zélia Duncan - Nos lençóis desse reggae

A dona contrariada - Cecília Meireles

Ela estava ali sentada,
do lado que faz sol-posto,
com a cabeça curvada,
um véu de sombra no rosto.
Suas mãos indo e voltando
por sobre a tapeçaria
paravam de vez em quando:
e então, acabava o dia.

Seu vestido era de linho,
cor da lua nas areias.
Em seus lábios cor de vinho
dormia a voz das sereias.
Ela bordava, cantando.
E a sua canção dizia
a história que ia ficando
por sobre a tapeçaria.

Veio um pássaro da altura
e a sombra pousou no pano,
como no mar da ventura
a vela do desengano.
Ela parou de cantar,
desfez a sombra com a mão,
depois, seguiu a bordar
na tela a sua canção.

Vieram os ventos do oceano,
roubadores de navios,
e desmancharam-lhe o pano,
remexendo-lhe nos fios.
Ela pôs as mãos por cima,
tudo compôs outra vez:
a canção pousou na rima,
e o bordado assim se fez.

Vieram as nuvens turvá-la.
Recomeçou de cantar.
No timbre da sua fala
havia um rumor de mar.
O sol dormia no fundo:
fez-se a voz, ele acordou.
Subiu para o alto do mundo.
E ela, cantando, bordou.

A fonte - Sophia de Mello B. Andresen

Com voz nascente a fonte nos convida
A renascermos incessantemente
Na luz do antigo sol nu e recente
E no sussurro da noite primitiva.