Depois de tudo - Cassiano Ricardo


Mas tudo passou tão depressa
Não consigo dormir agora.

Nunca o silêncio gritou tanto
Nas ruas da minha memória.

Como agarrar líquido o tempo
Que pelos vãos dos dedos flui?

Meu coração é hoje um pássaro
Pousado na árvore que eu fui.


Eis-me - Sophia de Mello Breyner Andresen


Eis-me
Tendo-me despido de todos os meus mantos
Tendo-me separado de adivinhos mágicos e deuses
Para ficar sozinha ante o silêncio
Ante o silêncio e o esplendor da tua face.

Mas tu és de todos os ausentes o ausente
Nem o teu ombro me apoia nem a tua mão me toca
O meu coração desce as escadas do tempo em que não moras
E o teu encontro
São planícies e planícies de silêncio.

Escura é a noite
Escura e transparente
Mas o teu rosto está para além do tempo opaco
E eu não habito os jardins do teu silêncio
Porque tu és de todos os ausentes o ausente.


Igual - Desigual / Carlos Drummond de Andrade


Eu desconfiava:
todas as histórias em quadrinho são iguais.
Todos os filmes norte-americanos são iguais.
Todos os filmes de todos os países são iguais.
Todos os best-sellers são iguais.
Todos os campeonatos nacionais 
e internacionais de futebol 
são iguais.
Todos os partidos políticos
são iguais.
Todas as mulheres que andam na moda
são iguais.
Todas as experiências de sexo
são iguais.
Todos os sonetos, gazéis, virelais,
sextinas e rondós são iguais
e todos, todos
os poemas em versos livres são enfadonhamente iguais.

Todas as guerras do mundo são iguais.
Todas as fomes são iguais.
Todos os amores, iguais iguais iguais.
Iguais todos os rompimentos.
A morte é igualíssima.
Todas as criações da natureza são iguais.
Todas as ações, cruéis, piedosas ou indiferentes, são iguais.
Contudo, o homem não é igual a nenhum outro homem,
bicho ou coisa.
Não é igual a nada.
Todo ser humano
é um estranho ímpar.


Estrela brilhante - John Keats


Estrela brilhante! 
Gostaria de ser fixa como tu és –
Não em um solitário esplendor como agora,
Velando como estás, com grandes pálpebras,
As águas movimentadas em torno das praias humanas,
Como um austero eremita da Natureza.
Ou contemplando a agradável máscara da neve 
por sobre as Montanhas e os Pântanos.
Não – Quieta, imutável como sempre,
Parada sobre o seio maduro de minha amada,
Para que eu sinta eternamente seu calmo respirar,
E acorde um dia numa doce inquietação.
Quieta, fixa, para que eu ouça sua terna e calma respiração,
E assim viva para sempre, ou desfaleça na morte.




Poema da desintoxação - João Cabral de Melo Neto

Em densas noites
com medo de tudo:
de um anjo que é cego
de um anjo que é mudo.
Raízes de árvores
enlaçam-me os sonhos
no ar sem aves
vagando tristonhos.
Eu penso o poema
da face sonhada,
metade de flor
metade apagada.
O poema inquieta
o papel e a sala.
Ante a face sonhada
o vazio se cala.
Ó face sonhada
de um silêncio de lua,
na noite da lâmpada
pressinto a tua.
Ó nascidas manhãs
que uma fada vai rindo,
sou o vulto longínquo
de um homem dormindo.


Pé na Estrada (Dann)

Janelas - Roseana Murray


Em todas as janelas me debruço,
em todos os abismos
estendo uma corda
e caminho sobre o nada.
Também ando sobre as águas,
subo em nuvens,
galgo intermináveis escadas.
Abro todas as portas
e cavernas com um sopro
ou três palavras mágicas.
Mergulho em torvelinhos,
danço no meio do vento,
pulo dentro da tempestade.
Em cada encruzilhada me sento
e tento arrumar o destino,
estranho castelo de areia.


O Arco - Carlos Drummond de Andrade


Que quer o anjo? Chamá-la
O que quer a alma? perder-se
Perder-se em rudes guianas
para jamais encontrar-se.

Que quer a voz? encantá-lo.
Que quer o ouvido? Embeber-se
de gritos blasfematórios
até que dar aturdido.

Que quer a nuvem? raptá-lo,
Que quer o corpo? solver-se,
delir memória de vida
e quanto seja memória.

Que quer a paixão? detê-lo.
Que quer o peito? fechar-se
contra os poderes do mundo
para na treva fundir-se.

Que quer a canção? erguer-se
em arco sobre os abismos.
Que quer o homem? salvar-se,
ao permeio de uma canção.


