Janelas - Roseana Murray


Em todas as janelas me debruço,
em todos os abismos
estendo uma corda
e caminho sobre o nada.
Também ando sobre as águas,
subo em nuvens,
galgo intermináveis escadas.
Abro todas as portas
e cavernas com um sopro
ou três palavras mágicas.
Mergulho em torvelinhos,
danço no meio do vento,
pulo dentro da tempestade.
Em cada encruzilhada me sento
e tento arrumar o destino,
estranho castelo de areia.


O Arco - Carlos Drummond de Andrade


Que quer o anjo? Chamá-la
O que quer a alma? perder-se
Perder-se em rudes guianas
para jamais encontrar-se.

Que quer a voz? encantá-lo.
Que quer o ouvido? Embeber-se
de gritos blasfematórios
até que dar aturdido.

Que quer a nuvem? raptá-lo,
Que quer o corpo? solver-se,
delir memória de vida
e quanto seja memória.

Que quer a paixão? detê-lo.
Que quer o peito? fechar-se
contra os poderes do mundo
para na treva fundir-se.

Que quer a canção? erguer-se
em arco sobre os abismos.
Que quer o homem? salvar-se,
ao permeio de uma canção.


Encontro inesperado - Wisława Szymborska


Nós nos tratamos com extrema cortesia,
dizemos: quanto tempo, que bom revê-lo.
Nossos tigres bebem leite.
Nossos falcões preferem o chão.
Nossos tubarões se afogam no mar.
Nossos lobos bocejam diante da jaula aberta.
Nossas cobras perderam seu lampejo,
nossos macacos, sua graça; nossos pavões, suas plumas.
Faz tempo que os morcegos deixaram nossos cabelos.
Caímos em silêncio no meio da conversa,
e não há sorriso que nos salve.
Nossos humanos
não sabem falar uns com os outros.


Poema infinitivo - Fernando Py


Valorizar toda manhã de sol
como se a derradeira fosse.

Toda manhã de sol sobre a verdura
como se nunca mais houvesse.

Sentir que a vida é ainda boa e amiga
feito na antiga meninice.

E não temer a morte soberana
que se engalana para o enlace.


a poesia dói dentro de mim - Vera Lúcia de Oliveira


A poesia dói dentro de mim
como quando meu pai podava a parreira
eu ia vendo caírem
as folhas
eu ia vendo caírem
as folhas
e ninguém sabia
como os ramos derramavam os sons
dolorosos


Viver - Carlos Drummond de Andrade


Mas era apenas isso,
era isso, mais nada?
Era só a batida
numa porta fechada?

E ninguém respondendo,
nenhum gesto de abrir:
era, sem fechadura,
uma chave perdida?

Isso, ou menos que isso,
uma noção de porta,
o projeto de abri-la
sem haver outro lado?

O projeto de escuta
à procura de som?
O responder que oferta
o dom de uma recusa?

Como viver o mundo
em termos de esperança?
E que palavra é essa
que a vida não alcança?

Almas paralelas - Augusto de Lima

Alma irmã de minha alma, espelho vivo
de outro espelho fio que te retrata,
alma de luz serena e intemerata,
cujo influxo de amor me tem cativo!

Bem sinto, que em mim vives e em ti vivo;
no entanto (e eis o desgosto que me mata!),
do amor a doce vaga me arrebata
e não posso atingir teu vulto esquivo.

O mesmo curso têm nossos destinos
do gozo o mel, da dor os desatinos
a um nada inspiram, sem que ao outro inspirem.

Mas, triste sorte! Ó bela entre as mais belas!
Eles são como duas paralelas:
– Próximos correm, sem jamais se unirem!...


Despedida - Hilda Hilst

Isso de mim que anseia despedida
(Para perpetuar o que está sendo)
Não tem nome de amor. Nem é celeste
Ou terreno. Isso de mim é marulhoso 
E tenro. Dançarino também. Isso de mim
É novo: Como quem come o que nada contém.
A impossível oquidão de um ovo.
Como se um tigre
Reversivo,
Veemente de seu avesso
Cantasse mansamente.

Não tem nome de amor. Nem se parece a mim.
Como pode ser isto? Ser tenro, marulhoso
Dançarino e novo, ter nome de ninguém
E preferir ausência e desconforto
Para guardar no eterno o coração do outro.


Snow Patrol - Chasing Cars

Ele sabe - Humberto Ak'abal


O vento não pode
interromper um sonho.

A noite se ilumina
para o pensamento.

Eu moro aqui
mas penso acolá.

E meu povo sabe disso.


Descobrimento - Líria Porto


a infância é um barquinho
a transportar nossos sonhos
da enxurrada até o rio

a juventude um caiaque
a descer as correntezas
sem pensar em desembarque

a velhice é caravela
terra à vista


Trapézio - Roseana Murray


Meu corpo oscila
entre céu e a Terra,
a noite e o dia
o mar e o deserto.

Como se num trapézio
pendurado sobre o tempo,
meu corpo oscila,
toma impulso,
e num salto
mergulha sobre a vida.