Encontro inesperado - Wisława Szymborska


Nós nos tratamos com extrema cortesia,
dizemos: quanto tempo, que bom revê-lo.
Nossos tigres bebem leite.
Nossos falcões preferem o chão.
Nossos tubarões se afogam no mar.
Nossos lobos bocejam diante da jaula aberta.
Nossas cobras perderam seu lampejo,
nossos macacos, sua graça; nossos pavões, suas plumas.
Faz tempo que os morcegos deixaram nossos cabelos.
Caímos em silêncio no meio da conversa,
e não há sorriso que nos salve.
Nossos humanos
não sabem falar uns com os outros.


Poema infinitivo - Fernando Py


Valorizar toda manhã de sol
como se a derradeira fosse.

Toda manhã de sol sobre a verdura
como se nunca mais houvesse.

Sentir que a vida é ainda boa e amiga
feito na antiga meninice.

E não temer a morte soberana
que se engalana para o enlace.


a poesia dói dentro de mim - Vera Lúcia de Oliveira


A poesia dói dentro de mim
como quando meu pai podava a parreira
eu ia vendo caírem
as folhas
eu ia vendo caírem
as folhas
e ninguém sabia
como os ramos derramavam os sons
dolorosos


Viver - Carlos Drummond de Andrade


Mas era apenas isso,
era isso, mais nada?
Era só a batida
numa porta fechada?

E ninguém respondendo,
nenhum gesto de abrir:
era, sem fechadura,
uma chave perdida?

Isso, ou menos que isso,
uma noção de porta,
o projeto de abri-la
sem haver outro lado?

O projeto de escuta
à procura de som?
O responder que oferta
o dom de uma recusa?

Como viver o mundo
em termos de esperança?
E que palavra é essa
que a vida não alcança?

Almas paralelas - Augusto de Lima

Alma irmã de minha alma, espelho vivo
de outro espelho fio que te retrata,
alma de luz serena e intemerata,
cujo influxo de amor me tem cativo!

Bem sinto, que em mim vives e em ti vivo;
no entanto (e eis o desgosto que me mata!),
do amor a doce vaga me arrebata
e não posso atingir teu vulto esquivo.

O mesmo curso têm nossos destinos
do gozo o mel, da dor os desatinos
a um nada inspiram, sem que ao outro inspirem.

Mas, triste sorte! Ó bela entre as mais belas!
Eles são como duas paralelas:
– Próximos correm, sem jamais se unirem!...


Despedida - Hilda Hilst

Isso de mim que anseia despedida
(Para perpetuar o que está sendo)
Não tem nome de amor. Nem é celeste
Ou terreno. Isso de mim é marulhoso 
E tenro. Dançarino também. Isso de mim
É novo: Como quem come o que nada contém.
A impossível oquidão de um ovo.
Como se um tigre
Reversivo,
Veemente de seu avesso
Cantasse mansamente.

Não tem nome de amor. Nem se parece a mim.
Como pode ser isto? Ser tenro, marulhoso
Dançarino e novo, ter nome de ninguém
E preferir ausência e desconforto
Para guardar no eterno o coração do outro.


Snow Patrol - Chasing Cars

Ele sabe - Humberto Ak'abal


O vento não pode
interromper um sonho.

A noite se ilumina
para o pensamento.

Eu moro aqui
mas penso acolá.

E meu povo sabe disso.


Descobrimento - Líria Porto


a infância é um barquinho
a transportar nossos sonhos
da enxurrada até o rio

a juventude um caiaque
a descer as correntezas
sem pensar em desembarque

a velhice é caravela
terra à vista


Trapézio - Roseana Murray


Meu corpo oscila
entre céu e a Terra,
a noite e o dia
o mar e o deserto.

Como se num trapézio
pendurado sobre o tempo,
meu corpo oscila,
toma impulso,
e num salto
mergulha sobre a vida.


Então é você – Alice Ruiz


Então é você
que bem antes de mim
diz o que eu queria dizer
tão bem quanto eu diria.
E quem diria?
ainda melhor

Acho que teu nome é poesia
e por isso todos te chamam

Então é você
tua simples presença
preenche a minha existência
me faz ver o que eu não via.
E quem diria?
ainda melhor

Acho que teu nome é vida
e por isso todos te querem

Então é você
que quando fala
instala a compreensão
de tudo que eu seria.
E quem diria?
Ainda melhor

Acho que teu nome é amor
e por isso todos te amam

E quando todos te chamam
quem sou eu pra não chamar?

E quando todos te querem
quem sou eu pra não querer?

E porque todos te amam
“eu sei que vou te amar" ...