Então é você – Alice Ruiz


Então é você
que bem antes de mim
diz o que eu queria dizer
tão bem quanto eu diria.
E quem diria?
ainda melhor

Acho que teu nome é poesia
e por isso todos te chamam

Então é você
tua simples presença
preenche a minha existência
me faz ver o que eu não via.
E quem diria?
ainda melhor

Acho que teu nome é vida
e por isso todos te querem

Então é você
que quando fala
instala a compreensão
de tudo que eu seria.
E quem diria?
Ainda melhor

Acho que teu nome é amor
e por isso todos te amam

E quando todos te chamam
quem sou eu pra não chamar?

E quando todos te querem
quem sou eu pra não querer?

E porque todos te amam
“eu sei que vou te amar" ...




Poema de Natal - Vinícius de Moraes


Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.

Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.

Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.

Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.


O Mistério das Cousas - Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)


O mistério das cousas, onde está ele?
Onde está ele que não aparece
Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?
Que sabe o rio disso e que sabe a árvore?
E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso?
Sempre que olho para as cousas
E penso no que os homens pensam delas,
Rio como um regato que soa fresco numa pedra.
Porque o único sentido oculto das cousas
É elas não terem sentido oculto nenhum,
É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as cousas sejam realmente o que parecem ser
E não haja nada que compreender.

Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: —
As cousas não têm significação: têm existência.
As cousas são o único sentido oculto das cousas.


Por trás - Vera Lúcia de Oliveira

por trás do olho
sustar é perigoso

por trás do olho
respira sempre um outro
olho suspeitoso
palpar por dentro é vão
por onde um novo olho sobreposto
espreita o mesmo vão


Apontamentos - Manoel de Barros

Deixei uma ave me amanhecer.
Toda vez que a manhã está sendo começada nos
meus olhos, é assim...

Essa luz empoçada em avencas.

As avencas são cegas.
Nenhuma flor protege o silêncio quanto elas.

Ó a luz da manhã empoçada em avencas!

Sabiá de setembro tem orvalho na voz.
De manhã ele recita o sol.

Quando eu nasci
o silêncio foi aumentado.
Meu pai sempre entendeu
Que eu era torto
Mas sempre me aprumou.
Passei anos me procurando por lugares nenhuns.
Até que não me achei - e fui salvo.
Às vezes caminhava como se fosse um bulbo.

Agora estou sonhado de glicínias.

Não sei bem de que cor é a cor do amaranto.
Mas pelo amar e pelo canto
fica bem esse amaranto aí
(melhor do que se eu usasse perpétua,
que é o outro nome que se põe a essa
flor).
Amaranto murmura melhor.

Achei entre os pertences de Bernardo um vaso
de colher chuvas, um cachimbo
e um rosto de inseto dependurado na calça.
Bernardo tem fé quase assim de molusco.
Para saber dos passarinhos só precisa de suas
ignorâncias.

A voz de um passarinho me recita.

Os morros se andorinham longemente...
Eu me horizonto.
Eu sou o horizonte dessas garças.


Depois que atravessarem o muro e a tarde
os caracóis cessarão.
Às vezes cessam ao meio.
Cessam de repente, porque lhes acaba por
dentro a gosma com que sagram os seus
caminhos.
Vêm os meninos e os arrancam da parede
ocos
E com formigas por dentro passeando em seus
restos de carne.
Essas formigas são indóceis de ocos.
Ah, como serão ardentes nos caracóis os desejos
de voar!


P.S.: Caracol é uma solidão que anda na parede.


Mundo imaginário - Emílio Moura


Sob o olhar desta tarde,
quantas horas revivem
e morrem
de uma nova agonia? Velhas feridas se abrem,
de novo somos julgados, o que era tudo some-se
e num mundo fechado outras vigílias doem.

A noite se organiza e, no entanto, ainda restam
certas luzes ao longe. Ah, como encher com elas
este ser já não-ser que se dissolve e deixa
vagos traços na tarde?


Covardia - Helena Kolody


Meus olhos perscrutaram a extensão desconhecida
Da senda acidentada e inquietadora:
Era tão estranha, tão sinuosa
A estrada da vida!

Meus pés sentiram um medo misterioso
De palmilhar o mais antigo dos caminhos:
Medo do pó, medo das pedras, medo dos espinhos,
Receio daquelas sombras estranhas
Que subiam dos abismos e desciam das montanhas.

Covarde, circundei minh’alma de penumbra.

Encontrei mãos que se estenderam, tão amigas,
Oferecendo amparo certo na jornada.
Eu, porém, não confiei no auxilio de outra mão.

E fiquei isolada, fiquei esquecida
À margem do agitado caminho da vida.


Descrição - Cecília Meireles


Há uma água clara que cai sobre pedras escuras
e que, só pelo som, deixa ver como é fria.

Há uma noite por onde passam grandes estrelas puras.
Há um pensamento esperando que se forme uma alegria.


Há um gesto acorrentado e uma voz sem coragem,
e um amor que não sabe onde é que anda o seu dia.

E a água cai, refletindo estrelas, céu, folhagem...
Cai para sempre!

E duas mãos nela mergulham com tristeza,
deixando um esplendor sobre a sua passagem.

(Porque existe um esplendor e uma inútil beleza
nessas mãos que desenham dentro da água sua viagem
para fora da natureza,

onde não chegará nunca esta água imprecisa,
que nasce e desliza, que nasce e desliza...)